Pagar para jogar… por amor ao clube

Afinal, ainda existe amor à camisola. Lucas Pérez pagou do seu bolso 500 mil euros para voltar a jogar no Deportivo da Corunha. É uma viagem até à terceira divisão espanhola feita com muito amor.  

Por João Sena

Enquanto alguns jogadores são notícia por assinarem contratos milionários, outros pagam para jogar no clube do seu coração. Isto ainda acontece em 2023! O avançado espanhol Lucas Pérez, de 34 anos, deixou o Cádiz, da primeira divisão, para voltar ao Deportivo da Corunha, que joga na terceira divisão. É um regresso cheio de significado por vários motivos. Era um jogador importante no clube andaluz, com quatro golos marcados em 15 jogos, mas para estar de bem consigo pagou 500 mil euros pela rescisão do contrato com o Cádiz, válido até 2024, e voltou para casa a ganhar… seis vezes menos. Poucos jogadores deram tantas provas de amor a uma camisola e a um símbolo. Por coincidência, oficializou a entrada no Deportivo da Corunha na mesma altura em que Cristiano Ronaldo assinou um contrato com o Al Nassr, da Arábia Saudita, a ganhar 200 milhões de euros por temporada.

No regresso ao estádio Riazor, teve mais de 24 mil adeptos a recebê-lo. «A única coisa que faço é voltar para casa, para o Deportivo, que é onde quero estar, onde quero viver. Tomara que os últimos anos da minha carreira possam ser aqui e que sejam bons», disse o avançado, que adiantou: «Esta não é a equipa do Lucas, é a equipa do Deportivo da Corunha, o clube da cidade e de muita gente de todas as idades». «Não venho aqui para salvar ninguém, a única coisa que quero é ajudar. Não sou uma estrela. Só quero ser feliz e voltar a jogar em casa», acrescentou. O novo reforço do Deportivo fez questão de salientar que está «com muita vontade», mas nunca será «um problema para o clube».

«Quando eles acharem que não precisam de mim desportivamente podem falar comigo e dispensar-me». Lucas Pérez assinou um contrato de três anos e meio, trocando a visibilidade primeira liga espanhola para voltar à sua paixão de infância. 

O Deportivo da Corunha foi criado em 1906. É um dos nove clubes que conquistaram a liga espanhola, na época de 1999/2000 bateu os poderosos Real Madrid e Barcelona. Outro feito histórico foi a vitória na Taça do Rei, em 2002, ao vencer, na final, os ‘merengues’ no seu próprio estádio. O Real Madrid celebrava o centenário, mas a festa foi do Deportivo, que comemorou essa conquista no restaurante que o Real tinha tinha reservado…para a festa que ficou por fazer. A queda começou em 2017/18 com a descida à segunda divisão e, em 2020/21, baixou para o terceiro escalão. Sem dinheiro para fazer contratações, foi a descida ao inferno de uma equipa que, alguns anos antes, fez tremer os grandes clubes europeus. A despromoção foi polémica. A equipa viu o seu jogo contra o Fuenlabrada anulado devido a casos de covid-19 na equipa adversária. As outras partidas foram realizadas e o Deportivo ficou sem hipótese de pontuar e acabou na terceira divisão. O clube apelou junto da federação espanhola, mas sem sucesso.

Transferência surreal

Lucas Pérez nasceu na Corunha, foi criado pelos avós, e desde muito novo teve grande ligação ao Deportivo. Ainda criança, jogava futebol de rua com o sonho de um dia fazer parte da equipa principal do Deportivo. Com 12 anos, viu o super Deportivo ganhar a liga espanhola (1999/2000) e admirou os ídolos Djalminha, Mauro Silva e Bebeto, entre muitos outros talentos e onde estava também o português Pauleta. Fez tudo para ingressar no clube nas camadas jovens, mas isso não se concretizou e foi parar aos juvenis do Atlético de Madrid e, mais tarde, do Rayo Vallecano.

Mudou-se para a Ucrânia em 2011 para jogar no Karpaty Lviv. Seguiu-se a transferência para o PAOK, da Grécia, em 2013, mas acabou emprestado ao Corunha. O clube galego contratou-o por um período de quatro anos. Foi a melhor fase da sua carreira, e tornou-se ídolo dos adeptos pelas declarações que fazia. «Quando beijo o símbolo do clube na comemoração dos golos estou também a beijar o escudo da minha cidade», tendo também uma atenção para com os adeptos: «adoro quando as crianças me pedem autógrafos». Em 2016, assinou contrato com o Arsenal, uma transferência que valeu ao Deportivo 20 milhões de euros e, no ano seguinte, foi novamente emprestado ao Corunha. Em 2018, transferiu-se para o West Ham, tendo passado depois pelo Aláves, Elche e Cádiz. Na época passada teve um papel determinante na luta pela manutenção na primeira liga. 

Agora veio para ficar. Depois da Premier League e da La Liga, está a jogar na terceira divisão, defrontando equipas amadoras. «Eu não jogo na terceira divisão, eu jogo no Deportivo. Não é o dinheiro que me move, porque se falo nisso sinto-me vazio. Graças ao meu trabalho não me posso queixar financeiramente», referiu.
Regresso a casa em grande

No primeiro jogo, Lucas Pérez fez dois golos na vitória por 3-0 sobre o Unionistas de Salamanca. No final, afirmou: «Foi especial voltar a casa, voltar ao Riazor. O que mais gostei foi do ambiente, foi incrível. Queremos que cada jogo seja uma festa e que os adeptos nos levem a voar. Estiveram o dia todo a apoiar, isso dá-nos asas para continuar a lutar pelo objetivo de subida de divisão». Neste momento, o Deportivo ocupa o quarto lugar na tabela com 38 pontos, a quatro pontos do primeiro, o Alcorcón. Conseguiu 11 vitórias e cinco empates, em 20 jogos, e está na zona de playoff de acesso ao escalão superior.

O Deportivo da Corunha é mesmo um caso de amor galego. Lionel Scaloni, o treinador que levou a Argentina ao título mundial no Qatar, já disse que um dia pretende dirigir o clube, e sempre que tem disponibilidade está nas bancadas do estádio Riazor a apoiar. Recorde-se que Scaloni esteve nove temporadas no Deportivo, chegou a ser capitão de equipa nos tempos áureos do Super Depor: realizou 301 jogos, marcou 18 golos e conquistou quatro títulos.