Há músicos que atingem a cena musical no nervo, e cuja influência não se pode medir em número de álbuns vendidos nem sequer por se tornarem grandes atrações de circo, seja deliciando a audiência, seja depois escapando-lhe, mantendo esse jogo do gato e do rato ao longo de décadas. Há artistas cuja influência se exerce pelo discreto fascínio que produzem junto de outros músicos, apontando o caminho, dando-lhes ideias. São sempre raros estes, e muitas vezes as suas carreiras parecem destinadas a esgotar-se depressa, numa explosão que apesar disso se inscreve de forma permanente na memória. É o caso de Tom Verlaine. O músico e guitarrista norte-americano morreu no passado sábado, aos 73 anos, após uma “doença breve”.
“Ele despertou ao som de água a gotejar numa pia cheia de ferrugem. As ruas lá em baixo estavam banhadas num luar medieval, reverberando de silêncio. Ele estava ali, deitado, disperso, tentando aguentar com o terror da beleza, à medida que a noite se desenrolava numa tela chinesa. Ali estava estremecendo, fixo e agarrado pelos movimentos bruxuleantes de alienígenas e anjos à medida que as palavras e as melodias de Marquee Moon ganhavam forma, gota a gota, nota a nota, a partir de um estado de calma mas sinistra excitação. Ele era Tom Verlaine, e este era o seu processo: um tormento sublime.”
Será lembrado acima de tudo por ter podido agarrar e passar a uma frequência sonora e rítmica uma espécie de rumor assombroso que andava no ar, e foi o grande responsável por aquele álbum de 1977, que assinalou o aparecimendo da banda Television. Marquee Moon viria a impor-se como “um disco seminal ao demonstrar que a energia do punk rock não era incompatível com o domínio técnico e a sofisticação herdados do jazz e do gosto pela improvisação”, lembra o Le Monde.
O anúncio da sua morte foi feito ao The New York Times por Jesse Paris Smith, filha de Patti Smith, outra figura central da cena nova-iorquina do final dos anos 1970 com quem Verlaine esteve envolvido, não apenas criativamente, tendo a relação entre os dois tido contornos bem mais íntimos. Cruzaram no clube CBGB no notório bairro de Bowery, e na belíssima elegia que lhe dedicou na The New Yorker, Smith recorda como viu a banda dar ali um dos seus primeiros concertos, tendo tido a sensação, ao olhar para ele, que se tivesse nascido rapaz, seria tal e qual como ele era então. Muitos mais do que amantes, entre eles estabeleceu-se um laço em que era possível mergulhar no espelho e sair do outro lado, e muitos notaram como havia entre os dois um parentesco vocal que chegava a ser arrepiante, o que serviu como balanço para que explorassem um timbre andrógino e a meio caminho entre o lamento e a salmodia.
Nascido Thomas Joseph Miller 13 de dezembro de 1949 em Denville (Nova Jersey), e criado em Wilmington, no estado do Delaware, deixou a casa paterna e despiu o nome, diz-nos a sua antiga companheira, como uma cobra larga a pele deixando-a enrolada num canto de uma modesta garagem junto de aparelhos de ar condicionado que o pai concertava. Também se acumulava por ali material desportivo, tacos de hóquei e velhos jornais que serviam para forrar as paredes e que estavam cheios dos contornos de objetos distorcidos. Muitos eram latas que Tom esmagava e depois pintava com spray em tom dourado, pequenas esculturas representando cada uma a sua arrebatadora frase musical. Buscava inspiração nos lugares mais inusitados, e disse certa vez que tinha uma especial predileção por velharias, ferros-velhos, pela sucata que se acumulava. “Todo esse metal empilhado, esses lugares estão cheios de pathos, muito mais do que aquele que encontro na maioria da música que tenho ouvido. Tu olhas para ali e deparas-te com uma força sentimental menos filtrada, mesmo que deprimente, muito mais intenso do que em tanta da música que ouvimos hoje em dia.”
No liceu tocava saxofone, e idolatrava John Coltrane e Albert Ayler. Patti Smith diz-nos que ele também jogava hóquei, e quando um taco voou e o atingiu na cara partindo-lhe os dentes da frente, se viu obrigado a deixar o saxofone e a dedicar à guitarra elétrica. Na adolescência ficou radiante ao dar-se conta de que tinha em comum com um colega da Sanford School, Richard Meyers, muitas das mesmas referências, tanto musicais como na adoração pelos poetas malditos franceses. Numa alusão a “Uma Temporada no Inferno”, o amigo assumiu o nome Richard Hell e juntos publicariam, em 1973, a coletânea de poemas, Wanna Go Out?, atribuindo-a a Theresa Stern, personagem de origem judaica alemã e porto-riquenha, cujo rosto na capa associa os dos autores, ambos travestis.
Em Nova Iorque, criaram a primeira banda com o baterista Billy Ficca, The Neon Boys, que não duraria muito, e que viria a dar lugar aos Television após a chegada de um segundo guitarrista, Richard Lloyd. Com os Ramones, esta nova formação viria a estar entre as primeiras a construir a reputação do CBGB, e que logo conquistaria a atenção da “poeta punk” Patti Smith, que assinava uma coluna de crítica de rock no semanário alternativo SoHo Weekly News.
Contudo, com a aclamação que cercou a banda após o primeiro álbum, depressa os dois amigos de liceu ensarilharam cornos no conflito pela liderança da banda, nenhum dos dois dispostos a ceder quanto à autoria das músicas. Atraído pela espontaneidade e pelo caos, Richard Hell levou demasiado longe os seus excessos em palco, retirando inspiração da cena em que Rimbaud atingiu o fotógrafo Etienne Carjat com uma bengalada no rosto, isto depois de este ter feito a célebre fotografia em que ele e Verlaine ficaram fixados para a eternidade junto do cenáculo dos poetas de Paris. Hell viria, assim, a impor a ideia do corte punk com a competência técnica, talvez para justificar a insuficiência das suas capacidades enquanto músico. A partir daí, passou a ser considerado um defeito no underground nova-iorquino mostrar virtuosismo ao arrancar notas a um instrumento, e os Television perderam-se entre uma série de outras derivas ruidosas. Depois disso, Verlaine lançou-se numa longa e meio apagada carreira a solo, iniciada em 1979 com o álbum epónimo Tom Verlaine, tendo colaborado com grandes músicos – além de Patti Smith, também com David Bowie ou Lee Ranaldo, dos Sonic Youth. Mas Tom Verlaine admitiu às tantas que já nem sabia bem quem era a sua audiência, e acabou por abraçar a invisibilidade, reconhecendo que era a forma mais vantajosa de se viver a sua vida e não ser dominado pelo seu próprio fantasma.
No fim, fica o retrato que dela deixa a antiga namorada, ao mesmo tempo líder e musa, a cronista e a alma do que sobreviveu do movimento punk. Patti Smith memorializa-o como esses seres destinados à evanescência: “Era angélico e também algo demoníaco, uma personagem de desenhos animados com a graça de um dervixe. Gostávamos de dar as mãos e passar horas a olhar para as prateleiras de revistas ‘Flying Saucer News’, de ir à 48th Street ver as guitarras que ele não tinha dinheiro para comprar, de andar no ferry de Staten Island após três concertos no CBGB e subir os seis lances de escada até ao apartamento na East Eleven e ficarmos juntos deitados no colchão a olhar para o teto e a ouvir a chuva enquanto, na verdade, o que escutávamos era outra coisa qualquer”.