O poder dissolve-se

A ausência de projetos claros, os avanços e recuos, a negação da realidade, o autismo como forma de relação, dissolvem o poder.

Alguns anos atrás reuni um conjunto de crónicas. Foram escritas num período muito interessante que acabou com a saída do Eng. António Guterres.

Dei-lhe um título que me pareceu por demais sugestivo: O Poder é solúvel.

E com isto queria dizer que não basta ser poder, não basta ter a garantia do apoio parlamentar, não basta dar emprego aos correligionários, não basta detê-lo e sentar-se sobre ele.

A ausência de projetos claros, os avanços e recuos, a negação da realidade, o autismo como forma de relação, dissolvem o poder.

Os seus detentores podem pensar que ainda o detêm e tem sentido.

Esvai-se sem se darem conta.

Tudo começa a correr mal.

Muitos anos depois dou-me conta de uma situação semelhante.

Diz o Presidente da República que uma maioria absoluta deve ser criativa, mobilizadora, capaz de mostrar obra e programas a realizar.

Sem isto, pode continuar mas será algo que se arrasta penosamente.

E garante que não a deixará pôr-se a jeito (usando a curiosa e popular expressão do primeiro-ministro).

O problema é que este ano decorrido soube a coisa nenhuma.

E nem agora, no culminar das incontáveis trapalhadas do Governo, nos poupam a mais um ato da ministra da Agricultura.

Se há alguém que tem capacidade e pontaria para escolher secretários de Estado e diretores-gerais, é ela.

No meio das muitas críticas de incompetência, faça-se a justiça de reconhecer que, pelo menos, para isto nasceu ela.

E consegue, por duas vezes, defender as nomeações feitas e a sua cristalina pureza, para, logo a seguir, a voz da razão levar as nomeadas à renúncia.

Disse a mais recente delas que não tinha condições políticas para continuar.

Tem a ministra.

Custa a crer como ninguém repara nisso, como o primeiro- -ministro a considerará tanto mais inamovível quantas mais confusões conseguir criar.

Aqui chegados, percebemos como há várias formas conhecidas de tentar acabar com a degradação.

A primeira e mais popular é certamente o sair à rua, procurar circular pelo país, chamar os meios de comunicação social. Mesmo que nenhuma novidade tragam, torna o Governo visível, dá palco.

Outra é selecionar audiências e colocar em destaque o primeiro ministro debitando intenções sem contradita. Publicita ideias.

Outra, ainda, e, sem dúvida a que se pretende mais forte, é a entrevista a um canal de televisão. Mostra vontade de afirmar.

Já assistimos a todos esses recursos.

Qual tem sido o problema?

É que, do outro lado, as manifestações e protestos saem às ruas.

O que dizem é simples.

Há problemas muito sérios que se arrastam e o último Governo não solucionou: doentes sem médicos, professores sem carreiras, agricultores sem apoios. E outros que a guerra e a inflação e as taxas de juro promoveram e deixaram cidadãos carentes com dificuldade no acesso a bens alimentares a custos comportáveis.

E, como não pode deixar de ser, a pedra de toque era a entrevista.

O primeiro dos ministros admitiu erros, modestamente embora.

Tratou a importantíssima questão da presença dos membros do Governo investigados ou arguidos, numa forma longe das anteriores declarações e submetida ao tipo de crime em causa. Mostra que transige, portanto.

Mas, no geral, o comum das pessoas concluiu que nada de interessante trouxe.

De tal modo que o Público lhe dedicou um modesto quarto de página interior.

O poder dissolve-se, portanto.