O moderninho passeia por Guimarães, a tóxica, o seu estupor

Nem um cartaz ou uma pichagem com a grande doutrina da modernice: como todo o passado é ofensivo, para evitar repetições todo o presente tem de ser opressivo, mesmo que acabe em modo de tragédia ou em modo de farsa.

por Rui Patrício

Luiz Pacheco certamente autorizaria a adaptação do seu inspirado título (sobre Braga e o libertino) para vos contar um episódio que não ocorreu, mas que poderia bem ter ocorrido, pelo que em antecipação preventiva (Prevention) e em analepse invertida (um caso de Innovation, portanto) conto já. Um dia acordei (Woke) em Guimarães, dita cidade berço, e dei-me conta de que também eu (Me Too) havia sido vítima de alguém amigo do alheio que por intrusão informática me chegara ao cartão bancário. Parêntesis: não sei bem como escreva, porque ‘alguém amigo’ é redutor, amigo é masculino, ‘pessoa amiga’ seria melhor, sempre é feminino, mas também não dá completamente, e isto das palavras, hoje em dia, está nos antípodas da frase libertadora do maio de ‘68, porque hoje o que vale é o Não, que se meteu no meio daquela frase e no meio de tudo: É proibido Não proibir! – é o que hoje se diz e pratica nas melhores barricadas. E Hacker também não escrevo, embora em estrangeiro fique tudo mais bonito, mas ainda levava com algum grito de quem acha que um ser que se chega muito aos nossos dados por via informática não é mais do que a longa mão da santidade do Leak, e onde há Leak há sempre Like, sobretudo na ótica de quem interesseiramente utiliza. Digamos assim: ser que se introduziu informaticamente em caminhos que conduziram ao meu cartão bancário. Pronto, adiante. 

Depois da descoberta, logo me achei consciente (Awareness, pois então) de que deveria correr a cancelar (Cancel) o dito cartão, e era melhor fazer a coisa presencialmente, não fosse o diabo que espreita todas as ligações à distância tecê-las. Pus-me a caminho e as voltas do destino levaram-me às proximidades da Colina Sagrada, onde parei com incontrolável estupor. Não por ver ali tanta gente, e ainda por cima manhã cedo, mas porque não vi a turba a fazer o que eu – consciente de que é proibido não proibir e não rever – esperava presenciar. Não estavam a deitar abaixo, nem o Castelo, nem a Igreja de São Miguel, nem, pasme-se, a ofensiva estátua que Soares dos Reis, no tóxico século XIX, fez de Afonso Henriques (vai sem Dom, correção oblige), o Founder e CEO de uma Startup a que chamaram Portugal e que se tem mantido promessa de Unicórnio. Mas como é possível? Como é que não estavam a deitar abaixo? Ou ao menos a pichar com palavras de ordem do presente atiradas sobre o passado. Tudo ali, embora antigo, é modernamente tóxico: masculinidade, patriarcado, belicismo, assédio, conquista, proselitismo, desigualdade, discriminação, escravidão, servidão, subserviência, traição, estratificação, et cetera; um grande et cetera e com reticências. Aliás, não é só ali que há que deitar abaixo, é por todo o lado, e nem as cavernas de Lascaux escapam, porque, além do mais, têm gravuras com a coisificação dos bichos e, talvez, até com sugestões de maldades que o humano lhes tenha ou poderia ter feito, o que também não pode ser. Estava, pois, eu à espera de ver a Colina Sagrada nas suas últimas horas, ou pelo menos em preparativos de varrimento, tudo bem coberto com panos de luto e, assim, longe de olhos sensíveis e estreitos que veem a História e o Mundo pelo retrovisor da muito atual (mesmo que pouco consistente e coerente) empatia. 

Mas não, nada disso. Nada de deitar por terra, nada de denunciar o Fake. Nem ao menos um bocado de tinta (embora cheia de químicos, credo) atirada à espada de Afonso, o Tóxico, nem um cartaz ou uma pichagem com a grande doutrina da modernice: Como todo o passado é ofensivo, para evitar repetições todo o presente tem de ser opressivo, mesmo que acabe em modo de tragédia ou em modo de farsa. Mas nada. Estava era tudo muito entretido a fazer Selfies, com sorrisos ou boquinhas estampados em fundo de pedra e metal, e, depois, de olhos meigos e esgares satisfeitos, tudo em amorosa dança com os telemóveis (cheios de plástico, vidro e coltan, tudo coisas do mais anti-Green que há, e o coltan até espicha sangue às vezes), a postar as carinhas larocas (e muito encenadas) nas redes e a comentar, a gostar e a republicar as carinhas alheias. Uma animação, tanta que eu a mirar, estúpido de estupor, quase me esqueci (também eu) de correr a cancelar o que conscientemente me levara, ao despertar, a sair com tanta pressa para a rua. I wake, you pic(k), he cancels, we post and they like.