Socialistas ou sociais-democratas, os antigos presidentes da Assembleia da República distinguiam-se, de um modo geral, uns mais do que outros, pela sobriedade e empenho em serem reconhecidos como imparciais na condução dos trabalhos parlamentares, independentemente da filiação partidária.
Foram outros tempos e exemplos, que Augusto Santos Silva, o infatigável e polivalente ex-governante, entendeu, manifestamente, não dever seguir, ao transitar do Palácio das Necessidades para o Parlamento.
Daí que o seu perfil de segunda figura do Estado, não se confine ao espaço do hemiciclo, e transborde amiúde para fora de portas e até de fronteiras, extravasando, em muito, o que seria expectável.
Santos Silva anda num verdadeiro frenesim, desdobrando-se em conferências, palestras ou visitas oficiais, fiel ao seu lema de «malhar na direita», gosto que reclama desde 2009, quando, pela primeira vez, quis partilhar o que lhe ia na alma com os seus camaradas de partido.
Ainda recentemente, numa intervenção no ISCTE – um dos principais alfobres de governantes e ex-governantes socialistas -, Santos Silva prosseguiu na sua cruzada missionária, ao considerar a extrema-direita «uma doença» potencialmente «fatal para a democracia», e que «é falsa» a equivalência entre os extremismos de esquerda e de direita.
É a mesma lógica seguida pelo PS, em 2019, ao rejeitar que a Assembleia da República se associasse a uma histórica votação do Parlamento Europeu, que aprovara uma resolução, por maioria esmagadora, que colocava em pé de igualdade o nazismo e o comunismo, condenando ambos os regimes por terem cometido «genocídios e deportações».
Santos Silva nunca se distanciou da ‘geringonça’, nem evitou uma amena cumplicidade com a extrema esquerda, apesar de rejeitada e combatida por Mário Soares, que não a consentiu no perímetro do Governo, afastando-a do PS, por saber dos riscos de contágio da ‘doença’.
A diferença é que Mário Soares não tinha complexos, e, sem ser académico, conhecia a História, e sabia mais de política a dormir do que Santos Silva acordado.
Instalados na órbita do Governo, o Bloco e o PCP seguiram, religiosamente, o seu ativismo radical, adversários assumidos da Nato, da União Europeia e da moeda única, e mantendo intacta a sua admiração por Trotsky ou Estaline, fiéis a ditadores e a ditaduras que nunca ousaram condenar.
Com este lastro, não admira que os ‘inimigos de estimação’ de Santos Silva sejam Ventura e a bancada do Chega – além do perigo da extrema-direita na Europa -, enquanto a extrema esquerda portuguesa e europeia é tratada com benevolência, pinças e vénias, como se fosse tudo boa gente. E não são.
Compreende-se. Basta uma simples consulta à Wikipédia para percebermos melhor a relação de Santos Silva com a extrema esquerda, designadamente, a de inspiração trotskista, pela qual ‘ perdeu de amores’ muito cedo, tal como Francisco Louçã. Mais tarde aproximou-se do MES, depois de apoiar a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho.
É um filiado tardio do PS, mas depressa singrou no partido e no Governo, servindo com o mesmo denodo vários líderes, entre Guterres, Sócrates e António Costa. Um ‘corredor de fundo’.
No Parlamento, Santos Silva acha que descobriu uma rampa de lançamento ideal para amplificar a visibilidade e tentar a sua sorte nas presidenciais.
Admitamos que o PS não arranja melhor candidato, a confirmar-se a indisponibilidade reafirmada por António Costa e a incógnita que é António Guterres, quando terminar o seu segundo mandado na ONU, quase em cima das eleições presidenciais.
A possibilidade de avançar com uma candidatura, que Santos Silva já disse não rejeitar, poderá arrepiar Ana Gomes e outros eventuais interessados da área socialista.
Mas é, seguramente, o cenário que apetece ao ex-chefe da diplomacia portuguesa, uma personalidade controversa, admirador confesso de José Sócrates e que ainda no Verão de 2021 queria pedir ao PS que lhe ‘permitisse’ terminar a carreira e regressar à «minha profissão, na Faculdade de Economia do Porto».
‘Palavras leva-as o vento’, diz-se. E Santos Silva sabe disso. E a menos que o PS lhe ‘troque as voltas’, não é improvável que queira imitar Jorge Sampaio, anunciando a sua candidatura como facto consumado.
Resta saber, se a direita ficará a ‘dormir na forma’, dividida em cálculos e capelinhas, sem aproveitar a ‘borla’ do ‘circo’ das demissões e imposturas que têm dominado o Governo e preocupado Santos Silva.
Por isso escreveu que «inventar a torto e a direito podres uns nos outros alimenta uma corrida para a lama, de que o único beneficiário é (…) a extrema-direita». Lapidar.
Ou seja: o problema não são os «podres», mas que estes saltem para o espaço publico. Uma maçada, que escapa aos seus ‘remédios’…