“Há países a promover a rebelião no Peru”

Desde dezembro que o Peru está a ferro e fogo. O ex-ministro do Comércio Externo e Turismo, José Luis Silva Martinot, acusa países vizinhos de estarem a fomentar a violência com o objetivo de instalarem um regime comunista no país.

José Luis Silva Martinot tem bacharelato em Contabilidade e Administração de Empresas pela Universidade do Pacífico e mais de 25 anos de experiência em gestão empresarial. Desempenhou o cargo de presidente da Confederação Nacional de Instituições Empresariais Privadas e foi docente na Universidade Católica do Peru. Entre 2011 e 2013, foi ministro do Comércio Externo e Turismo no Governo de centro-direita do Presidente Ollanta Humala. Abandonou o cargo alegando razões pessoais e profissionais. Deixou o palco político, mas continua a ser uma voz ativa e crítica sobre o que se passa no país onde nasceu há 56 anos. Mostra-se preocupado com a ingerência estrangeira no seu país e, como disse ao Nascer do SOL, espera que a nova Presidente tenha coragem para acabar rapidamente com o estado de sítio que se vive no país há mais de dois meses.

O Peru tem um regime presidencialista, ou seja, é o Presidente da República que detém o poder executivo e escolhe o primeiro-ministro e os restantes ministros, cabendo ao Congresso o poder legislativo. As áreas de influência de cada órgão político estão bem definidas, contudo, a realidade peruana é bem diferente. A inabilidade política e a inexperiência estão na ordem do dia. Leituras diferentes da Constituição levaram a situações extremas. Pedro Castillo foi eleito Presidente em julho de 2021 com o apoio do partido de esquerda Peru Livre. Em dezembro do ano passado, tentou a dissolução do Congresso para instaurar um governo de emergência e governar por decreto, o que foi visto como uma tentativa de golpe de Estado e rejeitado pela maioria dos partidos políticos. A sua estratégia falhou, foi obrigado a abandonar o cargo e esteve preso por rebelião e tentativa de golpe de Estado. Esse facto levou a Economist Intelligence Unit, que faz a análise da ‘qualidade da democracia’ para a revista The Economist, a baixar o índice para «regime híbrido» com traços de autoritarismo. Pedro Castillo foi acusado de ‘permanente incapacidade moral’ pela terceira vez no espaço de ano e meio e foi destituído pelo Congresso. A vice-presidente Dina Boluarte, de 60 anos, assumiu o cargo de Presidente da República até 2026, isto se não houver mais golpes palacianos.

A mudança na presidência provocou violentos protestos em várias regiões do país, obrigando o Governo a decretar o estado de emergência. Mesmo assim, os conflitos entre manifestantes e a Polícia continuaram e já causaram, pelo menos, 63 mortos, mais de 600 feridos e levaram à detenção de centenas de pessoas. Neste cenário, as forças policiais têm sido acusadas de usar extrema violência contra os manifestantes.

Desde 2017 que há uma permanente instabilidade política, com seis Presidentes a serem derrubados ou presos. Que comentário lhe merece a atual crise no Peru?

A pergunta é bastante ampla. Lamentavelmente, o país não está tão bem como eu gostaria devido à agitação social que foi provocada a partir do exterior, com o objetivo de gerar o caos e a desordem e instalar um novo regime no Peru.

Que influências são essas e de onde vêm?

Existe a intenção de promover no Peru um governo de ideologia  comunista semelhante ao que existe na Venezuela e em Cuba. O antigo Presidente tinha essa visão política, mas o país resistiu e ele acabou por ser destituído de forma legal e de acordo com a Constituição, por incapacidade política para desempenhar o cargo.

Os manifestantes querem a demissão da Presidente, a dissolução do Congresso, a antecipação das eleições presidenciais, previstas para abril de 2024, e a mudança da Constituição. Dina Boluarte podia ter evitado esta crise?

Dina Boluarte assumiu o cargo como mandam as leis e tem toda a legitimidade para governar. Importa dizer que recebeu um país em convulsão e que tem tentado recuperar a tranquilidade e a paz. Na realidade, todos os países que elegeram presidentes democratas reconheceram a atual presidente do Peru. Os países que têm regimes comunistas, que se tornam ditaduras, foram os únicos que não reconheceram o novo governo de Dina Boluarte, o que explica bem a origem deste conflito. 

Ao pretenderem mudar a Constituição está implícita uma mudança de regime. É intenção dessas forças implementarem no Peru o modelo  comunista?

Sim. Essa gente vai para a rua com esse objetivo. Só que estamos a falar de uma minoria. É inferior à décima parte da população do país. Se 200 pessoas se sentarem junto ao Arco do Triunfo, em Paris, e pararem o trânsito nessa zona isso torna-se notícia em todo o mundo, só que essas 200 pessoas não são representativas do país. A maior manifestação em Lima teve 2300 participantes, e se somarmos todas as manifestações realizadas no país estiveram pouco mais de 30 mil pessoas, o que não é nada quando comparado com os 33 milhões da população total.

A onda de violência tem especial incidência no sul, zona historicamente mais pobre do país, onde Pedro Castillo teve a maior concentração de votos na eleição de 2021. Considera que tem responsabilidades nos incidentes das últimas semanas?

O ex-Presidente assumiu o cargo com dois objetivos: roubar e criar um ambiente de caos e de confronto entre peruanos para concretizar as suas intenções políticas. Desde o primeiro dia que teve um discurso de ódio, o que provocou um ambiente muito tenso na sociedade e contribuiu para ações de violência extrema. Quando o Congresso aprovou o impeachment do Presidente, os seguidores de Pedro Castillo vieram para a rua e causaram grande agitação popular em todo o país, com perda de vidas humanas, é a pior onda de violência em mais de duas décadas.

Os manifestantes têm o apoio dos partidos de esquerda, dos sindicatos, de associações de trabalhadores e de ativistas ambientais. O que pretendem as pessoas que protestam nas ruas?

Os manifestantes não fazem quaisquer reivindicações sociais; não pedem o aumento de salário ou melhores condições de vida, eles procuram apenas criar o caos no país, querem a saída da Presidente Dina Baluarte e criar uma nova Constituição. Se perguntarmos a essas pessoas o que querem mudar na Constituição elas dizem que querem mudar tudo, mas se perguntarmos do que é que não gostam elas não sabem responder.

É possível identificar a origem dos protestos antigovernamentais?

Está demonstrado que a maioria dos manifestantes que são violentos, que atiram pedras e garrafas à Polícia, são pessoas que vêm de diferentes partes do país. São pagos com o dinheiro do narcotráfico da Bolívia e da Venezuela,  recebem cerca de 200 sóis [65 euros] por dia para ir para a rua protestar. Uma situação como esta é muito conveniente para as organizações que se dedicam ao tráfico de droga e de outras atividades ilegais.

As relações do Peru com os países latinoamericanos que têm governos de esquerda tem sido tensas. Na sua opinião, o comportamento desses países está na origem desta crise interna?

Temos um grande respeito pelos países desta região, mas infelizmente há Presidentes que estão alinhados com Cuba e com a Venezuela e que não merecem estar nesse cargo. A Colômbia tem um terrorista como Presidente, Gustavo Petro, no Chile está Gabriel Boric, que incendiava igrejas e propriedades privadas, na Bolívia está Luis Arce, um discípulo de Evo Morales, que é conhecido por ser narcotraficante, esses países juntamente com a Venezuela e Cuba não reconheram Dina Boluarte. O Presidente do Equador, Guillermo Lasso, assim como os Estados Unidos, Brasil e os países europeus reconheceram a nova Presidente.

Sente que, neste momento, o Peru está dividido?

Não. Os manifestantes são uma percentagem muito pequena quando comparados com os 33 milhões de peruanos. A parte violenta representa 0,1% da população total, pelo que está muito longe de representar a maioria das pessoas.

Há dois meses que o país vive em estado de emergência devido às manifestações violentas, bloqueio de estradas, incêndio de prédios e tentativas falhadas de tomar o aeroporto da cidade de Juliaca. O que poderá acontecer no futuro?

A maioria dos peruanos não apoia as manifestações violentas e está contra este tipo de gente que pretende atingir os seus objetivos de qualquer forma e a qualquer preço. As pessoas estão a resistir e acredito que o Peru vai sair desta situação e não vai virar à esquerda. Espero que nas próximas semanas o país volte à normalidade e recupere o caminho do crescimento.

Os partidos conotados com a esquerda são os responsáveis pela instabilidade social?

O conceito de esquerda que se verifica nos países da América Latina é diferente do que acontece na Europa. Os regimes da Nicarágua, Venezuela e Cuba são verdadeiras ditaduras, os direitos humanos não existem e têm uma economia de pobreza, 99% da população passa dificuldades, enquanto os governantes enriquecem, por isso não querem perder privilégios. No Peru, o anterior Presidente, que foi apoiado pela esquerda, tinha o mesmo comportamento.

Pode dizer-se que a América Latina está a virar à esquerda em termos de ideologia política?

De certa forma, sim, esperemos que não chegue ao Peru. Temos a experiência de lutar e derrotar o Sendero Luminoso, que era um grupo terrorista que utilizava metralhadoras, granadas e bazucas para atingir os seus fins. Esta nova investida com pedras e paus não vai conseguir atingir os seus objetivos, e o Peru vai continuar o seu processo democrático.

Tem havido instabilidade social em alguns países desta região, a que se deve isso?

A ideia é criar o caos e tomar o poder. Como não têm o apoio das pessoas querem fazê-lo pela força.

Pode dizer-se que o ideal de Che Guevara de uma América Latina livre está de volta com a atual geração de políticos?

Há uma grande diferença entre aquilo que Che Guevara defendia e o que fazem os seus seguidores hoje em dia. Ele era movido por sonhos e ideais, enquanto que os atuais políticos de esquerda da América Latina só têm uma motivação que é enriquecer com a pobreza do povo.

Neste cenário de crise, qual tem sido o papel da Keiko Fujimori, presidente do partido Força Popular?

Nenhum. É um partido de direita importante no Peru, mas que não disse nada sobre este tema, apenas referiu o papel das forças armadas e da polícia para salvaguardar a democracia e a ordem pública. No Congresso tentou encontrar uma plataforma de entendimento, mas as pessoas que querem instalar um governo comunista não aceitaram as propostas apresentadas.

Em sua opinião, como é possível sair desta crise e conseguir a unidade do país?

Se não existir hipocrisia e se quiserem fazer as coisas bem feitas a primeira ação a fazer é recuperar o princípio da autoridade. Não é possível que um manifestante continue a atirar pedras e paus à Polícia e não seja preso. As  pessoas de esquerda dizem que têm o direito de protestar, mas uma coisa é protestar, outra é praticar atos de violência.  Todos os delinquentes devem ser presos, mas tem de haver vontade política de Dina Boluarte para o fazer. Se isso acontecer, em poucos dias o país volta à normalidade.

Acredita que a presidente está disponível para assumir essa responsabilidade? Os militares podem ajudar a restabelecer a ordem?

As forças militares recebem ordens da Presidente e limitam-se a cumprir essas indicações. Durante as manifestações, a única coisa que fizeram foi usar os escudos para se protegerem das pedras e das garrafas com gasolina que eram atiradas pelos manifestantes. A situação está mais calma em algunas regiões, e espero que Dina Boluarte se dê ao respeito e decida acabar rapidamente com estes comportamentos e restabelecer a paz. As manifestações são legítimas numa sociedade democrática, mas não devem ser o ponto de partida para atos de vandalismo de grupos radicais de esquerda.

Mudando de assunto, foi ministro do Comércio Externo e Turismo há dez anos. Nesse período o comércio externo cresceu de forma significativa o que tornou a economia peruana competitiva. Em 2015, O Fundo Monetário Internacional indicou que teve o maior crescimento da América Latina. Como analisa esse setor atualmente?

Foi uma altura importante porque negociei o Tratado de Livre Comércio  entre o Peru e a União Europeia. Na última década houve mudanças para melhor e o país está bem preparado. Desenvolveu-se e criou novos oportunidades comerciais com a dinamização das exportações. Há alguns anos, o Peru era um país essencialmente exportador de minérios como o cobre, ouro e prata, e de produtos derivados do mar, e contava ainda com as jazidas de petróleo e de gás natural da Amazónia. Atualmente, é grande exportador de produtos não tradicionais e de produtos diferenciados, que vão do setor agrícola ao algodão e alpaca, passando pelo café. Com essa capacidade de diversificação conseguimos ter grandes parceiros comerciais em praticamente todos os países do mundo.

Sendo um país rico em recursos naturais, o seu aproveitamento tem sido bem feito?

Sim, mas importa salientar que há uma diferença entre o setor privado e o público. O empresário peruano é muito empreendedor e tem feito um grande esforço para o desenvolvimento do país. Há 25 anos, havia muito terrenos abandonados que, hoje em dia, são campos de cultivo, é por isso que o Peru cresceu bastante neste setor e tornou-se muito forte nas exportações. Além disso, temos uma vantagem natural que é o facto de termos sol todo o ano e água que vem dos Andes, o que possibilita ter uma boa agricultura.

O turismo continua a ser uma das atividades mais importantes para a economia?

Continua a ser uma atividade importante para o desenvolvimento sustentável do país pelo peso que tem na economia, mas também por ser socialmente inclusiva e respeitar o meio ambiente. O Peru é dos paises mais diversificados do mundo, é multicultural, tem muitas tradições e uma cultura própria. É um país extraordinário para visitar. Quando era ministro, foi dos países que registou maior crescimento no turismo, com valores muito superiores ao dos países do primeiro mundo. Neste momento, continua a haver uma grande oferta para quem visite o país. O Peru possui 12 patrimónios mundiais reconhecidos pela UNESCO e dos maiores ecossistemas do mundo.  É muito conhecido pela zona do Machu Picchu, com os seus monumentos que são um misto da época inca e europeia, e do Cusco, mas há muito mais para ver. Uma pessoa que vem da Europa tem a possibilidade de visitar cidades com grande história como Lima, que tem recebeu grande influência de portugueses e espanhóis. Quem procura a natureza tem o rio amazonas, nasce no Peru e é o maior do mundo, e temos uma amazónia espetacular.  Além disso, têm ao dispôr a melhor gastronomia do mundo que utiliza as melhores técnicas da gastronomia mundial e recebeu influência espanhola, francesa e italiana.

É uma boa opção visitar o país quando centenas de pessoas ficaram retidas nas zonas mais turísticas?

O Peru é dos países mais abertos ao mundo. Espero que dentro de algumas semanas a situação política e social esteja normalizada e que os turistas possam visitar o país sem problemas.