No verão de 2018, muito antes, portanto, de António Costa apresentar mais um programa para a habitação – inspirado nas ideias de Mariana Mortágua, e tendo como eixo principal a ameaça de ‘estatização’ da propriedade privada –, já o então vereador do Bloco de Esquerda, Ricardo Robles, demonstrava, sabiamente, como o Estado não sabe cuidar sequer do seu património imobiliário, ao comprar ao desbarato um lote de prédios da Segurança Social, em Alfama, para o comercializar mais tarde, recuperado e com lucro sumptuário.
Na altura, o ex-vereador deu nas vistas, não apenas pelo seu talento de empreendedor, mas, sobretudo, por se ter distinguido nas suas funções públicas por um ardoroso ataque à especulação imobiliária. Mariana não anda longe dessa narrativa, ao preconizar o confisco de casas vazias.
Num país onde raramente as esquerdas são penalizadas, o caso Robles foi flagrantemente longe demais, e a contradição entre o discurso e a prática revelou-se fatal.
Mesmo Catarina Martins, enquanto coordenadora da agremiação, – que, condoída, ainda saiu em defesa de Robles –, depressa percebeu que era uma posição insustentável, e antes que se chamuscasse, tê-lo-á convencido a renunciar.
Como tantas outras histórias, esta depressa ficou esquecida, mas teve o mérito de mostrar como o património devoluto do Estado pode ser hipervalorizado, e como este é mau gestor da coisa pública, sejam prédios ou floresta, como se viu no Pinhal de Leiria.
Quando tudo isto aconteceu, já António Costa era primeiro ministro, chefiando um governo ancorado na ‘geringonça’, da qual o Bloco de Esquerda fazia parte, o que terá sido também um aconchego para as mais-valias sonhadas pelo infatigável Robles.
Compreendia-se, aliás, a sua urgência no negócio. À cautela, o bloquista tratou da vida, antes que Costa lhe estragasse o negócio, como está agora a acontecer com os titulares de alojamento local, ou com os proprietários de casas que, por qualquer razão, não estão arrendadas.
Ora o que ficou evidente é que o Estado dispõe de basto património ‘às moscas’, que não sabe o que lhe fazer – se é que já concluiu o respetivo inventário –, onde a iniciativa privada pode atuar e ganhar bom dinheiro.
Donde se conclui que foi muito mais ágil o ex-vereador municipal a comprar e a vender património da Segurança Social, do que António Costa a criar as condições para, no cinquentenário do 25 de Abril, não haver um português sem casa condigna, conforme prometeu, em 2021, ao apresentar a sua moção de candidatura a secretário-geral do PS.
Garantiu, então, o também primeiro-ministro, sem vacilar, que, graças ao famoso PRR, era garantido que «até 2024, todas as famílias [a viver em Portugal] terão uma habitação condigna».
Costuma dizer-se que ‘de promessas está o inferno cheio’. O certo é que o PS – tanto o de Costa como o do seu antecessor Sócrates –, especializou-se em repetir planos que não saem depois do papel.
Ao retomar a habitação como ‘prova de vida’ do Governo, Costa garantiu, claro, a constitucionalidade das linhas mestras do programa, como se fossem ‘favas contadas’, embora seja de duvidar que a ameaça de confisco convença os juízes do TC.
Na verdade, excetuando os regimes totalitários, não compete ao Estado democrático ser senhorio e agente imobiliário, reclamando até o direito de ser compulsivo, se acaso o proprietário não quiser pôr a casa no mercado.
Por isso, o líder do PSD, Luís Montenegro, quebrou a reserva que habitualmente o caracteriza, ao considerar que as medidas do Governo revelavam «um primeiro-ministro na sua faceta de sobrevivente e de comunista». Pior era difícil.
Já Marcelo Rebelo de Sousa, com a criatividade e a traquinice que se lhe reconhecem, comparou o programa a um ‘melão’, que só depois de aberto se sabe o que lá vai dentro.
Mais assertivo, Paulo Portas lembraria que «por muito que isso custe a certas orientações ideológicas, os portugueses são muito vinculados à ideia de ter uma casa sua». Uma realidade irrefutável.
É essa cultura da casa própria, que foi abalada pelo inopinado anúncio de Costa.
De facto, em Portugal, segundo dados do Eurostat referentes a 2020, 77,3% têm casa própria. Uma tendência, aliás, europeia, com a Roménia a liderar o ranking, seguida de perto pela Eslováquia e Hungria.
Seja a casa de residência habitual ou secundária, os portugueses têm um instinto agudo de propriedade, que Costa desafia com este programa de «socialismo radical», como lhe chamaria Marques Mendes.
Digamos sem exagero, que o programa parece elaborado pela ala esquerda do PS, e decalcado das propostas de Mariana Mortágua. Marina Gonçalves e Mariana confundem-se. Até no congelamento de contratos de renda antiga de forma definitiva.
O socialismo que Mário Soares pôs na gaveta, foi recuperado por António Costa, em parceria com os bloquistas radicais. Quem diria?…