Conhecemo-lo como músico, sentado no seu piano, ou como escritor de bandas desenhadas, com os aclamados trabalhos ‘Balada de Sophie’, ‘Os Vampiros’ ou a divertida saga ‘Os contos inéditos de Dog Mendonça e Pizzaboy’. Agora, Filipe Melo, com a sua mais recente curta-metragem, ‘O Lobo Solitário’, cimenta o seu lugar como um dos mais criativos cineastas em Portugal.
Depois da sátira do documentário falso ‘O Homem que Gostava de Zombies’ e de nos levar numa viagem para encontrar uma fatia de tarte de maçã em ‘Sleepwalk’, em ‘O Lobo Solitário’ Filipe Melo brinca com as expectativas do público e testa o limite da compaixão que cada um consegue ter com um vilão.
Esta curta-metragem acompanha um radialista que trabalha num programa noturno e que recebe uma «inesperada» e tensa chamada telefónica de um antigo amigo.
Gravado num único take e com os diálogos a serem praticamente exclusivos às chamadas telefónicas, que nos transporta para o filme ‘Locke’ (2013) de Steven Knight – protagonizado por Tom Hardy, onde este conduz o seu carro noite dentro enquanto faz chamadas telefónicas -, esta curta-metragem é um exemplo exímio de como deixar a audiência asfixiada com a incerteza do que acontecerá na cena seguinte.
Mas os elogios não são exclusivos ao nosso jornal, uma vez que também a comunidade internacional apreciou este trabalho, com os Óscares a colocar o filme na shortlist de nomeados na categoria de Melhor Curta-Metragem do Ano.
Apesar de não ter sido escolhida para os cinco candidatos, Filipe Melo revela-nos que não irá perder muito tempo a lamentar esta ausência e conta que, no seu futuro, gostaria de explorar o formato de longa-metragem.
Em entrevista à Luz, o realizador conduz-nos por algumas das influências do filme, as semelhanças (e diferenças) entre criar uma banda desenhada e um filme e reflete sobre a quase nomeação para os Óscares desta curta-metragem.
Quando é que surgiu pela primeira vez a ideia de fazer ‘O Lobo Solitário’? Em 2017. Escrevi o primeiro draft do guião em maio de 2018.
Porquê a decisão de gravar esta curta numa única cena? A ideia inicial consistia em fazer uma curta-metragem só com um ator, num só cenário, num só take, sem nenhuma pós-produção. Isso foi a ideia base que deu origem a tudo o resto. Acho também que o facto de não ter cortes contribui para a narrativa, neste caso particular, na história que queria contar. Não queria que houvesse tempo para respirar.
Algum filme, curta-metragem ou série o inspirou a tomar esta decisão artística? Certamente que houve vários filmes que me inspiraram, mas nenhum em concreto para este. No entanto, há vários filmes em plano sequência que me impressionaram recentemente: ‘Victoria’, ‘Boiling Point’ ou ‘Soft and Quiet’, para dar alguns exemplos.
O personagem principal do filme é Vítor Lobo, um radialista. Houve alguma personalidade desta profissão que o tivesse inspirado? Tive um apoio muito grande da rádio Voz de Alenquer. Aliás, os telefonemas que ouvimos no filme são telefonemas reais que ouvi lá. Não me baseei em concreto em ninguém, mas estive muito atento ao ambiente vivido naquela rádio, que é muito local e muito inspirador. É quase uma família.
Adriano Luz encarna esta personagem com muita sinceridade e intensidade. Ele foi uma escolha pensada para o papel? Foi, sim. Acho que o trabalho do Adriano neste filme é mesmo muito impressionante. É um virtuoso, construiu muitos detalhes ali que só fui apanhando depois de ver o filme muitas vezes. Foi a minha primeira opção para o papel, e fico muito grato por ele ter aceitado trabalhar comigo.
Costuma assistir ao tipo de programas de rádio como ‘O Lobo Solitário’ no seu dia a dia? Sim. Muitas vezes, nas viagens que faço como músico, vamos a ouvir estes programas na rádio, noite fora. Lembro-me deles desde pequeno, ouvia-os também em Tondela. Ainda sou do tempo do “Quando o Telefone Toca”.
Este filme conta com a direção artística de Juan Cavia, que colabora frequentemente consigo na criação de banda desenhada. Como foi transportar a vossa parceria criativa para o cinema? Já o tínhamos feito, temos uma curta-metragem anterior chamada ‘Sleepwalk’ em que ele trabalhou comigo, também. O nosso trabalho é como um casamento feliz, conhecemo-nos bem, e temos respeito, amizade e consideração um pelo outro. Às vezes, quase não precisamos de falar para nos entendermos. É um luxo trabalhar assim.
Que semelhanças é que encontra entre estes dois tipos de arte? As semelhanças são muitas – desde o trabalho de construir uma narrativa, desenvolver as personagens, até à parte visual, a escolha de enquadramentos. Diria que as maiores diferenças são o uso da música e do som, que ganham uma dimensão incomparável no cinema, e a possibilidade de refazer uma cena na BD, corrigir algo, que no cinema, depois de uma rodagem, se torna uma tarefa infinitamente mais complexa.
Noutro cruzamento entre as artes que pratica, também é responsável pela criação da banda sonora de ‘O Lobo Solitário’, depois de já ter feito o mesmo em ‘Sleepwalk’. Como é musicar os seus próprios filmes? É natural que, tendo mais formação na música do que no cinema, pense muito em função disso. Acho que a música ainda tem um papel fundamental no cinema, pode contar o que o texto ou as imagens não contam. É uma tradição que se tem vindo a perder em muitos filmes atuais, essa associação tão orgânica entre a música e o subtexto, o uso de motivos para as personagens, etc. É algo que gosto muito de explorar. Essa relação entre esse ator discreto que é a música e o resto do filme. Normalmente, surgem ideias logo na escrita do argumento.
A banda sonora tem um “travo” a filmes dos anos 80, houve algum filme que estivesse mais presente durante a criação destas músicas? Não especialmente. Queria, de facto, um ambiente musical mais vintage, e vi aí uma possibilidade de explorar uma série de sintetizadores analógicos, como o Juno, e muitos outros. Pude também colaborar com um grande amigo, o Paulo Furtado – The Legendary Tigerman, que é um perito nesse tipo de instrumentos e sonoridades. Foi uma parceria feliz.
Ainda na banda sonora, num dos momentos mais tensos do filme existe uma espécie de corte desta emoção com a utilização da música “Não Chores Mais Coração” de Marante. De onde surgiu esta escolha? Participo num projeto musical com o Bruno Nogueira e a Manuela Azevedo chamado “Deixem o Pimba em Paz”. Essencialmente, é um projeto que pega em músicas do repertório popular com novos arranjos. Fizemos muitos concertos, cerca de duzentos. Nalguns deles, pude conhecer o Marante, que era nosso convidado. Ficámos amigos, tenho uma enorme consideração por ele, e fico muito contente por ele ter cedido os direitos da sua canção para o nosso filme.
Nas suas obras costuma colocar os seus protagonistas a enfrentar os erros do passado, recordo-me, por exemplo, de Julien Dubois, o pianista da ‘Balada de Sophie’, que no fim da história encontra alguma redenção. Agora, Vítor Lobo enfrenta a justiça. O que o motivou a fazer esta personagem passar por este destino? Está bem observado. Tenho uma tendência natural para escrever personagens que procuram redenção, a paz interior. Nesta curta, houve uma tentativa deliberada de desenvolver uma personagem que não tivesse essa preocupação. Acho que é também uma forma de jogar com a tendência natural dos espectadores (eu incluído) em querer simpatizar com qualquer personagem, por mais horrível que esta seja.
No final de ‘O Lobo Solitário’, uma ouvinte escolhe ficar do lado do vilão e ignorar os factos que lhe foram apresentados. Numa altura em que existem apoiantes fanáticos tanto de celebridades como de políticos que se recusam a acreditar que estas pessoas poderiam cometer erros ou crimes de qualquer natureza, houve algum caso recente que o tivesse inspirado a optar por este fim? Não especialmente. Acho que a inspiração para esse tipo de atitude se manifesta de tantas formas assustadoras. À pequena escala, é talvez a ouvinte desta curta, que acredita na inocência do radialista. À grande escala, serão estas invasões do capitólio nos EUA ou do edifício do Congresso no Brasil. Esse tipo de fanatismo é tenebroso.
Numa questão que é inevitável escapar, o seu filme esteve muito perto de ser nomeado para a categoria de Melhor Curta-Metragem nos Óscares e de se tornar o primeiro filme português a conseguir tal proeza. Como se sente depois de ter ficado de fora? Claro que fiquei triste, mas é uma tristeza passageira e incomparável à alegria de ter chegado à shortlist, algo que nunca esperei que acontecesse.
Enviou alguma mensagem a parabenizar João Gonzalez por ter conseguido que o seu ‘Ice Merchants’ chegasse a esta cerimónia? Enviei, sim. Ficámos amigos nestas exibições conjuntas que fizemos dos filmes, com a curta da Laura Gonçalves, que também gostei muito de conhecer. São pessoas talentosas e bem formadas, que merecem toda a sorte e exposição que estão a ter.
Sente que, depois desta nomeação, Portugal está pronto para conseguir produzir mais regularmente conteúdo audiovisual que seja mais conceituado e elogiado internacionalmente? Acho que Portugal está preparado, sinto que esta nomeação é uma confirmação mais do que qualquer outra coisa.
O que é que acha que se poderia fazer para apoiar mais os criadores portugueses? Acho que deveria haver mais financiamento, mais apoio educativo e mais iniciativas e programas de divulgação do cinema, em especial do nosso.
Uma questão que se coloca agora é: quando é que se irá estrear numa longa-metragem? Espero que em breve, assim que encontrar uma história que queira contar.
Se tivesse oportunidade de escolher um ator qualquer do mundo para trabalhar neste projeto qual seria? Como ainda não tenho o projeto em marcha, não sei bem quem poderia mencionar. Acho que o ator ideal tem sempre a ver com o que o papel requer.
Sente-se preparado para esse tipo de desafio ou preferia continuar no formato de curta-metragem? Sinto-me preparado, e é algo que gostava muito de fazer. Gosto muito de ambos os formatos, mas possivelmente estarei mais confortável com o formato de longa-metragem, é mais próximo do tipo de argumento que escrevo na banda desenhada.
Acha que ainda existe um preconceito com o formato de curta-metragem, com alguns críticos considerarem um estilo inferior às longas? Não acho que o problema tenha tanto a ver com a reação dos críticos. Creio que o problema tem mais a ver com o circuito de exibição, de divulgação e de comercialização das curtas. É muito mais complicado exibir uma curta e torná-la disponível de uma forma compensatória do que uma longa. Penso que os programas de curtas podem funcionar, acho que trabalhar esse formato de exibição fora dos festivais pode ser uma boa solução.
Antes de terminar a entrevista, resta-me perguntar: o Restaurante Diniz existe mesmo ou será que os espetadores podem parar de procurar este espaço? O restaurante “O Diniz” infelizmente não existe. Só no mundo da ficção é que se consegue almoçar por sete euros e meio num restaurante, ainda por cima no fim de semana.