por Rui Patrício
Consta ou parece (expressões, aliás, tão ao jeito da modernidade) que a descoberta do boomerang que regressa à mão que o arremessou (mesmo, às vezes, quando acerta no alvo) ocorreu por acaso, quando – aperfeiçoando desenhos e experimentando versões do artefacto que era destinado, entre o mais, apenas a ir e a atingir o alvo – surgiu um modelo que ia, mas depois voltava. Há descobertas assim, por acaso, e também os aborígenes tiveram a sua surpresa. Ora, este episódio ocorre-me muito, cada vez mais, quando vejo o uso e o abuso de processos (sobretudo criminais) que se faz na política, nas empresas e em instituições e organizações de diversos tipos, em especial no que toca à constituição de arguidos e a acusações.
Não é a primeira vez, nem a segunda ou a terceira – nem há de ser a última – que escrevo que considero um disparate clamar por demissões, afastamentos e quejandos por causa de constituições como arguido ou de acusações. Pois trata-se, por definição e comando constitucional e legal, de momentos precários e provisórios do processo, que nada mais são do que o que são, ou seja, a afirmação de suspeitas ou de indícios pela mão de uma ‘parte’ processual, afirmação (rectius, alegação) essa que um dia há de estar sujeita a escrutínio imparcial e com contraditório amplo e à exigência de um certo grau de convicção para decidir (sendo, aliás, certo que a constituição de arguido até tem, na pureza dos princípios, um propósito de defesa e não tanto de imputação). Por isso, retirar daí, e só por aí, consequências no que toca ao exercício político ou à gestão de empresas, instituições e outras organizações está longe, a meu ver, de ter justificação. Questão diversa é esses momentos processuais serem acompanhados de outras constatações ou considerações, que essas, sim, podem justificar decisões, mas não a constituição como arguido ou a acusação, elas mesmas. E, além de infundado, também é perigoso, o que também não é primeira vez que escrevo, pois abre a porta ao possível (e que seja só teórico já chega para o perigo) uso dos processos para governar ou gerir ‘à distância’, sabendo-se que um certo ato processual poderá acarretar a decapitação de um político ou de um gestor.
Mas não é principalmente isso que hoje aqui me ocupa, embora já me tenha alargado a repetir o antes dito e escrito. O que hoje mais me ocupa é dizer que vejo que políticos e gestores não aprenderam nada com os aborígenes, pois usam e abusam dos processos para arremessar a outros, seja para derrubarem adversários ou concorrentes (seus ou de outros que os pressionam a agir), mais a mais quando de outra forma o não conseguiriam, seja para rapidamente sacudirem a água do capote, seja para, vergados ao peso dos urros públicos ou semipúblicos próprios da sociedade da rápida barulheira a propósito de tudo e de nada, aliviarem os tremores de medo que a ameaça de má reputação lhes dá (ah, e como hoje se treme perante a reputação, esse cristal tão frágil quando endeusado, como se tudo fosse aparência e nada fosse substância).
E qual é o problema deste uso e deste abuso, motivados por estas razões ou outras (e muitas vezes também pela falta da quarta parte do corpo que é essencial juntar a coração, cabeça e estômago – parte essa já enumerei aqui numa destas crónicas quinzenais)? É – entre outros – exatamente o mesmo da acidental descoberta dos boomerangs que voltam à mão que os arremessou. Dito de outro modo, hoje sou eu a arremessar, amanhã serei eu a levar com ele, pois basta abrir a porta e dar início ao caminho, que ele depois faz-se. Agora estou todo contentinho de arma na mão, e zás cá vai ela, amanhã estou todo dorido (ou pior) com ela a dar-me em cheio no pescoço. Pois é. É preciso aprender com os aborígenes. E também com os ditos populares, em especial com aquele que reza que quem com ferro mata com ferro morre. Vistas curtas e de curto prazo normalmente pagam-se caras. Com língua de palmo, como também se diz popularmente. Ou pela boca morre o peixe. Pois é. A vista pode ser curta, mas a vida não é assim tanto.