Sempre que a sobrevivência fica arredada da equação, não chegando a colocar-se como um problema, é só à medida que os homens definham que se lhes impõe um verdadeiro confronto com os limites dolorosos que nos definem, de tal modo que logo vamos dessa dignidade um tanto balofa de quem nunca sofreu até à humilhação com que a vida leva o mais privilegiado dos seres a sentir-se como uma mosca, isto porque só um grande constrangimento nos devolve o nosso mais aguçado reflexo. Advogado há mais de 60 anos, fundador de uma das maiores sociedades de advogados nacionais, no passado dia 2 deste mês morreu José Manuel Galvão Teles, aos 84 anos. Em tempos membro do Conselho de Estado e embaixador de Portugal junto das Nações Unidas, além de dirigente nacional do PS, estava doente há vários anos. Era uma doença “incapacitante e teimosa”, nas palavras de Carmo Afonso, colega de profissão que o conhecia. E ele próprio reconheceu, numa entrevista dada ao Expresso, em 2018, o quanto esta lhe impôs uma luta diária. “Agora, luto ferozmente contra a doença e agarro-me à minha liberdade com todas as forças. Por vezes, corro riscos evitáveis só para me sentir livre.”
Numa crónica assinada nas páginas do jornal Público, Carmo Afonso homenageava Galvão Teles pela forma como se debatia com esse limite que o assolava como um abismo interior: “Levava a doença consigo, mas ia à mesma a todo o lado e não se coibia de nada que, mesmo com dificuldades acrescidas, conseguisse fazer. Atravessava qualquer sala e, se os seus passos o faziam tropeçar, subia e descia escadas em condições que fariam qualquer pessoa preferir o sossego de uma cadeira. Falava ao telefone apesar das palavras se deixarem enrolar. Era infinitamente mais teimoso do que a sua doença.” Logo depois recorda uma frase que lhe ouviu: “O meu corpo não tem dignidade nenhuma, mas eu tenho.”
No fim de uma vida marcada pela história política do país, a nota da sociedade de advogados que fundou e que confirmava a notícia da sua morte vincava como “foi um jovem empenhado na construção e na luta ativa pela democracia, um político convicto da importância dos direitos fundamentais e, também, um homem de família e um homem de cultura”. Quase invariavelmente, é a frieza o que se destaca deste tipo de notas, e até mesmo das homenagens pessoais, naquela adesão ao ciclo tão piedoso quanto estéril, ao vocabulário que parece menos compungido do que burocrático, dando um nó no saco da memória como se fosse apenas mais outro dos trâmites processuais. Também é isso que muitas vezes sobra, o rigor quase cruel que extravasa das leis e dos estatutos, parágrafos e alíneas que, mais do que fazer justiça a um homem, ajudam à desintegração daquele que foi amado e respeitado, ou temido, invejado, por alguns odiado também. É um modo de refrear certos ímpetos e paixões que muitas vezes despertam de novo quando nos abeiramos do fim. Neste caso, porém, subsistiu algo mais do que é comum. Se a nota da sociedade de advogados alinhavou uma espécie de currículo para as derradeiras distinções, num registo cerimonioso já destituído de grande fulgor, coube a Jorge Bleck, sócio da sociedade Vieira de Almeida e ex-estagiário de Galvão Teles, sublinhar as características que fizeram dele uma figura exemplar: “Que sentido ético no tratamento e respeito pelos colegas e pela profissão e na intransigente defesa dos clientes. Que força e denodado empenho colocava nos seus casos. Oferecia a vida por eles, se necessário fosse. E arriscava. Os seus interesses pessoais e até a sua integridade física, como sucedeu no mediático caso em que foi advogado da viúva de um afamado líder palestiniano, assassinado por um comando terrorista no Algarve.” E acrescenta: “Se assumia uma causa, era até à morte. Dando tudo; sacrificando tudo.”
A pertinência desta inflexão do lado do sacrifício não é um mero embalo da retórica, e o próprio Galvão Teles reconhecia que era aí que se jogava o que realmente importa. Na entrevista ao Expresso, reconhecendo-se, finalmente, “um cidadão normal da burguesia lisboeta, como tantos outros”, via o seu empenho político reduzido a uma questão quase de educação. E explicava isto com uma certa candura: “Combato os homens de direita que são burros e não gramo, e aí corro o risco de não me gramarem também.” Mas depois, para se definir como um homem de esquerda, entendia como não se chega lá com declarações mais ou menos solenes, e se se esforçava por ser honesto intelectualmente, não deixava de se pôr em causa: “Refletindo sobre a minha vida, penso que houve várias coisas que levaram a que o sentimento da justiça fosse forte em mim. Naquela altura dizíamos: ‘Estamos dispostos a perder o que temos por uma sociedade mais justa.’ Talvez também seja isto que ponho como limite para me considerar de esquerda ou não.” E quando o entrevistador lhe pergunta em que ficamos, se estaria ou não disposto a abdicar de tudo o que tinha pelos seus ideais, Galvão Teles reconhecia que “essa é a grande dúvida”. Ou seja, intimamente sentia-se um homem de esquerda, mas o desafio não se lhe tinha ainda apresentado de forma a que pudesse comprovar.
De resto, também não abdicava de um certo fio condutor entre a fé e as convicções políticas. «Não sei bem o que é a fé. Estou convencido de que Deus existe, ou pelo menos de que existe qualquer coisa, mas não tive coragem para ser um bom cristão. Tive coragem para ser um bom socialista, vá lá, baixei um grau. O cristianismo é um programa muito mais exigente e é uma coisa mais profunda individualmente. Naquela altura, tudo isto se entrelaçou, e assim começa a política.» Já lá iremos.
Antes, contudo, é importante lembrar que Galvão Teles provém de “uma ilustríssima família de juristas”, entre os quais se destaca o seu tio Inocêncio Galvão Teles, professor catedrático por cujos manuais quem quer que tenha passado pelo curso de Direito se viu obrigado a estudar, e que além de um jurista de peso que chegou a ser diretor da Faculdade de Lisboa, era também uma figura muito ligada ao Estado Novo. Sendo outras as coordenadas políticas pelas quais se guiou Galvão Teles, nunca deixou de reconhecer o peso e a influência que o nome tiveram no seu percurso, tendo iniciado a sua carreira no escritório de um outro tio. «Trabalhava no escritório do meu tio Zé Maria, mas tinha os meus clientes. Em 1967, por exemplo, já era advogado do António Champalimaud, que esteve alguns anos fora de Portugal por causa do célebre caso da herança Sommer», admite a certa altura. Na mesma entrevista, e explicando a forma como se fez valer do privilégio sem ceder inteiramente a ele, adiantava: «Competia-me a mim não tanto fazer o nome mas defendê-lo. Pelo menos, a minha missão era não o estragar. Quando comecei a exercer, tive a sorte de ter tido três ou quatro casos que não só foram bons como tiveram alguma graça. Portanto, fui sendo apanhado. Mas consegui ter uma vida para lá do escritório. Como durmo muito pouco, aproveito bastante o tempo. Não consigo estar sem fazer nada, nunca estou parado.»
O seu avô paterno, Adriano Telles, foi o homem que no início do século XX fundou os cafés A Brasileira, e já daí lhe vinha um certo balanço ancestral no sentido de cheirar os bolsos do horizonte para ver o que mais lhe podia este trazer. Depois teve a figura um tanto trágica do pai, que foi assumidamente uma influência intelectual decisiva: «O meu pai influenciou-me intelectualmente. Gostava muito de poesia, e eu herdei esse gosto. A minha mãe era uma senhora, nunca trabalhou. Era muito carinhosa e foi uma grande influência do ponto de vista afetivo. Quando me meti nas lutas académicas, foi considerada pelas tias uma comunista, porque defendia os filhos…» Aos 80 anos, naquela entrevista de vida, Galvão teles comovia-se ao falar dos pais, da mãe que não tivera condições de ser feliz, sofrendo por causa das doenças que perseguiam o marido, que deu por si várias vezes internado. Há um poema de Michaux que cabe bem aqui para dar nota desse desespero para que são lançados os que se vêm perseguidos pela depressão, e o título é “Cada vez mais exangue”: «A Infelicidade assobiou à suas crias e apontou para mim./ ‘É ele’, disse-lhes ela, ‘não o larguem mais.’/ E elas não mais me largaram.»
Depois há essa forma sinistra como a tragédia se põe a brincar com a rima. E Galvão Teles contava como o pai morrera no Hospital de Santa Maria, por causa de um enfisema pulmonar e como, nesse dia, a sua mãe que tinha ido visitá-lo… «Quando voltava para casa, ao fim da tarde, foi atropelada por um táxi, mesmo em frente à minha casa. Na altura, vivia connosco… Morreram ambos no mesmo dia. Enquanto nele seria natural, porque era um homem doente, ela era uma mulher sã…»
Isto explica, em parte, como foi dialogando com os seus através da arte, sendo apreciador de pintura, e orgulhando-se de o seu avô ter sido dos primeiros a apoiar artistas como Eduardo Viana ou Almada Negreiros encomendando-lhes os quadros que seguraram num outro nível as paredes d’A Brasileira do Chiado. Já a nota da Morais Leitão sublinha que, enquanto advogado, foi «uma representação fiel da história político-económica do nosso país, tendo defendido réus acusados de crimes políticos durante o Estado Novo, participou depois em processos internacionais pela paz e contra o ‘apartheid’, consolidando no Portugal democrático uma carreira dedicada às fusões e aquisições, mas também ao contencioso, tendo patrocinado algumas das ações cíveis de maior valor julgadas em tribunais portugueses e, com sucesso, alguns dos mais importantes e mediáticos processos-crime».
Há tantos outros aspetos dignos de nota no seu percurso, uma série de cargos de grande relevo, até no plano internacional, desde logo como, depois da Revolução dos Cravos, viria a assumir o cargo de Embaixador de Portugal nas Nações Unidas, em Nova Iorque, salientando-se o papel fundamental no processo de negociação da descolonização, bem como a oposição à ocupação de Timor-Leste, pela sua independência. Nos anos 70 e 80, fez parte da Presidência do Tribunal Internacional para Julgamento dos Crimes do Apartheid. Mas talvez seja na sua juventude que encontramos os sinais mais firmes do seu comprometimento político, da sua luta pela liberdade, indo ao ponto de desafiar a própria família e pôr em causa o seu privilégio. Nos anos 60, foi fundador e dirigente da Cooperativa Pragma (dissolvida posteriormente pela PIDE), editor dos Cadernos GEDOC, presidente do Centro Nacional de Cultura e colaborador da revista O Tempo e o Modo (e consequentemente interrogado pelo regime quanto às atividades desenvolvidas), candidato a deputado pela Oposição (CDE) nas eleições de 1969 e advogado de defesa em importantes processos políticos, como a defesa do arquiteto Nuno Teotónio Pereira. Opôs-se sempre à guerra colonial, intervindo e alertando publicamente para a situação política nacional. Mas isto é também uma forma de ceder às entradas curriculares, quando o melhor é ilustrar com um exemplo expressivo dessa forma que os filhos-família do regime foram encontrando de pregar algumas partidas: «Por exemplo, eu trabalhava numa coisa que era o direito à informação sobre a Guerra Colonial e tinha dois encargos. Um era roubar envelopes e carimbos, que tirávamos das instituições do Estado, e depois lá dentro metíamos um texto com informações sobre a guerra em Angola e sobre a PIDE. Como os envelopes vinham do Ministério, não abriam as cartas, que seguiam para tudo o que era gente importante. Até o Salazar recebeu. A PIDE andava doida! A minha função era descer do Campo Grande aos Restauradores e pô-las em todos os em todos os marcos dos Correios.»