Em cada quarto sente-se por vezes um arrepio visceral, quando do âmago do sono somos puxados, primeiro apenas por um fio, alguma coisa que desce e se intromete na teia onírica, e nos sacode, levemente primeiro, e depois começa a envolver-nos até nos puxar de volta à superfície. Seria industrioso aquele que soubesse verter em tom épico esse um para um que mais noites devastou. Não poucos de nós nos lembramos de nos ver encolerizados quando a noite mais se parece com um navio à deriva, e há um sacana de um mosquito a gozar longamente o prato, não se limitando a ferrar e deixar-nos o incómodo coceguento das babas, mas azucrinando-nos a paciência, rasando-nos o rosto, e instigando em nós uma fúria de tal ordem que nessas horas gostaríamos de poder convocar a força dos elementos para exterminar todos os mosquitos, fazê-los desaparecer da face da Terra.
Cuidado com o que desejas – é esse o aviso que, tendo nós ouvido tantas vezes, soa agora que, acometidos de uma fúria absurda, não só buscamos o mosquito entre as maiores imprecações, imaginando o gozo que nos daria esmagá-lo, ou até separar-lhes as ínfimas partes, e derramar enfim a gota de sangue que nos roubou com tamanho estardalhaço, mas também sonhando já com o dia em que não haja mais nenhum da sua espécie. E, naturalmente, não deixamos de nos questionar sobre a utilidade do mosquito, os motivos por que a criação sentiu necessidade de incluir nos seus processos este minúsculo ser irritante.
A verdade é que, apesar de todo o nosso embevecimento com a capacidade de nos deixarmos deslumbrar com o mundo natural, normalmente isso fica-se pelas paisagens e por formas e seres de uma certa ordem de grandeza, e, sobretudo, quando se trata de outros animais, se forem tão mais exóticos e raros. Não é bem o complexo dispositivo da natureza o que nos inebria, nem a articulação do que esplende na sua abundância e que tantas vezes chega mesmo a ferir o nosso gozo contemplativo. A verdade é que, no que toca à criação, não somos grandes apreciadores dos aspectos mais intricados, dos seus equilíbrios mais espantosos. E mesmo se tivermos em conta a impressionante quantidade de gente que anda sempre com Deus metido na boca, às vezes como se fosse uma mosca, chega a ser confrangedor depois o pouco interesse que há nos nossos dias pelos aspectos mais intricados da criação, e particularmente por esse universo ínfimo e admirável dos insectos. A sua simples presença nos tão sanitizados espaços interiores modernos é sinal de sujidade, ou ganha até conotações ominosas. Muitas vezes, deles só guardamos essa impressão de um zumbido que se confunde com a respiração dos mortos. A organização dos seus números é lida como um sinal inquietante, como se os insectos estivessem por ali a ligar os tracejados, desenhar as geometrias espontâneas de uma natureza com uma enorme potência de devastação. O primeiro sinal do muro que o Homem ergueu no sentido de se insular face à natureza é o silêncio, e o não resistir qualquer margem para a intromissão. Poucos manifestam o menor remorso por terem esmagado algum mosquito na parede, uma formiga no chão, por terem aperfeiçoado os seus reflexos e levado a cabo autênticas matanças com o mata-moscas. E não deixa de ser bastante estranho ouvir dizer que não só a diversidade como a própria quantidade destes seres tem vindo a cair de forma drástica um pouco por todo o mundo, havendo cada vez mais uma preocupação da parte da comunidade científica quanto à possibilidade de o abalo sentido por esses pequenos impérios poder vir a transformar-se numa crise planetária que rivalizará nos seus efeitos com a crise das alterações climáticas. Mas sem evitar o espelho de coisas últimas que têm dominado os discursos da contemporaneidade, Oliver Milman, um jornalista do Guardian especializado em questões ambientais, afasta-se o suficiente da tradição do apocalipse no seu fascinante livro “A crise dos Insectos” (Bertrand), e sob o pretexto de nos dar a ler um feixe de sinais que bem podem ser outra forma de soletrar a grande ameaça existencial que nos tem cercado, na verdade, ele consegue transcender o mero culto catastrofista, impondo um fulgor elegíaco que nos faz olhar ao nosso redor, encarar com assombro o mundo e também aquilo que resiste sob ameaça, o que ainda resta, levando em conta essa sumptuosa e delicada relojoaria que faz de todos nós as testemunhas e os participantes envolvidos numa obra ou até num génio estarrecedor. Nos últimos anos, não nos têm faltado exemplos de obras de divulgação científica admiráveis, e muitas vezes é difícil encontrar num romance ou num livro de poesia aspectos tão fascinantes como os que são congeminados neste género que, pela própria natureza da aceleração das eras, devido aos efeitos da actuação humana sobre o planeta, fazem com que algumas investigações com base nas descobertas científicas aproximem o regime dessas narrativas ao das grandes ficções distópicas do século passado. Veja-se como, desde o primeiro parágrafo, o livro de Milman adquire um tom profético, o qual não dispensa esse sopro capaz de fazer tremer a imaginação, desenhando um cenário em que a aproximação do fim, em vez de nos pôr diante de uma série de acontecimentos espectaculares, nos faz ouvir algo mais parecido com um estertor, não uma explosão, mas os soluços. “O primeiro indício do cataclismo foi o silêncio aziago. Com as suas bandas sonoras enfraquecidas, as regiões rurais, os jardins suburbanos e os parques urbanos tornaram-se imitações sem vida de si próprios. Já não se ouvia o zumbido de uma abelha, o cricrilar metronómico de um grilo, o zunido incómodo de um mosquito./ De súbito, as paisagens pareciam tão insípidas como as pinturas a óleo que haviam inspirado, talvez ainda menos vívidas, considerando a profusão de cores que havia sido removida da paleta ecológica com a perda das borboletas iridescentes e das vistosas joaninhas.”
Quantos romances temos visto publicados entre nós que ficam muito longe de conseguir um tão impressivo arranque. Desde o prólogo, em que Milman se lança num ousado exercício especulativo, lançando-nos algumas décadas no futuro, para tornar dolorosamente claro o cenário que temos diante de nós se o declínio dos insectos prosseguir ao ritmo actual, levando desde logo à extinção de metade das cerca de 10 mil espécies de aves da Terra, incapazes de se alimentarem. Fala-nos da enorme quantidade de cadáveres que de súbito se acumulariam sem que se pudesse contar com as moscas-varejeiras, os pulgões, os besouros, “e o restante cortejo de insectos que antes irrompia para decompor os mortos”. Se as bactérias e os fungos continuariam a desempenhar o seu trabalho, seriam incapazes de o fazer a tempo de nos livrar da acumulação de carcaças em decomposição e do cheiro pútrido que tomaria conta do ar. E depois, “como se o mundo à nossa volta conspirasse para nos dar a volta ao estômago, à carne e aos ossos subsistentes juntou-se um tsunami de fezes (…) com excrementos de animais selvagens e gado a marcarem o planeta de forma descontrolada, como uma praga nauseabunda”. Milman mostra uma competência narrativa invejável ao cruzar e pôr em diálogo os vários cientistas e entomologistas que estudam este cenário de desintegração da cadeia alimentar, que não demorará muito a fazer-se sentir de forma impiedosa no topo, onde nós estamos, sendo de esperar que mais de um terço da produção global das colheitas de alimentos seja afectada, estando dependente da polinização de milhares de espécies de abelhas e outras criaturas, como borboletas, moscas, mariposas, vespas e besouros. Naquele cenário prospectivo que traça logo no início do livro, o autor diz-nos que, “com o desaparecimento dos polinizadores, o tapete rolante global da produção alimentar sofreu uma travagem abrupta, e vastos campos de frutos e legumes foram deixados ao abandono”. Mesmo nos países ricos, a dieta das pessoas será fortemente afectada, com vários dos itens que hoje compõem qualquer tabela alimentar, a tornarem-se bens de luxo, e as refeições a ficarem, por isso, progressivamente mais insípidas e menos nutritivas. Milman consegue urdir num relato extraordinário uma impressionante colecção de informações e dados, fazendo-nos compreender esta “desconcertante reconfiguração rápida do nosso mundo” a que todos estamos a assistir, à medida que aquilo que antes parecia inesgotável e virtualmente infinito se mostra agora perturbadoramente vulnerável. Quando se torna cada vez mais provável que milhões de pessoas em todo o mundo venham a ter de se remediar com uma deprimente dieta de cereais e arroz, não tendo acesso a fruta, legumes de casca rija ou sementes, este jornalista inglês apresenta um enredo bastante convincente no sentido de nos provar que as provações a que seremos sujeitos em breve na sequência desta queda dos micro-impérios que nos cercam virá a sobrepor-se a qualquer guerra e pode mesmo rivalizar com a destruição iminente do colapso climático. Mas se em muitos aspectos o livro não se distingue de muitos desses catálogos apocalípticos, a sensação é que não há qualquer comprazimento em anunciar e articular uma série de desastres, mas é nos momentos em que descreve essa “dança intrincada” que tem decorrido ao longo de milhões de anos entre os insectos e quase todos os aspectos do ambiente terrestre, é ao desvelar essa “subvalorizada fundação para a própria civilização humana”, que Milman vai apontando não apenas para uma aparatosa cumplicidade entre nós e os insectos, como nos instrui sobre a deslumbrante arquitectura que subjaz e que, em último caso, deverá servir-nos de modelo e inspiração quando o colapso vier, por fim, humilhar a arrogante hiperestrutura em que assenta actualmente a nossa civilização. Já no que toca ao actual desdém ou mesmo horror que temos pelos insectos, o autor nota que, em parte, a razão por que levámos tanto tempo a dar-nos conta de uma queda que se cifra em 2,5% ao ano nas populações de insectos (sendo que nalgumas regiões a redução ultrapassa já os 90%) e a perceber o impacto que isso terá nas nossas vidas prende-se em parte com aspectos culturais e percepções limitadas. A verdade é que dos entre 5,5 a 30 milhões de espécies de insectos que se supõe que possam existir, apenas um milhão foram identificadas, e estamos ainda muito longe de compreender como seres que nos habituámos a detestar, merecem afinal ser vistos como “um conjunto de engenheiros ambientais admiravelmente afinados”. Assim, este catálogo de iniciação à compreensão a todo o mistério e aos benefícios destes seres que representam três em cada quatro espécies animais conhecidas na Terra, é uma verdadeira ode e uma prece em nome da sua preservação, lembrando como a indústria global do chocolate depende de minúsculos mosquitos que rastejam até às pequeninas flores das plantas do cacau em África e na América do Sul, e como os grandes responsáveis pelos trabalhos de limpeza e higiene no nosso mundo não apenas trabalham gratuitamente como ainda enfrentam o nosso desprezo, sendo inestimável esse serviço que prestam tanto as moscas varejeiras, como as moscas da carne e as moscas-soldado que desfazem animais mortos, folhas putrefactas e excrementos. Não só tratam dos nossos desperdícios putrefactos, ainda eliminam pragas indesejadas, e são por isso a primeira linha de defesa no nosso sistema imunitário num sentido mais abrangente, como, além disso, alimentam o solo, a camada de 15 centímetros que envolve o globo e que sustenta toda a humanidade.
Milman recolhe neste livro um número infindável de exemplos de como os insectos são cruciais aliados nossos, como as larvas de varejeiras que os cientistas utilizaram no tratamento de feridas gangrenadas, para não terem de recorrer a antibióticos. Lembra ainda que tem sido extraído óleo das larvas das moscas-soldados-negros para ser transformado numa forma de biodiesel, e se toda a nossa afabilidade vai para as abelhas, pelo mel, que além de doce é um potente anti-oxidante, ele nota como as tão desprezadas moscas são polinizadores prodigiosos, exemplificando com a mosca-das-flores que, com as suas riscas pretas e amarelas no abdómen, tem alguma semelhança com o abelhão, e que “é capaz de polinização vibratória, o que significa que se pode agarrar às pétalas e vibrar violentamente, libertando o pólen que está firmemente alojado nas anteras de uma planta”. Sempre que se ouve falar no misterioso desaparecimento dos insectos, são as abelhas que conquistam mais lágrimas, mas o facto é que “sem moscas não haveria uma cornucópia de tomates e mirtilos com que nos regalamos”. Provando esse destrato permanente a que estão sujeitos estes milagrosos agentes, que invariavelmente são retratados da forma mais repulsiva, basta lembrar que Satanás reclama entre os seus epítetos o de Deus das Moscas, ou senhor absoluto das moscas, aranhas, escorpiões (e sendo certo que estes últimos não são insectos, surgem tantas vezes a par destes entre as espécies que surgem amiúde como formas inquietantes e repelentes, associados “ao ventre negro do Caos” e aos piores sonhos dos homens.
O talento de Milman faz dele uma espécie de Virgílio levando nesta descida que permite vislumbrar e apreender alguns dos mistérios destes seres que se viram vulgarizados pela astronómica quantidade de que se compõem as suas populações, mas que, se encarados nas suas particularidades, e sobretudo nas tarefas que desempenham, se percebe que talvez Deus tenha perdido muito mais tempo com eles do que com os outros animais. E como um bom guia, o autor deste livro consegue tecer a sua própria teia e beneficiar dos testemunhos eloquentes dos tantos especialistas que consulta, apresentando-nos excelentes citações, como a da entomóloga Michelle Trautwein, para quem “cada um deles é como uma forma de vida alienígena com uma história de vida pormenorizada, muitas vezes tão pormenorizada que poderíamos apresentá-los como ficção se o quiséssemos”. Isto é o suficiente para nos levar a crer que o estudo destas espécies, que, em grande medida, permanecem um mistério enorme, seria como desbravar manuais de anatomia de seres de outro planeta, dando-nos a possibilidade de estudar e aprender com eles, com as suas capacidades. E se até ao momento a nossa ficção-científica apenas se tem inspirado nos insectos de forma a propor seres maléficos e atiçar em nós a sensação de estranheza e horror, Milman serve-se desta silenciosa crise existencial para relançar os dados da nossa curiosidade, propor um horizonte novo, não em termos de distância, mas reduzindo a escala do nosso foco, de forma a que seja rectificada a noção que temos quanto aos serviços que os insectos nos prestam., seja na hora de nos alimentarmos ou vestirmos, seja como impulsionadores das nossas indústrias ou do nosso prazer. Basta puxar qualquer fio solto nesta trama de negligência para se perceber a grosseria na importância e na atenção que tem sido dedicada aos insectos, e Erica McAlister, curadora sénior do Museu Natural de História Natural de Londres, lembra que actualmente “temos 50 mil pessoas a estudarem um tipo de macaco e uma pessoa a estudar 50 mil tipos de moscas”. Já Milman sublinha as dificuldades que enfrentam os taxonomistas e biólogos que dão nome às espécies e se esforçam por descobrir onde enquadrá-las num puzzle de milhões de peças, deparando-se “com um trabalho de Sísifo apenas para distinguir entre espécies aparentemente idênticas”. E, no entanto, não deixa de haver momentos em que o livro nos convence do imenso gozo que é desbravar este mundo, desde logo numa época em que a cultura popular se vê dominada pelas ficções aberrantes de super-heróis, não deixando de ser irónico o facto de ser aquele ramo da biologia onde se podem encontrar os únicos super-heróis no reino animal aquele pelo qual revelamos menos estima. Este livro dá-nos conta das façanhas de pequenos seres como as libélulas que conseguem manter-se estáveis em ventos fortes que derrubariam até o helicóptero mais avançado ou de um escaravelho-bosteiro que é de tal modo forte que, se fosse um humano, seria capaz de manter no ar seis autocarros de dois pisos. Fala-nos ainda de uma serie de criaturas bizarras, desde abelhas sem ferrão que se alimentam do suor e das lágrimas dos humanos, uma espécie de borboleta que tem um olho no pénis e alguns pulgões que podem dar origem a crias que já contêm os seus bebés – ou seja, no fundo dão à luz os próprios netos. Mas nem mesmo descrevendo a forma como os insectos respiram através de orifícios nos seus exosqueletos e como os seus olhos são infinitamente complexos, permitindo a alguns deles, como as libélulas terem um campo de visão de 360 ºC, nem isso tem impedido o seu acentuado declínio no que foi já rotulado como um “apocalipse ignorado”, estimando-se que, a nível global, a abundância de insectos tenha caído em 50%, ou ainda mais, nos últimos 50 anos. E as causas nem são surpreendentes, mas reflectem a dinâmica de “pilhagem ambiental” que tem sido levada a cabo de forma crescente nos últimos 200 anos, com as populações de insectos a sofrerem com a perda de habitat, a exposição crónica a misturas de pesticidas, a luz eléctrica, as espécies invasoras e as alterações climáticas, num processo que, a menos que seja travado, levará os ecossistemas terrestres e de água doce a colapsar. E se é certo que os insectos irão persistir, o seu mundo dará lugar a uma massa mais homogénea, “em que uma profusão de espécies ecléticas e fascinantes é substituída por um mais pequeno e provavelmente mais insípido grupo de criaturas, equipadas para sobreviver aos tormentos do Antropoceno”. Se nada disto é propriamente surpreendente, e se muitos de nós nos lembramos de engolirmos insectos quando andávamos de bicicleta em miúdos, e de não ser invulgar ser-se picado por vespas, se nos temos dado conta até de que se tornou difícil chegar ao fim de uma viagem mais longa de carro e ter no pára-brisas uma colecção minimamente interessante de insectos esmagados, se este livro não se fica por mais outro esboço de uma narrativa de desastre, capaz de nos arrepiar com as sugestões do que se alterará ainda no tempo das nossas vidas em consequência de “uma cadeia alimentar radicalmente perturbada”, isso liga-se à capacidade extraordinária de Milman para provocar em nós um verdadeiro assombro perante a natureza oculta e labiríntica das espécies de insectos que nos rodeiam, fazendo-nos compreender estas extinção como a remoção de “fios insubstituíveis à tapeçaria da vida, privando-nos de criaturas que desempenham funções importantes e tornam o mundo um lugar mais vivo e interessante”. Esta é, por isso, a mais improvável das elegias, e se hoje “a maioria dos investigadores de insectos tem dificuldades em obter financiamento para o seu trabalho, preteridos uma e outra vez a favor de mais uma dissertação sobre um grande mamífero”, se é ainda a “megafauna carismática” – ou seja: tigres, rinocerontes, elefantes e ursos-polares – que domina todos os discursos e esforços de conservação, sendo estes animais que estão representados nos filmes, publicidade, peluches e logótipos de equipas desportivas, este jornalista consegue cativar-nos em vez de se limitar ao guião habitual, que se limita a fazer suceder hipóteses de devastação e elevar mais ainda a nossa ansiedade, procurando antes guiar-nos nesses sub-reinos, não no sentido de nos encher de remorsos em relação a todos os pequenos seres que esmagámos, mas no de adquirirmos respeito face ao engenho e à beleza das existências e do antiquíssimo e venerável equilíbrio que perturbamos. Em vez de um sentimento de terror, o livro encaminha-se para uma forma de luto, produzindo um desgosto em relação à forma grotesca como temos desbastados e envenenado as nossas paisagens, alterando a composição química da nossa atmosfera e criando desertos biológicos na procura do progresso e do esteticismo. “Só agora os extensos éons da história dos insectos coincidem com a nossa breve mas transformadora presença”, vinca Milman. Se o planeta enfrenta o seu sexto episódio de extinção em massa, é a primeira vez que os insectos vêem os seus números e a sua diversidade seriamente impactados. A catástrofe somos nós, e “a tragédia será o quão empobrecidos ficaremos, ambiental, espiritual e moralmente”. Por outro lado, no caso dos insectos, bastaram algumas observações para concluir que, a partir do momento em que lhes damos descanso, logo estes demonstram uma capacidade de recuperação extraordinária, e o autor adianta que, em grande medida, algumas das soluções no futuro deverão passar por estreitar mais ainda os laços e aumentar a nossa dependência em relação a estas pequenas criaturas. “As sociedades ocidentais talvez também tenham de lidar com o conceito contraintuitivo de comer insectos como forma de os salvar. (…) Os bichos-da-farinha e os grilos, ambos excelentes fontes de proteína, podem multiplicar-se em grandes números em espaços reduzidos, são uma alternativa menos destrutiva às dietas ocidentais tradicionais e ajudariam a aliviar as pressões originadas pela agricultura que atacam os insectos, como as alterações climáticas, a utilização de químicos e a degradação da terra. Este livro faz-nos compreender aquela imagem de “um vigário excêntrico com uma paixão por borboletas”, esse desejo de capturar finos espécimes e fixá-los com alfinetes, e que, na era vitoriana, a actividade de coleccionar insectos tenha chegado a assumir bastante popularidade, e faz-nos pensar nessa proximidade inquietante entre nós e essas criaturas tão denegridas, numa narrativa como “A Metamorfose”, de Kafka, e na forma como Nabokov, que, desde a mais tenra idade, veio a dedicar à entomologia não menos horas do que aquelas que dedicaria à arte que o imortalizou, e foi buscar a essa ínfima escala uma capacidade de exame e percepção que comparecem nas suas descrições e que fizeram dele um dos mais argutos génios literários do século XX. Ora, o seu empenho no estudo da morfologia e taxonomia, que o levou a deixar centenas ou até milhares de ilustrações desses seres infinitamente intrincados, e isto com um nível de detalhe quase microscópico, traça um óbvio paralelo com a sua capacidade de seguir pistas complexas e formular teorias audazes e imaginativas. No fundo, as borboletas eram a sua metáfora preferida, e talvez ele tenha percebido que é um verdadeiro privilégio ter sido dada a hipótese aos homens de investigarem esse fabuloso mapa vivo e a articulação desses engenheiros com a mais vasta arquitectura planetária. Como se Deus se tivesse dispensado de apontar nesta ou naquela direcção, permitindo que em cada quarto se sentisse um arrepio e um estremeção, perante estes seres mínimos capazes de nos despertar e de nos puxar para um confronto tão absurdo na desproporção das forças, quanto instrutivo. Como se o homem devesse encontrar uma forma de descer à condição do insecto, à sua humílima estatura, e aprender alguma coisa com ele. Essa é a metamorfose mais exigente, e o que nos diz é que estiveram sempre por perto estas presenças discretíssimas, beliscando-nos, enervando-nos, como que a pedir a nossa atenção. E nós sempre a ignorá-los ou a dar cabo deles. Parece uma metáfora para qualquer coisa mais profunda e mais vasta. Cabe a cada um decidir o seu alcance.