Médicos. “Quando saí do SNS tive uma sensação de alívio”

Os médicos Pedro Figueiredo, Mara Marques e Maria João Tiago refletem acerca do estado atual do SNS, estabelecendo uma comparação com o setor privado. A psicóloga Eunice Caracol explica em que consiste o burnout.

Há um ano fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS), Pedro Figueiredo, de 40 anos, de Leiria, respira de alívio. “Andamos todos a roçar no burnout e quando alguém entra em burnout, deixa de se preocupar. Deixamos de nos preocupar com os resultados (óbitos, doenças que evoluem, etc.) e, por vezes, desistimos e ficamos de baixa. Em termos de condições, no privado, temos tudo. Se quiser ser honesto, eu vou trabalhar mais sempre porque tenho a pressão de ter resultados. Não é só a remuneração mais elevada, mas também a contabilização dos atos”, explica em declarações ao i o médico de Medicina Geral e Familiar que exerce exclusivamente no setor privado há um ano.

“Sentia-me completamente subvalorizado no SNS. Sou médico e estava ali para servir os ‘senhores’. As pessoas entendem que quando pagam pelos serviços, é muito mais importante do que quando não pagam. Se eu der um tratamento caro a um doente, ele cumpre. Respeitam-me mais no privado. Temos uma formação excelente, a nível de faculdade e especialidade, por isso é que querem contratar-nos noutros países. Os utentes vão ao privado e as pessoas entendem que estão a lidar com um médico melhor, mas pode ser exatamente o mesmo que encontram no público”, desabafa. 

“Cada vez mais evoluímos no conhecimento médico e os alunos saem a saber mais. Temos médicos altamente capacitados, tiveram uma formação muito boa, boas notas, e são comparados com outros que têm menos conhecimentos e são subvalorizados face ao mais velhos. Eu e a minha esposa estivemos para sair do país. Se não fossem as nossas filhas, faríamos parte das estatísticas. Os problemas estavam completamente encobertos. A manta já não cobria os pés e ainda esticámos para mais um lado”, continua, refletindo: “Todos os anos, pessoas emigram e não têm intenção de voltar e vai sair muita gente até 2025. Estamos muito envelhecidos e, a certa altura, o sistema vai colapsar. Um não serve para tapar os buracos todos”. 

“Tinha todos os sintomas de burnout: nenhum prazer em trabalhar, irritabilidade, alterações no padrão de sono e isto teve impacto tanto no trabalho como em casa. Ao final da semana, as coisas melhoravam, mas à medida que a segunda-feira se aproximava… Tudo piorava porque sabia aquilo que enfrentaria outra vez”, admite Pedro. “Quando saí do SNStive uma sensação de alívio. Pensei: ‘Vou livrar-me disto’. Pode parecer mal, mas é a realidade. Atingi o ponto de rutura. A não ser que tudo mude, que haja uma grande volta no SNS, não me imagino a regressar”.

“Já se sabe que o burnout é uma doença profissional que afeta cada vez mais portugueses. Nas manchetes dos jornais podemos encontrar títulos preocupantes como ‘Síndrome do burnout afeta 13% da população portuguesa’, ‘Portugal é o país da União Europeia onde os trabalhadores mais correm o risco de sofrer burnout?’, ‘Stresse e burnout custam €3,2 mil milhões de ano às empresas’, ‘Portugal é o terceiro país com maiores níveis de stresse da Europa’, entre muitos outros. Também sabemos que a covid-19 não foi generosa com os/as trabalhadores, pelos mais diversos motivos, ora porque tiveram que passar a trabalhar em casa, ora porque ficaram sobrecarregados pela ausência dos colegas que ficaram doentes, etc.”, começa por explicar a psicóloga Eunice Caracol.

“O burnout tem sido cada vez mais estudado e é uma preocupação também dos/as psicólogos/as portugueses que se dedicam ao estudo deste síndrome. Como já se sabe, o burnout é caracterizada pela sensação de esgotamento ou exaustão emocional, a redução da sensação de realização profissional e pessoal e o sentimento de eficácia relativamente ao trabalho, e também a sensação de maior distanciamento emocional dos relacionamentos no trabalho”, afirma a profissional mestre em Psicologia Clínica pelo ISPA – Instituto Superior de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.

“Toda e qualquer pessoa que seja profissionalmente ativa corre o risco de ficar em burnout, se não se acautelarem os riscos psicossociais inerentes ao trabalho. Da mesma forma que acautelamos questões ergonómicas, como levantar o ecrã do computador, ou assegurarmo-nos de que a cadeira em que trabalhamos é a mais adequada, também temos que acautelar questões como as exigências laborais, o work-life balance, qualidade da liderança, assédio laboral, entre outras. As pessoas não ficam logo em burnout. Não, é preciso algum tempo de exposição a situações de stresse laboral, para que eventualmente o quadro evolua para um quadro de burnout. Por isso, cada vez mais é importante que os CEOs das empresas privadas e os grandes Órgãos de Gestão públicos adotem medidas que primem o bem-estar psicológico e emocional dos seus/suas funcionários”, explicita a Psicóloga da Saúde Ocupacional do Centro Hospitalar Universitário do Algarve. 

De seguida, lembra que a Organização Mundial de Saúde (2020) recomenda validar emoções, como o stresse ou o sentimento de pressão; importância de gerir a própria saúde mental e bem-estar psicossocial, a par da física; recurso a estratégias de coping úteis, como manter o contacto com família e amigos, o descanso entre trabalho ou turnos, alimentação saudável, prática de atividade física, entre outras; evitar recurso ao consumo de substâncias, como o álcool, tabaco ou outras e confiar na família e nos colegas de trabalho que também possam estar a passar por situações semelhantes. “Do que estamos à espera para mudarmos culturas organizacionais e priorizar o bem-estar emocional dos/as colaboradores/as?”, questiona. “Colaboradores felizes e saudáveis são mais produtivos e economicamente rentáveis”, finaliza.

Quem concorda com Pedro é Mara Marques, de 37 anos, das Caldas da Rainha, que decidiu rescindir contrato com o SNS em agosto de 2021. “Aquilo que acontece muito no SNS é que os médicos estão assoberbados com trabalho. O número de horas de trabalho não é suficiente para dar resposta a tudo aquilo que surge. Isso gera muita ansiedade e imensos casos de burnout”, assume, sendo que, em 2019, no ano anterior ao do surgimento da pandemia, aproximadamente 66% dos médicos portugueses relatavam um nível elevado de exaustão emocional, 39% demonstravam níveis elevados de despersonalização e 30% referiam uma elevada diminuição da realização profissional.

Estas foram conclusões de um estudo nacional financiado pela Ordem dos Médicos sobre burnout nos médicos em Portugal, que foi publicado na Revista da daquela Ordem. Além das percentagens mencionadas, cerca de 45% dos inquiridos (12 580 médicos no total) apresentaram níveis de ansiedade elevados e em 21% foram identificados sinais de depressão.

“Os médicos de família têm listas de doentes enormes, muito maiores do que era desejável, e são os responsáveis máximos pelos doentes. Recai sobre nós uma responsabilidade e um peso grandes. Muitas das vezes, temos de trabalhar mais horas do que as 40 estipuladas e isto prejudica a vida pessoal. É uma bola de neve”, lamenta a profissional de saúde. “Outra coisa que acontece é que os médicos não são ricos como as pessoas pensam: atualmente, com a inflação e a crise que vivemos, o facto de muitos serem mal remunerados faz com que precisem de trabalhar ainda mais. Acumulam locais de trabalho para fazer face às despesas. Sobretudo, quando vivem em grandes cidades. E ao acumularmos mais trabalho, até em turnos completamente distintos, não temos tempo para atividades que nos poderiam ajudar a distrair e descomprimir como o exercício físico”, diz, adiantando que “é por todos estes motivos que a classe médica sofre cada vez mais de depressão, ansiedade e outra sintomatologia”. 

“No meu caso, aquilo que senti foi que o SNS não me permitia ser a médica de família que queria ser. Tenho brio, quero dar o meu melhor aos doentes e não conseguia fazê-lo em 15 minutos de consulta cronometrados. E é isto que faz muitos colegas abandonarem o SNS. Realmente, quem gosta de Medicina, de forma genuína, não se sente bem no setor público. Como é que nos desligamos das condições atuais do SNS?”, questiona. “É impossível”.

 

Comportamentos autolesivos, desesperança e suicídio

“Tivemos uma pandemia em que foram feitas horas extraordinárias. Os médicos já vinham de trás completamente desmotivados e com muitas horas extra, sem tempo para a família nem para eles mesmos. Passou a pandemia e, na realidade, nada mudou. Cada vez mais se veem médicos deprimidos, exaustos e sem vontade de nada”, narra Maria João Tiago, assistente graduada na USF São João da Talha, em Loures, 

“Isto deve-se ao desinvestimento que há no SNS. Por exemplo, hoje não consigo sequer passar baixas ou dar uma consulta de forma normal porque o sistema informático vai abaixo constantemente. Isto, a falta de papel e tinteiros para as impressoras e outros problemas que já são conhecidos cansam-nos. Demos tudo aquilo que conseguíamos, na pandemia, e fomos ainda mais além”, diz a secretária regional de Lisboa e Vale do Tejo do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). “Vão exigindo cada vez mais, não mexem nas grelhas salariais e esta sobrecargaleva a depressões subdiagnosticadas e a elevadas taxas de suicídio entre os médicos”.

“Os casos de suicídio não são objetivados. São escondidos pela vergonha. Recentemente, falei com um colega que estava completamente em burnout e gritava comigo só porque queria ajudá-lo. Dizia: ‘Vocês vão ver o meu suicídio!’. As pessoas continuam a trabalhar apesar de estarem mal. Os próprios médicos, muitas das vezes, não reconhecem que chegaram ao limite”, conta, sendo que João Pedro (nome fictício), de 28 anos, interno de uma especialidade cujo nome prefere não referir, apercebeu-se de que tinha de abandonar a Medicina para se reencontrar e, acima de tudo, colocar a saúde mental em primeiro lugar.

“Comecei a ter problemas psicológicos graves no final do Ensino Secundário. A pressão para ter boas notas era tão grande que dei por mim a cortar-me. Os anos foram passando e fui conseguindo controlar este comportamento, mas voltou em força quando comecei o Ano Comum. Podemos dizer que é o meu mecanismo de coping”, sublinha. “Lidamos com muito stress, vida, morte… Honestamente, ensinam-nos muitas coisas, mas ninguém perde tempo a perguntar se estamos bem e a tentar que percebamos que também devemos ser uma prioridade. Para cuidarmos dos outros, temos de cuidar de nós primeiro”, confessa o jovem que é seguido em Psiquiatria e frequenta igualmente sessões de psicoterapia.

“Estou atrasado no meu percurso em relação aos meus colegas, mas valeu a pena pôr tudo em stand-by para melhorar. Se não o tivesse feito, acho que já não estaria cá”, frisa João Pedro, indo ao encontro das ideias transmitidas em Suicídio entre médicos e estudantes de medicina, um artigo de revisão de A.M.A.S. Meleiro, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sendo que no Brasil esta realidade é estudada, ao contrário daquilo que acontece em Portugal.

“Segundo trabalhos de Millan et al. e De Marco et al., alunos de medicina com melhor performance escolar encontram-se num grupo de alto risco de suicídio. Os referidos autores conjeturam que, por serem pessoas mais exigentes, estariam mais propensas a sofrer as pressões impostas diante de qualquer falha. O estudante passa a ter culpa pelo que não sabe e com isso se sente paralisado pelo medo de errar. Esses quadros caracterizam-se por sentimentos de desvalia e impotência, que, muitas vezes, são responsáveis por ideias de abandono do curso, depressão e suicídio”, lê-se. “Numa revisão da literatura disponível sobre suicídio entre médicos, verificamos que em toda parte do mundo a taxa de suicídio na população médica é superior à da população geral. Entre os médicos que cometeram suicídio, colegas próximos têm referido mudança no comportamento e aumento de indecisão, desorganização e depressão por dois ou quatro meses precedendo o suicídio, como na população geral”, é salientado.

“Chegamos a sentir-nos culpados por algo aparentemente simples – e a que temos direito – como ficarmos com os nossos filhos doentes em casa. Porque sabemos que os nossos utentes ficam sem consulta e não sabemos quando a terão”, desabafa Maria João Tiago. “Uma coisa que devia ser encarada de modo natural acaba por nos causar preocupação. Quando quem cuida dos outros nem doente pode ficar ou pode ter um filho doente… Queremos uma sociedade assim?”, pergunta. “Tenho 30 anos de Medicina e não me lembro de ver um panorama tão mau como o atual”.