Há um ano, Henrique Gouveia e Melo, chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), fez um discurso implacável para os fuzileiros – «não quero arruaceiros na Marinha» – na sequência de desacatos que resultaram no homicídio do agente da PSP Fábio Guerra. Desta vez, na Madeira, a bordo do NRP Mondego, o ‘patrulhão’ onde 13 militares recusaram embarcar para fazer o acompanhamento de um navio russo a norte do Porto Santo, o almirante, novamente sem tibiezas, voltou a ser duro nas palavras que dirigiu a toda a guarnição de 29 homens.
«Sinceramente, não vos consigo entender, nem perceber bem as vossas motivações e certamente a vossa interpretação peculiar do dever de Tutela e de Disciplina», afirmou, lembrando que podem estar em causa, «para além das infrações disciplinares, questões de foro criminal».
Lamentando este «ato de insubordinação», frisou que «a Marinha não pode esquecer, ignorar, ou perdoar atos de indisciplina». E deixou ainda uma questão aos militares: «Que interesses os senhores defenderam? Os da Marinha não foram certamente, os vossos muito menos».
O almirante não vive alheado do burburinho criado em torno de uma potencial candidatura sua a Belém, para a qual contribuiu a sua notoriedade no processo logístico de vacinação durante a pandemia, e aponta mesmo que casos como este do navio Mondego podem estar relacionados com os índices de popularidade que lhe têm sido atribuídos nas sondagens para as presidenciais.
«Parece-me que muitas motivações para o circo que se instalou à volta deste caso, apesar da sua gravidade, não têm unicamente a ver com este facto mas são por causa da popularidade que me tem sido atribuída», confessa em declarações ao Nascer do SOL.
Esta ideia também é alimentada entre antigos militares que reconhecem no almirante a capacidade de não ter medo de dizer o que pensa. «O problema aqui está em determinadas elites políticas para quem o cidadão Gouveia e Melo é perigoso», corrobora o major-general Carlos Chaves, rejeitando que a recusa dos 13 militares do NRP Mondego em participar numa missão tenha que ver com a falta de condições a bordo do navio. «É uma questão puramente política», reafirma.
Em declarações ao Nascer do SOL, Carlos Chaves sublinha que Gouveia e Melo, «pelas suas características de afirmação que tem tido e não é só de agora, já vem do tempo da covid-19, é uma pessoa que nos habituou a dizer claramente o que pensa, a ser um respeitador estrito e rigoroso da lei e do seu cumprimento».
Por essas razões, acredita que o antigo coordenador nacional da task force para o plano de vacinação contra a covid-19 «é um homem a abater» para muitos no seio da classe política.
«Mete medo a muita gente, nomeadamente a esses políticos que na nossa praça abundam que vêm de carreiras partidárias, familiares, mafiosas, e que sabem que com ele num lugar de responsabilidade há muita coisa que acabaria», atira o major-general, que é também presidente do conselho de fundadores da associação Viriatos.14.
Apesar de Gouveia e Melo nunca ter assumido publicamente qualquer pretensão de encabeçar uma candidatura às eleições presidenciais que ditarão a sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa – ainda que também não tenha excluído essa possibilidade –, Carlos Chaves defende que «não se pode pedir a um cidadão que quando recuperar a cidadania plena, isto é, quando deixar de ser um militar ativo, recuse ser um cidadão de plenitude».
Por outro lado, acrescenta, a forma como o Presidente da República se pronunciou sobre o assunto também leva a crer que haja um certo bloqueio à incursão de Gouveia e Melo no mundo da política.
Dedo do PCP no ato de insubordinação?
Tal como o Nascer do SOL já escreveu, Marcelo Rebelo de Sousa nunca escondeu que uma candidatura do almirante representaria um risco para a direita nas próximas presidenciais. Mas o facto de o chefe de Estado, que é o comandante supremo das Forças Armadas, se ter escusado de fazer qualquer comentário sobre o comportamento dos militares que recusaram embarcar no NRP Mondego é, pelo menos, revelador das suas reservas em apoiar o tom mais duro adotado pelo chefe do Estado-Maior da Armada.
Além do panorama eleitoral, também se arriscam leituras mais geopolíticas e, em contexto de guerra na Ucrânia, há quem levante a questão sobre se o PCP não estará por trás do movimento dos 13 militares que se recusaram a participar na missão de acompanhamento do navio russo.
«O PCP tem a dimensão que o povo português lhe deu, mas são ativistas e não nos podemos esquecer da importância da missão que o navio russo estava a fazer e para a qual queria estar à vontade, isso são fatores adicionais», diz fonte militar, lembrando os laços históricos dos comunistas à Armada e apoiando-se na influência que o PCP ainda hoje mantém na Associação Nacional de Sargentos (ANS), que se pronunciou em defesa dos militares, contrariando a posição do almirante Gouveia e Melo neste caso.
O presidente da ANS, Lima Coelho, chegou mesmo a elogiar a «postura de coragem, rigor e dignidade» dos 13 elementos da guarnição que rejeitaram embarcar no navio, denunciando a «escassez de verbas e escassez de meios» que leva a que se realizem «missões muito prolongadas sem a necessária manutenção» das embarcações.
Entre as razões invocadas pelos marinheiros que se insubordinaram estava precisamente a falta de condições de segurança, nomeadamente o facto de um motor e um gerador de energia eléctrica estarem inoperacionais e de o navio não possuir um sistema de esgoto adequado para resíduos inflamáveis.
Contudo, o primeiro-tenente Vasco Lopes Pires, comandante do navio NRP Mondego, já contrariou esta argumentação e deu garantias de que havia «condições de segurança» para o navio largar do Funchal e cumprir a sua missão.
Carlos Chaves também não vê fundamento nas razões invocadas pelos militares: «Acha possível que um oficial vá num navio em que ele sabe que não tem condições e pode ir ao fundo? Isto é uma questão básica de bom senso. Há algum comandante que seja suicida e se meta num navio que sabe que não tem condições para a missão que vai fazer? Até se inventam ondas de dois metros, é brincar com isto tudo».
Acresce ainda a questão das remunerações, que estão na base da insatisfação de muitos militares, que argumentam ser esse um impedimento ao cumprimento das funções com dignidade.
«Há uma necessidade de equilíbrio das remunerações dos diferentes servidores do Estado quando comparadas com as das Forças Armadas», atenta uma fonte do Exército ao Nascer do SOL. Os avisos de que este problema «está a desgastar a coesão» das Forças Armadas têm sido insistentes nos últimos anos, mas agora ganham destaque sobretudo na Marinha devido às longas ausências dos militares.
«Ignorar o problema pode estar a criar um pano de fundo que compromete não só a Marinha como as outras forças militares», alerta também uma fonte da Força Aérea.
Questionado pelo Nascer do SOL sobre a questão das remunerações e da carência de verbas, bem como a falta de pessoal, que obriga à repetição de escalas e a longas ausências em mar, o almirante Gouveia e Melo fez um longo silêncio e não respondeu.