O processo de revisão constitucional em curso

O processo de revisão constitucional em curso pretende constitucionalizar a posteriori as gravíssimas violações dos direitos fundamentais ocorridas durante este período.

Por Luís Menezes Leitão

Está a decorrer no Parlamento presentemente um processo de revisão constitucional, a que o país não tem prestado a devida atenção. Deveria, no entanto, fazê-lo, uma vez que do mesmo podem resultar alterações à Constituição que deixarão os direitos fundamentais dos cidadãos claramente desprotegidos.

Na verdade, durante a pandemia, o país viveu à margem da Constituição vigente, tendo o Governo criado crimes de desobediência por simples decreto e restringido direitos, liberdades e garantias por resolução do Conselho de Ministros, quando a matéria é da competência do Parlamento. Para além disso, as autoridades de saúde, sem qualquer base constitucional, sujeitaram os cidadãos a períodos de confinamento obrigatório, mesmo quando os mesmos não tinham comprovadamente qualquer doença contagiosa. Por isso o Tribunal Constitucional já veio afirmar que dos 32 casos que teve que decidir sobre medidas tomadas durante a pandemia, declarou a inconstitucionalidade em 23, uma média de 72%. 

 

O processo de revisão constitucional em curso pretende, porém, constitucionalizar a posteriori as gravíssimas violações dos direitos fundamentais ocorridas durante este período. O projecto do PSD vai mesmo ao ponto de alterar o art. 19º da Constituição, permitindo o decretar o estado de emergência em qualquer situação de «emergência de saúde pública», alargando assim amplamente a possibilidade de suspensão dos direitos fundamentais por razões de saúde pública.

Mas, mesmo sem qualquer estado de emergência, os projectos do PS e do PSD convergem na proposta de alteração do art. 27º da Constituição, que regula o direito à liberdade, passando esta norma a prever a possibilidade de as pessoas serem privadas da liberdade em caso de doença ou infecção graves, ou mesmo havendo uma simples suspeita das mesmas. 

O projecto do PS adita uma alínea i) ao nº 3 do artigo 27º da Constituição, falando eufemisticamente em «separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial». Para o PS bastará assim uma suspeita de doença ou infecção grave para que as pessoas sejam ‘separadas’ por simples decisão administrativa, sem tempo determinado, não se sabendo para onde irão esses ‘separados’, havendo apenas possibilidade de recurso para o tribunal, o que nada garante os seus direitos, pois já existe a providência de habeas corpus.

 

Já o projecto do PSD é menos eufemístico e também mais concreto, acrescentando igualmente uma nova alínea i) ao art. 27º, nº3, da Constituição a prever o «confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infectocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente». Neste caso, já se exige pelo menos uma confirmação judicial, e uma doença infectocontagiosa efectiva, não bastando uma mera suspeita. Não deixa, porém, de ser preocupante que seja consagrado na nossa Constituição que os cidadãos podem ser privados da liberdade, a qualquer momento, sempre que sofram de uma grave doença infectocontagiosa, independentemente de qualquer estado de emergência.

 

Também em relação ao projecto do PS, destaca-se a revogação da proibição constante do art. 35º, nº5, da Constituição, da proibição de atribuição de um número nacional único aos cidadãos, o que demonstra a despersonalização das pessoas, que para o Estado passarão a ser apenas números. A propósito, alguém se recorda que o slogan de campanha do PS de Guterres em 1995 era «os Portugueses não são números, são pessoas». Muito mudou o PS desde então.

No quadro da garantia constitucional da propriedade, constante do artigo 62º da Constituição, salienta-se a consagração expressa no projecto do PS da sua função social, o que não sendo propriamente novidade nas constituições europeias, faz correr o risco, neste quadro de medidas legislativas anunciadas pelo Governo contra a propriedade privada, de enfraquecer ainda mais a sua garantia constitucional, que já estava a ser interpretada de forma muito restritiva pelo Tribunal Constitucional. O Governo ficaria assim autorizado a entrar pela casa das pessoas adentro, designadamente para as arrendar ou vender a terceiros.

 

É assim altamente preocupante para os direitos fundamentais dos cidadãos o processo de revisão constitucional em curso. Portugal corre o risco de se transformar num regime autoritário, onde os direitos fundamentais dos cidadãos estarão desprotegidos.