Esta arbitragem não se recomenda

É um ‘annus horribilis’ para a arbitragem portuguesa. A contestação não pára de aumentar e muitas das queixas são justificadas. O setor vive de contradições difíceis de entender.

Há décadas que criticar os árbitros é um desporto nacional. À medida que o campeonato avança aumenta o foguetório e o ambiente está cada vez mais pesado. As queixas vêm de todos os lados; os clubes grandes criticam as arbitragens dos seus jogos e dos jogos dos rivais, e os clubes mais pequenos queixam-se da dualidade de critérios, sobretudo quando defrontam os ditos grandes. O pior é que não se trata de clubismo doentio, a esmagadora maioria das queixas tem razão de ser. 

A Liga Portugal, entidade que organiza as competições profissionais, pagou quase seis milhões de euros em serviços de arbitragem para a época 2022/23. Depois, o Conselho de Arbitragem – órgão da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) – faz o resto, que é regular toda a atividade, incluindo as nomeações para os jogos. 

Os árbitros do quadro principal são profissionais e não podem queixar-se de serem mal pagos. Recebem cerca de 1500 euros por cada jogo da primeira liga e 1050 euros da segunda liga, têm subsídio de treino de 470 euros, recebem subsídio de alimentação e as despesas de deslocação são pagas ao quilómetro. O VAR recebe cerca de 420 euros por cada jogo e o AVAR (assistente do VAR) ganha pouco mais de 200 euros. Acrescem a estes valores as remunerações de jogos internacionais que são pagas pela UEFA e FIFA ou por outras federações. Em fevereiro, João Pinheiro, o melhor árbitro nacional em 2021/22, fez quatro jogos, um da primeira liga, outra da segunda liga, um da Liga Europa e um do campeonato grego, e Artur Soares Dias fez três jogos da primeira liga, um da Liga dos Campeões e um liga da Arábia Saudita. 

O Conselho de Arbitragem dá todas as condições para que árbitros e vídeoárbitros possam fazer um bom trabalho.

Quem está na vídeoarbitragem, na Cidade do Futebol, recebe formação e tem sessões teóricas e práticas em simulador todas as semanas. Mesmo assim cometem erros grosseiros e inexplicáveis, que muitas vezes influenciam o resultado de um jogo.

VAR que não aparece
O Video Assistant Referee (VAR) introduzido em 2017 é uma ferramenta fundamental para reduzir os erros e aumentar a verdade desportiva. A sua função é corrigir decisões erradas em momentos-chave do jogo, bem como em situações graves (golos, penáltis, cartões vermelhos diretos e identidades trocadas no sancionamento dos jogadores) que tenham passado despercebidas à equipa de arbitragem. A tecnologia ajuda, mas é fundamental que a componente humana faça bem a sua parte, e isso não tem acontecido. 

Um dia menos bom todos podem ter, mas a frequência com que os vídeoárbitros erram é incompreensível. Se sabem as leis do jogo e conhecem o protocolo, não se compreende que tenham critérios diferentes para avaliar lances iguais. As pessoas esperam uma decisão e acontece outra, isso cria dúvidas nos clubes, nos jogadores e nos adeptos.

Depois, há os silêncios do VAR difíceis de explicar, sobretudo porque se trata de elementos com experiência e que foram árbitros de campo. Posto isto, alguns árbitros não têm capacidade para desenvolver esta atividade e, então, devem sair, ou a formação que recebem não é a adequada.

A ideia defendida por muitas pessoas ligadas ao setor da arbitragem, de que todos os anos é a mesma coisa, e que os clubes atacam as arbitragens porque há um campeonato em jogo, não faz sentido e só desresponsabiliza os incompetentes, é que os outros clubes também se queixam. A qualidade da arbitragem piorou e os seus responsáveis têm a obrigação de tomar medidas no sentido de a fazer evoluir. 

Decidir melhor e errar menos
O ex-árbitro FIFA Duarte Gomes deu-nos a sua visão do momento atual da arbitragem. «É um facto que a arbitragem profissional, que representa apenas 1%, tem estado demasiado exposta ao erro. Devemos assumir essa verdade com humildade e perceber o que está mal e o que se pode melhorar. Os erros são inerentes à arbitragem, mas havendo tecnologia a expetativa das pessoas aumentou e a exigência sobre os árbitros também. Esta ferramenta adicional possibilita decidir melhor e errar menos, mas a perceção pública é que as coisas não melhoraram».

Duarte Gomes considera que «a arbitragem tem de ser melhor» e aponta o caminho a seguir: «Deve-se investir continuamente na formação. O Conselho de Arbitragem tem feito um bom trabalho nessa área, mas se calhar a formação não é suficiente. A seleção daqueles que chegam ao topo também não é a ideal, deve-se repensar a forma como os árbitros progridem na carreira, será que estão a chegar ao topo os mais qualificados?».

Duarte Gomes enumerou em seguida um conjunto de fatores que estão na origem dos erros. «A competência é fundamental e há árbitros mais competentes do que outros. Além disso, há árbitros de topo que não se estão a adaptar bem à nova tecnologia, que mudou por completo a forma de ver o jogo, ou não se adaptaram ao protocolo. Depois, há outros que cedem à pressão. Há uma pressão muito grande sobre os árbitros, ninguém consegue estar sereno e fazer um bom trabalho se é, sistematicamente, insultado, ameaçado e acusado de ser corrupto», afirmou.

A pressão exterior tem sido imensa, quase patológica, o que leva o ex-árbitro internacional a sugerir que «o Conselho de Arbitragem devia proteger mais os seus ativos. Não é pô-los na jarra, é não expô-los ao mediatismo durante uma ou duas semanas, e isso não tem acontecido. Houve árbitros que tiveram um mau desempenho e na semana seguinte voltaram a ser nomeados».

Há fatores que ajudam a explicar algumas falhas, mas há outras que nem os especialistas conseguem entender. «Em minha opinião, há bloqueios momentâneos em sala que leva os árbitros a errar. Quem está no VAR tem uma grande pressão, sabe que tem um árbitro e um estádio à espera. Têm de decidir rapidamente e bem, muitas vezes estão a olhar para um lance e têm uma ideia, mas depois de verem as imagens mais vezes ficam num limo e não tomam a decisão certa», explicou Duarte Gomes, que adiantou outras razões: «Muitas vezes o árbitro tem pouca experiência e não está à vontade para sugerir ao colega para mudar uma decisão, também acontece o contrário, o árbitro com mais estatuto corrigir o colega de campo». O antigo árbitro fez questão de dizer que «uma coisa eu tenho a certeza, não há premeditação. Os erros são transversais e os clubes grandes são os mais beneficiados».

Com uma carreira de 25 anos, Duarte Gomes considera que o problema da arbitragem vem de base, pois há grandes limitações. «Temos menos de 4000 árbitros no ativo e precisavamos de, pelo menos, dez mil para o futebol nacional. Nunca houve um grande investimento para alterar esses valores. O futebol tem crescido em várias áreas, menos no número de árbitros. Temos menos árbitros hoje do que em 1999 e, obviamente, há uma ligação direta entre a quantidade e a qualidade», disse, alertando para outra situação «como a quantidade é pouca, a arbitragem não se pode dar ao luxo de mandar embora alguns árbitros».

O ex-árbitro defende também uma maior abertura para que as pessoas tenham outra imagem da arbitragem. «Devia-se comunicar mais com o exterior e mostrar a transparência de processos para acabar com o estigma da corrupção e da premeditação. Era importante dar a conhecer como são feitas as nomeações, as classificações dos árbitros e a forma como se trabalha em sala. É importante passar a imagem de que alguns árbitros podem ser incompetentes, mas são sérios». 

Há muito que os clubes pedem a divulgação audio das comunicações entre árbitros como acontece em outras modalidades. No entanto, para Duarte Gomes, essa transparência deve ser feita com algum cuidado: «O futebol provoca grande paixão e emoção nos adeptos. Penso que uma abertura total não deve acontecer de um momento para o outro no futebol, pois requer o controlo de emoções para evitar tumultos no estádio».