Utiliza muito o humor, o sarcasmo e a sátira como elementos fundamentais da sua escrita. O mesmo acontece na sua vida pessoal? Quem é o homem por trás do escritor e professor? O humor sai-me naturalmente. Na minha cabeça, invadem-me sempre pensamentos relacionados com o humor, com o absurdo. Há muita influência de coisas que vi na minha infância. Os ‘Monty Python’; os livros e os filmes do Woody Allen… Todo esse nonsense formou o meu caráter. Mas penso que é uma característica inata do meu temperamento e, como tal, eu escrevo com humor e divirto-me a escrever. Não consigo entender o que alguns escritores dizem. Por exemplo, Lobo Antunes que diz muitas vezes que sofre a escrever, para mim é um prazer e, muitas vezes, um divertimento. Faz parte de mim e talvez seja genético. Embora eu não seja uma pessoa que goste de contar anedotas… Até sou um pouco reservado. Só na minha intimidade, é que eu talvez consiga revelar este aspeto. De certa forma, também me apercebi, com o tempo, que uma pessoa que cultiva o humor dentro de si, encontra mais depressa o bem-estar, o equilíbrio, a felicidade. Faz-nos ver a vida de outra forma.
Um amante de arte
Mas comecemos pelo princípio. Nasceu em 1964 em Viana do Castelo. Como foi a sua infância? Sente que o facto de ter crescido numa quinta, que o contacto com a natureza e com as tradições rurais, acabaram por moldá-lo? Sim, claro! Eu ainda vivo na quinta onde nasci…. Nunca me dei bem em apartamentos. Gosto de grandes cidades, mas não para viver. Gosto de estar perto do campo, da montanha e do mar. Tive uma infância onde brincava nos campos. Íamos aos montes, apanhávamos frutas. Foi uma infância muito diferente da que eu vejo hoje em dia. Assistia aos trabalhos agrícolas e conheci muita gente que trabalhava no campo. Hoje em dia há poucos camponeses. Também tinham muito humor. O humor do Minho, das cantigas ao desafio, que no Brasil também existe.
O desporto também me moldou muito. O meu pai foi o fundador do Clube de Ténis de Viana, nos anos 50, e eu comecei a jogar. Ainda jogo. Aos 20 anos comecei a praticar Karaté, com um mestre japonês. Outro elemento estruturante na minha vida, pela disciplina, autoconfiança. Todas essas influências acabam por aparecer nos meus livros, direta ou indiretamente. Tudo isso fez aquilo que eu sou.
Em pequeno já se interessava pelas letras? Sente que se o seu pai não tivesse tido uma grande biblioteca que provavelmente não teria querido ser escritor? Não sei. Realmente o meu pai tinha uma biblioteca com mais de mil livros… Obviamente que em pequeno não os lia, mas conhecia os títulos. Os clássicos todos da literatura já os conhecia, porque lia nas lombadas dos livros. Despertou sempre em mim curiosidade, fascínio. Se o meu pai não fosse leitor, certamente não conheceria metade do que conheço, isso é verdade.
Lembra-se do primeiro livro que leu? Ou do momento em que soube que queria ser escritor? O primeiro livro que li eram as ‘365 Histórias de Encantar’. Ainda me lembro da primeira história que li, era sobre ursinhos. Lembro-me também de escrever redações. Sempre tive muita imaginação. Mas a verdade é que não escrevia muito bem. Só me dei conta disso, quando fui fazer a licenciatura em História de Arte e quando fiz o Mestrado. Isso obrigou-me a ler teses de doutoramento de pessoas que escreviam melhor do que eu. Apercebi-me que não estava a esse nível. Falo da escrita do português. Isso obrigou-me a evoluir, a escrever melhor. Em todos os meus livros há uma obra de arte, um estímulo, uma pintura, sempre qualquer coisa que vem da minha formação.
Quando se viu confrontado com essa realidade (não escrever tão bem como pensava), foi invadido por algum sentimento de frustração? O que senti foi que tinha de melhorar. Lá está, há pouco falei do desporto. Uma das coisas que se aprende com os japoneses é que nunca se desiste. Não conseguimos fazer alguma coisa, executar uma técnica, mas continua-se. Vamos conseguir amanhã, se não for amanhã é para a semana, para o próximo mês, ou ano… Desistir, é derrotarmo-nos.
De que forma nasceu o interesse pela História da Arte? Porquê essa área no meio de tantas outras? Eu sempre gostei muito de arte. Tive a sorte de viajar desde muito pequeno, por todo o mundo. Por isso, vi em jovem os principais museus. Fui cultivando, sem saber ao certo o que estava a ver. Sempre gostei muito de pintura. Surgiu depois a oportunidade de me inscrever na Faculdade de Letras do Porto. Também aprecio muito a arquitetura. Escultura menos…
Formou-se no Porto, mas decidiu regressar a Viana, onde permanece até hoje. A cidade onde cresceu acaba por ser uma inspiração no seu trajeto enquanto escritor? Sim, por exemplo, no romance ‘25 de Abril, Corte e Costura’, imaginei uma cidade. O urbanismo da cidade é o mesmo que o de Viana do Castelo.
Gosto muito da sua localização geográfica: está entre o rio, o mar e a montanha. Gosto da gastronomia, da frescura do peixe. Serei sempre suspeito a falar… É a minha cidade…
Um homem ‘às direitas’
Escreveu o seu primeiro livro, ‘Arte e Literatura na Guerra Civil de Espanha’. Seguiram-se mais oito livros. Qual a relação que tem com eles? A visão que tem do seu trabalho tem mudado à medida que o tempo passa? É uma pergunta interessante. Tem sim mudado ao longo do tempo. Por exemplo, quando comecei, como qualquer outro principiante, sentia-me inspirado por Saramago e Lobo Antunes. Tal como eles, tentei criar uma escrita complexa. Pensava eu que ia impressionar os editores e os leitores. Com o passar dos anos, a minha escrita foi-se simplificando. Os parágrafos foram ficando mais curtos. Porque compreendi que o mais importante é agarrar o leitor. O leitor tem de ser agarrado desde as primeiras páginas. Uma das formas é escrever como se estivesse a passar um filme diante dos nossos olhos, na cabeça do leitor. É preciso haver cores, sons, cheiros, texturas… No fundo, tudo o que os nossos sentidos captam. Tenho aprendido e evoluído nesse sentido. A minha intenção agora não é impressionar o leitor com grandes figuras de estilo, é realmente captá-lo, seduzi-lo e contar uma boa história, com um final inesperado.
É crítico do que diz ser “o moderninho inofensivo” da literatura portuguesa contemporânea. Pode-nos explicar o conceito? É uma opinião que se aproxima mais da minha postura política. Acredito que se espera, de nós escritores, sobretudo lá fora, que queiramos o bem do planeta, salvar a humanidade. É preciso combater as alterações climáticas e por aí fora. É um discurso de Miss Universo que cai bem, é inofensivo. Diz essas coisas e já esperamos ouvir essas coisas. Não contesto nada disso. O que contesto e crítico é haverem manifestações, como a que houve quando Greta veio a Portugal, que juntou centenas de jovens, mas depois, nenhum dos apoiantes e manifestantes é capaz de largar o telemóvel. São os maiores consumidores de sempre. No tempo deles, tinha umas sapatilhas (embora a minha família me pudesse dar mais), e usava até romperem. Inclusive a minha filha, não consigo evitar isso. Estas gerações são as mais consumistas de sempre, mas depois querem salvar o planeta. Estamos a financiar o sistema e ninguém quer mudar isso. Temos um nível de conforto extraordinário.
Então estamos a falar de uma hipocrisia generalizada? Sobretudo dos que andam a pregar e a tentar dar lições de moral.
Acredita que, por escrever e desconstruir, nas suas obras, temas políticos e sociais de uma forma bastante particular, acaba por existir certo preconceito relativamente a eles? Ou seja, que o associam a um determinado estilo de escrita que não é acessível a todos? Eu acredito no Liberalismo, que foi o único sistema que não foi experimentado em Portugal. Já tivemos Monarquia, Salazarismo ou Fascismo, tivemos quase Comunismo a seguir ao 25 de Abril e temos tido essencialmente socialismo. A verdade é que Portugal não tem crescido. Aliás, os portugueses vivem mal, recentemente anunciaram que temos quase 4 milhões de pobres, ou seja, quase metade da população… Ora, alguma coisa não está a correr bem. Sou crítico do governo Socialista. Mas nos meus romances eu não faço propaganda. No ‘Perestroika’ há personagens que o defendem genuinamente. Faço a separação entre aquilo que penso e aquilo que escrevo. O que eu faço não é propaganda política de maneira nenhuma. Eu sinto-me marginalizado, discriminado, porque já estou há 8 anos a ganhar prémios (nos EUA já ganhei quatro, outro em Itália) extremamente competitivos, nos quais entram centenas de escritores, e tenho enviado essa informação para todo o lado e ninguém lhe pega. Não me divulgam. O Público, o Expresso, o Ler…
É autor de nove livros e está publicado em oito países. Também, tal como disse, já obteve até várias distinções, mas não é noticiado pelos principais meios de comunicação. É por isso que “infelizmente, a cultura em Portugal é uma conduta de amigos”? Eu acho que é, é preciso ter bons conhecimentos, estar perto de Lisboa ajuda muito… Mas sobretudo é preciso estar alinhado com o sistema e com o poder político. Eu não estou. Acho que acaba por haver represálias.
Sente que no mercado português há uma carência de autores que convidem mais à reflexão da mesma forma que o faz, ou seja, sem estarem alinhados com o poder? O que eu acho é que, em Portugal, deve haver certamente não só escritores, pessoas de todos os ramos, com imenso valor e talento que se calhar nunca foram reconhecidos porque não têm bons contactos, por serem politicamente corretos. Felizmente tive a possibilidade de pagar a minha primeira tradução para inglês. Resolvi arriscar, servi-me da internet e comecei logo a receber propostas para publicação. Em Portugal tive muita dificuldade. Das principais editoras, nunca tive a oportunidade de ser editado. Por não ter padrinhos, fui ignorado em Portugal.
Toca, muitas vezes, mesmo enquanto colunista do Nascer do SOL, em temas ‘politicamente incorretos’. Em 2019, queixou-se de ser censurado. Afirmar que o socialismo é uma fraude tem tido custos? Fui contactado pela revista da Fnac. Queriam uma entrevista. Enviaram-me as questões que continham temas políticos e eu disse tudo o que pensava. Pensei que como vivo numa democracia que não me tenho de censurar. Depois, a entrevista nunca foi publicada. Podem dizer que é uma ‘opção editorial’, mas para mim é uma forma de censura. Estamos em liberdade e eles têm todo o direito de não publicar, mas não percebo porque é que me contactaram. Não defendi o extermínio de minorias étnicas ou rapto de bebés, por exemplo.
Há uns anos, um jornalista do jornal Público, escreveu uma peça sobre mim e a peça nunca foi publicada. Agora já o vejo com mais humor, mas na altura senti-me muito revoltado. Irrita-me profundamente. Quem não aparecer naquelas colunas, não existe. Negam-me essa oportunidade.
Qual a sua opinião sobre as obras clássicas que estão a ser alteradas, por conta da ‘exclusividade’? É uma autêntica imbecilidade. É uma forma de fascismo. Esta palavra é usada num termo lato, que significa ditadura. Neste caso é um fascismo pós-moderno. Quem está por trás destas questões são os intelectuais marxistas das universidades americanas, nas nossas também temos muitos – os cursos de sociologia são autênticos locais de lavagens ao cérebro no sentido de formar um estudante marxista ou socialista. É um ataque.
E depois há os bem intencionados, os chamados ‘idiotas úteis’, que nem sabe bem o que está a fazer. Acha que está a contribuir para a justiça social ou racial. A única coisa que estão a conseguir, na minha opinião, é destruir obras do passado, a cultura europeia, os fundamentos da nossa cultura. É completamente ridículo pretender que Luís de Camões e Gil Vicente, pensassem como eu penso. Há uma mentalidade própria de cada tempo. Portanto, corrigir a literatura e as obras de arte, não faz sentido.
Já não se pode ser de direita em Portugal? Continua a ser muito mal visto. Como tivemos uma ditadura de direita, a viragem para a esquerda foi a associação à democracia. Há alguns historiadores que dizem que quando se formaram os partidos, não havia nenhum partido de direita. Continua a ser mal visto. Na Polónia é mal visto ser de esquerda, por exemplo. Ainda não encontrámos esse equilíbrio. A direita defende umas ideias, a esquerda defende outras. São ambas válidas. O que não é válido é olhar para as pessoas e rotulá-las pelas suas ideias e não pelos seus atos.
Também foi um grande crítico do Governo da geringonça. Como tem visto atualmente a governação com maioria absoluta? Basta ligar a televisão e ver o caos em que está o país. No ensino, hospitais, saúde, a economia continua estagnada. O país está muito mau e as novas gerações é que estão a pagar a fatura. Estamos a lançar para as novas gerações, dívidas que eles não contraíram. É injusto e imoral.
Está ingovernável. Ninguém quer ceder e todas as classes que têm poder de expressão, como os professores e médicos, fazem uma greve, param o país e é muito difícil sair do círculo vicioso.
O último livro
No seu mais recente romance, ‘Perestroika’, o João faz uma crítica violenta aos regimes comunistas. Este veio num momento estudado? Qual a intenção no contexto de toda a sua obra? Em primeiro lugar, ainda me recordo de ver na televisão as imagens da queda do muro de Berlim, acho que foi dos acontecimentos mais importantes do século XX. O facto é que a Perestroika e a própria queda do muro de Berlim, estão um pouco esquecidas. Mesmo no cinema, ou na Netflix, pouco ou nada pegaram no assunto.
Quanto aos romances, o mais extraordinário é que não há um único sobre a Perestroika. Fui à Amazon e encontrei apenas um em Paris. Mas é um romance mesmo.
Foi o que eu pensei… Tenho de escrever sobre alguma coisa que ninguém tenha escrito. Tento sempre ser o máximo de original possível. Assim nasceu este livro.
Uma outra razão, em relação aos temas políticos, a minha família viveu muito em Viana do Castelo. O meu avô tinha sido um grande empresário – foi ele que fundou a empresa de pesca de Viana e os estaleiros – e, a seguir ao 25 de Abril (foi tudo nacionalizado e confiscado), corremos quase o risco de ficar na miséria. Portanto, estes sistemas políticos, o comunismo em particular, têm a ver com a minha vida.
O Parlamento Europeu equiparou o comunismo ao nazismo, isto é gravíssimo. Se equipararmos estamos a dizer que têm os dois o mesmo nível moral. Isto incomoda imensa gente.
No livro, descreve o regime da Eslávia – um país fictício do leste europeu -, dominado pela União Soviética desde o fim da Segunda Guerra Mundial até às reformas lançadas por Gorbatchov no final dos anos 80. Sente que há algo da Eslávia em Portugal? Ainda temos a presença do Estado na economia. É um país estatizado ainda. Basta ver com a nacionalização e privatização da TAP. Isto deveria ser inconcebível, num país democrático e nacionalizado do século XXI. Imaginemos o que poderia ser feito com o dinheiro que se perdeu? Uma das coisas que não entendo é o porquê da sociedade portuguesa não se revoltar a sério com isto.
Acha que o Comité Central do PCP poderá ler ‘Perestroika’ sem se indignar? [risos] O PCP é mesmo um caso complexo. São realmente os dinossauros do comunismo na Europa. Já não há nada parecido com isso. O partido comunista espanhol, italiano, francês praticamente não existem. Reconverteram-se. O PCP é um exemplo de resistência.
Podem ler o romance. Obviamente não vão gostar de muita coisa mas, da minha parte, houve honestidade. Criei personagens não para humilhar. A Comissária do Povo para a Educação, Helena, defende genuinamente uma sociedade mais justa, quer proteger as crianças. É uma personagem moralmente perfeita.
Tal como o Olin… Tentou salvar o filho e tomou uma decisão censurável mas para um bem maior….
Este é um romance não com um, mas com 38 protagonistas que evoluem num arco temporal de catorze anos. Consegui sentir coisas com cada uma delas. Como conseguiu esse desdobramento? A primeira coisa que fiz foi escrever os personagens no papel. Já sabia que ia ter Comissários do Povo, Guardas dos Campos de Concentração, Vítimas do regime… Fui escrevendo o nome de cada um e à frente discriminando as características físicas e psicológicas. Ou seja, fui fazendo um retrato de cada um deles. Tive essa folha ao meu lado até ao fim do romance, porque volta e meia perdia-me um bocado. Além do livro ter, no início, o índice de personagens, tive o cuidado de cada vez que dizia o nome, sublinhar o cargo, ou papel. Quero que os leitores peguem nos meus livros e sintam prazer. Não lhes quero dar trabalho…
À medida que fui escrevendo ia vendo se a sua personalidade estava de acordo com o comportamento. Afinei isso ao máximo.
O romance não segue uma linha apenas. Existem constantes ramificações. Estamos numa personagem e saltamos para outra. Como foi o processo? Pensei nas coisas capítulo a capítulo, e deixo as ações em suspenso. Deixo sempre em suspenso e depois retomo. A dificuldade a dada altura foi unir os 38 personagens que acabam por se cruzar.
Tem algum personagem preferido? Boa pergunta! Eu gosto da personagem principal, a Lia. Teve uma infância difícil, viu o pai desaparecer, passou fome, teve muitas privações, mas resiste. Leva o seu tempo a aperceber-se em que tipo de país vive, vai evoluindo, até se tornar uma resistente ao regime. Quando se dá a Perestroika ela associa-se aos movimentos, é respeitada. E quer saber o que aconteceu ao pau, considerado um inimigo do povo. Quer fazer justiça. Consegue enfrentar inclusive o homem que ascende depois, o Fiorov – uma mistura de Putin e Trump. Mas o comissário do povo para a Economia também ganhou muito a minha simpatia. A forma como trata do filho com paralisia cerebral, a sua honestidade…
Já possui alguma ideia para um futuro livro? Eu tenho um manuscrito que se chama ‘O Pacto com O Diabo’. É mesmo uma comédia do princípio ao fim. Um homem sem talento faz um pacto com o diabo para escrever O Ano da Morte de Ricardo Reis, do Saramago; A Aparição, de Vergílio Ferreira e Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, do Mário de Carvalho. Textos que já foram escritos… Concorri com esse texto a um prémio, não ganhei, mas uma pessoa do júri, a Carolina Sousa, gostou tanto do livro, que quis saber quem era o autor. Telefonou-me e convenceu-me a publicar o livro agora em abril.
Eu senti que havia uma pessoa que tinha gostado tanto que não resisti.