Por Luís Castro, Jornalista
Passaram vinte anos e já nos esquecemos que os Estados Unidos invadiram o Iraque num dos maiores embustes e mentiras que a história ainda não julgou.
Ficou conhecida pela cimeira da mentira, uma fraude internacional apadrinhada por Portugal. O mundo mudou depois da Cimeira das Lajes, quatro dias antes da guerra começar com bombardeamentos que fizeram oito mil mortos civis logo nos primeiros dois meses. Nessa tarde de 16 de março, Durão Barroso, primeiro-ministro de Portugal, recebia George W. Bush, Presidente dos EUA, José Maria Aznar, Presidente do governo de Espanha e Tony Blair, primeiro ministro do Reino Unido, para darem um ultimato ao Iraque: ou se desarmava ou seria desarmado à força. Mas Saddam Hussein não tinha armas de destruição maciça nem era próximo de Bin Laden.
Bismark, o chanceler de ferro alemão do século XIX, dizia que os três momentos em que mais se mente são antes das eleições, durante uma guerra e após uma caçada. George W. Bush preparava a reeleição, necessitava daquela guerra e da caçada aos inimigos da América. Tony Blair queria fazer parte da nova Europa, já que Jacques Chirac e Gerhard Schroder não concordavam com a invasão, e Durão Barroso não queria ficar atrás de José Maria Aznar no alinhamento com os americanos.
Passaram vinte anos e já nos esquecemos que os Estados Unidos invadiram o Iraque num dos maiores embustes e mentiras que a história ainda não julgou. Quase cinco mil soldados americanos e britânicos abatidos, mais de seiscentos mil civis iraquianos mortos e quase dois milhões de refugiados.
Estive lá. Chorei com o povo do exército mais franco. Testemunhei com os meus olhos o massacre de Al Saidia, à entrada de Bagdade, onde mais de sessenta civis foram literalmente traçados pelas balas perfurantes anti-tanque dos Abrams americanos. Ficou registado na reportagem da RTP, mas ninguém quis saber daqueles homens, mulheres e crianças, talvez porque não tinham olhos azuis e a pele era mais escura. O conflito do Iraque custou aos Estados Unidos três triliões de dólares. Stiglitz, o prémio Nobel da Economia, fez as contas e chegou à conclusão que bastavam três semanas daquela guerra para acabar com o analfabetismo em todo o mundo.
Também já nos esquecemos das prisões de Abu Graib, no Iraque, de Guantanamo, em Cuba, e das muitas prisões secretas que os americanos têm espalhadas pelo mundo. Das atrocidades que vieram ao mundo pelas fotografias tiradas por soldados americanos onde exibiam as humilhações a prisioneiros iraquianos.
Os que agora choram lágrimas de crocodilo e pedem tribunais para julgar crimes de guerra na Ucrânia, são os mesmos que invadiram o Iraque passando por cima do Conselho de Segurança e do Direito Internacional. Os que agora censuram os media russos na Europa e no resto do mundo, são os mesmos que apenas permitiam jornalistas ‘embedded’ – encamados, como foram apelidados pelos jornalistas argentinos -, cujas reportagens só saíam do campo de batalha depois de vistas e autorizadas por um oficial americano ou britânico. Goebbels, o homem da propaganda do Hitler, dizia que tudo depende de quem conta a história e do ângulo da câmara. Ali, durante semanas, o ângulo da câmara era só um e o mundo via aquela guerra contada pelos bons contra os maus, pelos americanos e britânicos bons contra os iraquianos maus. Assim se controlou a opinião pública mundial. Como foi, e é, tão fácil.
Durante vários dias fui dado como desaparecido. Família e colegas da redação da RTP choraram a minha morte. Estava preso, incontactável, agredido e humilhado por aqueles que diziam estar lá para libertar o Iraque. Tudo porque me recusei a ser manipulado e ver a guerra acontecer do outro lado da fronteira, a partir do Kuwait. Por isso, decidi partir para a linha de frente, mesmo depois de outros cinco jornalistas também o terem tentado e acabarem mortos. Este é a essência dos repórteres de guerra – estar lá, onde a morte acontece; onde cheira a pólvora.