‘A tendência cria-se de boas obras e as boas obras criam-se de não tentar fazer tendências’

Através de estilos como o hip-hop, gospel, eletrónica ou música de intervenção portuguesa, o músico apresenta ‘Declive’, o seu disco de estreia, com uma narrativa atenta  preocupada com o mundo que o rodeia.

Com o objetivo de representar a plenitude dos seus talentos e personalidade, Eu.Clides apresenta DECLIVE, o seu disco de estreia, em que nos conta histórias em formato de músicas que ajudam a definir quem é que o músico é enquanto artista.

Através de estilos como o hip-hop, gospel, eletrónica ou música de intervenção portuguesa, o músico apresenta um lado inédito, com uma narrativa atenta e preocupada com o mundo que o rodeia, cantando músicas sobre os problemas provocadas pela crise de arrendamento (Tê Menos 1), mas também sobre personagens que vivem uma vida embebida pela violência e álcool (Venham Mais 7).

A LUZ falou com Eu.Clides sobre o processo de criação do disco e sobre as principais influências, como Zeca Afonso. 

O que é que o inspirou a criar e a lançar agora o seu disco de estreia, ‘Declive’? Para mim era muito óbvio que eu tinha que dar, agora, este passo. O disco é a obra mais importante da carreira de um artista musical e senti que o que tinha lançado antes, apesar de serem trabalhos que me enchem de orgulho, não me representava enquanto artista. Foi essa a principal razão que me levou a lançar o ‘Declive’.

Na sua opinião, quais são as principais diferenças entre ‘Declive’ e ‘Reservado’ (2021)? O que é que torna este trabalho uma representação mais fiel de si enquanto artista? É bastante simples. O ‘Reservado’, tal como o nome indica, foi um trabalho muito fechado e muito centrado em mim. E, agora, o ‘Declive’, é muito mais virado para fora. Sou eu a tentar comunicar com pessoas e a contar histórias. Algumas sobre mim, outras, nem por isso. Acho que essas são as principais diferenças, um é muito mais introspetivo enquanto no outro existe uma procura maior para interagir com o exterior.

Na faixa ‘Tê Menos 1’, fala sobre os problemas de arrendamento e cita a “bolha” que esta crise está a gerar. Houve algum episódio em concreto que o tenha inspirado a escrever esta música? Essa música já estava escrita há algum tema. Foi um tema proposto pelo Tota, que escreve todas as letras do disco, depois de ele ter partilhado comigo esta inquietação. Às vezes, debatemos sobre vários assuntos e, na altura, a crise de arrendamento pareceu-nos um tema adequado para esta música e decidimos explorá-lo musicalmente. Acaba por ser engraçado, sem ter qualquer tipo de piada, como esta letra, que já foi escrita há tanto tempo, tem tantos detalhes que acabaram por se tornar realidade quando, na sua base, tinham um tom maioritariamente humorístico. 

Pode dar um exemplo? Quando canto: «Compre uma tenda e ponha à venda», muito mais tarde, começou a circular uma notícia sobre uma família que estava a viver numa tenda em Cantanhede. Isto foi muito chocante, perceber como este tema se desenvolveu desta forma. Neste momento, em que o disco está prestes a sair, é quando este assunto está mais a rebentar e a crise vive os seus momentos mais intensos. 

Vive em Paris, houve algum momento nesta cidade que o inspirou na criação desta música? Não, a ‘Tê Menos 1’ é sobretudo centrada na situação que se está a viver em Portugal.

Continuando ainda no tópico da sua nova residência. A música que faz tem ritmos e melodias muito próprias de Portugal, não tem receio de perder a sua identidade uma vez que vive tão longe desta realidade? Eu diria que não. Cresci em Portugal e sinto que este sentimento é algo que está enraizado em mim e naquilo que faço. Além disso, acabo por passar imenso tempo em Portugal. Estou aqui durante imenso tempo ao longo do ano, entre idas e voltas. Acredito, inclusive, que, estando fora, isso permite-me ter uma visão mais periférica da situação e até me parece mais inspirador ver esta realidade com uma certa distância. Mas isso é o que eu acho enquanto artista, se calhar existem outras pessoas que não sentem tanto isto e pensam de uma forma diferente. Contudo, para mim, passando um tempo fora permite-me ter uma visão diferente e isso inspira-me.

Oferece-lhe quase uma perspetiva saudosa de Portugal. Acha que esse sentimento acaba por influenciar a sua música? Eu diria que sim. Por norma, sou uma pessoa bastante nostálgica e essa saudade acaba por oferecer um potencial mais forte ao meu lado português na música. Não me sinto tão cansado desta cultura e existe uma paixão mais intensa.

Atualmente, existem muitos artistas da música portuguesa que têm utilizado esta mistura de elementos tradicionais com influências mais modernas e contemporâneas. O que é que acha que, na sua música, faz com que esta mistura seja tão fluida e genuína? Isso está ligada com a forma como faço música. Nunca penso no puzzle dessa forma. Para mim, e como para muitos membros da minha geração, é natural gostar tanto de música eletrónica como de música tradicional .Gosto de música clássica, ainda para mais depois de ter estudado no conservatório e ter consumido muita música deste estilo, ou de música de igreja, que foi um ambiente onde estive muito envolvido durante o meu crescimento. Criar música é um processo muito intuitivo, não é um puzzle que faço de forma mecânica. A grande diferença está aí. Às vezes existem artistas que tentam criar arte de uma forma demasiado planeada, ‘vou aproveitar um pedacinho disto e um bocadinho daquilo’. E não é assim que as coisas funcionam. Para mim é tão intuitivo utilizar a eletrónica e trabalhar com o Pedro da Linha, como pegar na guitarra clássica e criar uma canção.

É o caso daqueles artistas que tentam ir atrás de uma tendência. Exato, esse nunca foi o meu tipo de abordagem. A tendência cria-se de boas obras e as boas obras criam-se de não tentar fazer tendências [risos].

Queria também aproveitar para falar da sua música ‘Venham Mais 7’. Ao analisar a letra é possível perceber que esta é uma história mais pessoal onde canta sobre lidar com problemas através da violência e do álcool. Gostava de saber como é que é a sua relação com a música como um exercício de confissão e de exorcismo de problemas? É engraçado falar nisto porque foi algo que se foi desenvolvendo até muito recentemente. Depois do lançamento de ‘Reservado’ e, especialmente, em ‘Declive’, decidi que não iria mais ter medo de descrever certas experiências pessoais e contá-las em histórias que, por vezes, nem têm nada a ver comigo. Por exemplo, a história do ‘Venham Mais 7’ não é sobre mim, é baseada numa parábola e tem o objetivo de influenciar ou inspirar as pessoas. Mas, em certos momentos, tento sempre colocar um cunho pessoal de coisas que posso ter vivido ou experienciado, oferecendo um toque mais personalizado, que é algo que me interessa.

O título desta música é uma referência à ‘Venham Mais Cinco’ de Zeca Afonso? Sim, é completamente uma homenagem. Também pela estrutura da canção, o ‘Venham Mais 7’ não tem propriamente um refrão, parece que são sempre várias estrofes e esse é um formato de canção que surge muito no trabalho do Zeca Afonso e do qual eu sou muito fá. O ‘Venham Mais 7’ é inspirado nesta forma de fazer música de intervenção portuguesa e, por outro lado, vai também buscar elementos mais modernos e acho essa uma fusão interessante. 

É interessante como ambas as músicas têm um ambiente e som festivo, mas depois têm uma letra com imagens fortes e carregadas de violência. Achei esse um paralelismo interessante. Sim, é verdade, percebo o que queres dizer. Esta não é a primeira homenagem ao Zeca Afonso na minha discografia, como é o caso da música ‘Terra-Mãe’, que faz referência à ‘Traz Outro Amigo Também’. O Zeca é uma influência muito forte na música que faço.

Nesta música, confessa ser uma «gera má». Acredita mesmo nesta afirmação? Neste contexto, sim. A pessoa sobre quem estou a cantar estava num estado psicológico que me levou a dizer isso. Mas é algo específico desta história.

Neste tema veste a pele de algumas personagens, isso ajudou a ser mais sincero? Isso é algo que varia um bocado neste disco. Por exemplo, na faixa ‘Dos Tempos Em Que Íamos Ser Tudo’, é um tema muito centrado na minha história, a ‘57 Rue de Turbigo’ conta a história de um fotógrafo e existem outros casos que são narrativas inventadas, como a ‘99’, que foram criadas entre mim e o Tota. Estar em personagem às vezes é desafiante, mas como artistas temos que estar sempre num lugar de humildade e aceitar desafios. Especialmente, quando percebemos que precisamos de ir por um certo lugar, mesmo que este possa não parecer intuitivo, é importante arriscar.

Com ‘Declive’ prestes a ser lançado, será que podia falar um pouco sobre o que tem preparado para a sua apresentação? Neste momento, ainda não há uma data específica para o concerto de apresentação do disco, mas penso que em maio podemos contar com um espetáculo para mostrar ‘Declive’ ao público.

Antes de terminarmos a conversa, gostava de perguntar se tem algum plano ou intenção de voltar para Portugal? Não sei, como passo tanto tempo em Portugal é uma questão que nem costumo pensar muito. Acho inspirador estar fora, por enquanto, sinto que estou bem, mas, no próximo ano, não sei o que vai acontecer, vamos ver. Estive aqui há duas semanas e agora estou cá outra vez, portanto, nem chego a ter saudades. Estou a comer bitoques a toda a hora [risos].