Não há adepto de futebol que se preze que não conheça o nome de Arsenal Football Club, esse mesmo que acabou de defrontar o Sporting para a Liga Europa. Pode não ter a popularidade universal do Manchester United ou do Liverpool mas tem uma aura difícil de entender e ainda mais difícil de explicar porque se tornou ao longo das décadas um clube essencialmente interno sem glória nas competições europeias. E, no entanto, o Arsenal é o Arsenal e ponto. De cada vez que escrevemos ou dizemos o seu nome fazemo-lo com um respeito distinto de quem se refere a um velho cavalheiro e isso não acontece, como devem perceber, por mero acaso. Mas, apesar de ser o terceiro clube inglês com mais títulos na Grande Ilha Para Lá da Mancha, 13 de campeão e 14 Taças de Inglaterra, reduzido a dois troféus continentais, a Taça das Taças de 1993-94 e a Taças das Cidades com Feira em 1969-70 – com uma presença única na final da Liga dos Campeões em 2005-06, a história do Arsenal construiu-se pela sua contribuição para a história do próprio futebol e por momentos de modernidade que marcaram definitivamente a evolução do Association. É, no fundo, uma aventura que se perde na noite dos tempos. E que ficou tão arreigada ao clube que nos surpreendemos quando o vemos liderar a Premier League quase como se o desprezássemos como verdadeiro candidato que a lenda erguida em seu redor o obrigaria a ser em continuidade.
Há pouco tempo, em Londres, à conversa com um taxista, coisa muito pouco prática num táxi londrino com aquela espécie de polibã onde está encaixado o condutor, ouvi-o queixar-se amargamente como se sentia frustrado por ser adepto do Arsenal: «This fuckin’ club doesn’t win a fuckin’ shit». Se pensarmos que a última vez que o Arsenal foi campeão de Inglaterra corria o ano de 2004, o desabafo faz sentido. Como consolo, a última vitória na competição que os ingleses trazem amarrada ao coração, a Taça de Inglaterra, data de 2019-20. A conquista do campeonato desta época faria de Mikel Arteta, o treinador, um herói inesquecível ainda que improvável.
Voltemos aos pormenores que foram fazendo do Arsenal um clube revolucionário em várias facetas, tantas delas espelhadas até hoje. No dia 22 de Janeiro de 1927, em Highbury, o antigo estádio, o confronto contra o Sheffield United foi o primeiro a ser transmitido via rádio para toda a Inglaterra. Que espanto! E que excitação! As ruas de várias cidades da Grã-Bretanha foram dotadas de altifalantes e o povo juntou-se em seu redor para ouvir a voz do relatador dando asas às suas alegrias e frustrações em altos gritos durante hora e meia. Inesquecível! Pois… mas entretanto já poucos são os que o recordam. Como pouco serão os que sabem que no dia 16 de Setembro de 1937 um jogo de exibição entre a equipa principal do Arsenal e as reservas do clube seria o primeiro a ser transmitido em direto para todo o Reino Unido. Fantástico? Sem dúvidas! E mesmo que a memória da maioria não absorva pormenores como este foram eles que ajudaram a perpetuar a tal dimensão de um nome formidável.
Arsenal é igualmente um nome que se infiltrou na cultura pop da cidade de Londres, durante anos a capital pop de todo o mundo. Muito antes de Nick Hornby fazer do Arsenal uma personagem literária através do seu best-seller Febre no Estádio-Diário de um Fanático (na versão portuguesa; Fever Pitch na versão inglesa) já a BBC tinha trazido o nome do clube para uma série policial transmitida em episódios durante o ano de 1939 e chamada ‘The Arsenal Stadium Mystery’ e baseada na novela de Leonard Gribble. No ano seguinte, surgiu uma longa metragem com o mesmo nome. A trama era baseada no episódio decorrido durante um jogo do Arsenal frente a um conjunto de amadores e com um membro deste último a cair em pleno relvado por via de ter sido envenenado. Foram muitos os autênticos jogadores do Arsenal que fizeram papel de si próprios no filme com George Frederick Allison, um indivíduo multifacetado que foi locutor da BBC, jornalista e treinador do Arsenal a protagonizar uma série de cenas e de diálogos o que fez crescer ainda mais a sua já de si enorme popularidade.
A revolução de Chapman
Histórias como estas criaram em redor do Arsenal a tal aura de clube diferente, independentemente das vitórias ou derrotas. Mas também no reino da tática e através de um técnico chamado Herbert Chapman que chegou ao clube em 1932, os Gunners (como são conhecidos exibindo orgulhosamente um canhão no emblema) deram um salto gigantesco na sua capacidade competitiva. Chapman dispôs a sua equipa num esquema que surpreendeu todos os seus adversários. E com ele ganhou três campeonatos consecutivos (morreu antes de completar o hat-trick) e uma Taça de Inglaterra. Em que consistia? Sobretudo no aproveitamento de uma alteração importantíssima nas regras do jogo: a partir de 1925 exige-se apenas dois adversários entre o jogador a quem é passada a bola e a linha de baliza oposta, ao contrário dos três anteriores e elimina-se o off-side nos lançamentos laterais. Assentemos que, com a redução de três para dois do número de adversários que o atacante necessita de ter entre ele e a linha de baliza contrária para não ser considerado fora de jogo os avançados puderam passar a internar-se mais no campo oposto e mesmo permanecer na zona de remate. Receava Chapman que se o 5 ofensivo se deslocasse muito no comprimento do terreno passasse a existir um espaço excessivo entre a linha avançada e a linha média. Daí fazer subir apenas três (os extremos e o avançado-centro) mantendo os dois interiores no intervalo entre eles e os médios. Surgia então a figura geométrica do W ofensivo: 2.3. Ora, prevendo que rapidamente as equipas adversárias adotariam o mesmo sistema, Chapman desde logo percebeu que não era possível manter o esquema defensivo clássico pois dessa forma nenhum dos cinco atacantes teria a oposição direta de qualquer dos defesas. Seguro de que, do ponto de vista defensivo, a disposição simétrica é, no geral, a que produz melhores resultados, o treinador do Arsenal fez recuar o médio-centro e deslocou os dois defesas para as laterais. Surgiu desta forma o Third Back Game, o jogo dos três defesas, que opunha ao avançado-centro o médio-centro agora defesa-central e aos extremos os defesas agora laterais. Os dois médios restantes ficavam na zona de ação dos interiores. Desenhava-se o M defensivo. A colocação do ataque em W tornou-o mais estável, permitiu maior gama de combinações e colocava em dificuldades as equipas que defendiam em 2.3, deixando de atuar em linha como até aí. O advento do WM trouxe consigo os primeiros grandes debates sobre a importância da tática no futebol. Sobretudo porque produzia resultados, como já vimos. O Arsenal voltava a estar na vanguarda do futebol e o seu estilo de jogo passou a ser copiado literalmente por todas as grandes equipas do mundo que usaram a argúcia de Chapman como exemplo. Talvez nenhuma outra nuance estratégica tenha sido tão absolutamente revolucionária como a que o Arsenal trouxe nesse início da década de 30 do século passado. E, mais uma vez, se hoje é assunto que já pouco interessa a quem aborda o jogo, mesmos aos mesquinhos das táticas, serviu para cimentar a tal inexplicável aura que rodeia o nome do Arsenal Football Club.
Mangas brancas
Outro pormenor da marca Arsenal é a curiosidade estilística de utilizar mangas brancas nas camisolas vermelhas. Mas nem sempre foi assim, No início da sua fundação, em 1886, ainda Dial Square Football Club, brevemente rebaptizado de Wolwich Arsenal, nome que surgiu pelo facto de David Danskin e o seu grupo de companheiros indefetíveis serem funcionários da fábrica de munições que se situava precisamente em Wolwich, no sudoeste de Londres, o equipamento era composto por camisolas de tom vermelho-tinto porque dois dos fundadores, Fred Beardsley e Morris Bates tinham sido jogadores do Nottingham Forest e perante as dificuldades económicas que viviam em Wolwich pediram dois jogos de equipamentos aos dirigentes do Forest que fizeram questão de lhes agradecer dessa forma o que tinham feito na sua passagem por Nottingham. Eis que, em 1933, Herbert Chapman volta a deixar a sua marca bem vincada no Arsenal. Decididamente não gostava do quase púrpura das camisolas dos seus jogadores. Herbert era um cavalheiro e queria ser condutor de cavalheiros. Convenceu-se que usar mangas brancas em vez de camisolas de uma só cor dava outro estilo à equipa. E de que era necessário um vermelho mais clássico, vermelho mesmo vermelho e não da cor do vinho da Madeira, algo de que era apreciador, por acaso. Várias teorias foram lançadas sobre a origem da ideia de Chapman e a mais concreta de todas parece assentar num casaco com esses tons usado pelo seu grande amigo Tom Webster, um cartonista famoso na época, com o qual jogava golfe todos os domingos. Seja tal autêntico ou não, as mangas brancas, estreadas contra o Liverpool no dia 4 de Março de 1933, vieram para durar e para identificar o Arsenal de forma inequívoca. Tal como aconteceu com o WM, vários clubes europeus, sobretudo na Checoslováquia com o Sparta de Praga e na Escócia, com o Hibernian, mas também em Portugal, com o Sporting de Braga, copiaram a moda-Chapman e o Arsenal só durante duas épocas não utilizou as mangas brancas, em 1966-67, em que jogou com as camisolas completamente vermelhas, causando um descontentamento total entre os adeptos de tal ordem que na época seguinte as tiveram de volta, e em 2005-06 quando foram utilizadas camisolas comemorativas iguais às de 1913, a primeira época em que Highbury foi a casa do Arsenal de Londres.
Mas Herbert Chapman não se ficou por aqui. Não se contentou com aplicação da tática do WM nem com as mangas brancas nas camisolas.Foi ele o pioneiro da instalação da iluminação no estádio porque considerava extremamente importante receber equipas estrangeiras em jogos noturnos seguindo o exemplo do que já acontecia na primeira grande competição europeia existente – sim, não sejamos redutores, não foi a UEFA que inventou as taças europeias – a Mitropa Cup, que punha em compita os campeões dos países do centro da Europa. Aliás, vários anos antes de os responsáveis pelo jornal francês L’Équipe terem surgido com a ideia de uma taça que reunisse todos os campeões europeus já Herbert Chapman procurava sensibilizar a Football Association para uma competição internacional que servisse para prestigiar ainda mais os clubes britânicos até então considerados os mais fortes do mundo já que foram os primeiros a entrar no campo do profissionalismo. Como se sabe, a política da Federação Inglesa deFutebol cristalizou-se teimosamente num isolamento que provocaria, a certa altura, um declínio dramático da qualidade do futebol em Inglaterra, e foi só em 1950 que aceitou que a seleção dos três leões participasse num Campeonato do Mundo sob o princípio de que os melhores do mundo não tinham de o provar em campo. Pois. Quando quiseram prová-lo era tarde demais. E assim, apesar da WestStand de Highbury já ser iluminada desde 1932, só bastante mais tarde serviu verdadeiramente os motivos de Herbert Chapman que, noutra prova de espírito criativo, implementou números nas camisolas dos jogadores para serem facilmente distinguíveis tal como decidiu que as meias dos arsenalistas seriam às riscas vermelhas e brancas para que nos movimentos mais junto à relva cada um soubesse com precisão onde encontrar o companheiro mais bem colocado.
Chapman já tinha sido campeão inglês com o Huddersfield em 1923-24 e 1924-25. O seu primeiro grande momento no Arsenal foi a vitória na Taça de Inglaterra de 1929-30. Seguiram-se dois títulos de campeão – 1930-31 e 1932-33. Apesar de ter morrido pelo caminho, no dia 6 de Janeiro de 1934, vítima de uma pneumonia, os seus sucessores, Joe Shaw e George Allison, sempre lhe atribuíram o mérito dos campeonatos ganhos em 1933-34 (iniciado com ele) e 1934-35. Afinal a equipa tinha sido criada e montada por ele. E atingira sob o seu reinado um prestígio que durou para sempre…