Aclamado como um herói popular, com a morte de Rui Nabeiro, aos 91 anos, desaparece o mais parecido que tínhamos com um Robin dos Bosques entre a cadaverosa elite económica portuguesa. Dos cafés ao vinho e à distribuição de bebidas ou de molhos, o grupo que ele criou teve uma estratégia de expansão que o levou a estar presente em sete países estrangeiros, de França à China, e, em 2021, o seu fundador ascendia à 15º posição entre os homens mais ricos de Portugal, com uma fortuna avaliada em 454,2 milhões de euros. Mas era ainda a componente filantrópica que criava à sua volta um verdadeiro fervor. Aquelas letras amarelas no triângulo vermelho, a imagem da Delta, é talvez um aceno ao passado, o que resta da vela latina e dos tempos de audácia que caracterizavam a imagem dos portugueses mundo fora. E toda esta aventura mistura-se com a história de vida de um homem, que soube ser um exemplo de uma diferença radical, mas que, ao mesmo tempo, teve o cuidado de não se insurgir contra o regime que vigora num país que envilece os seus, condenando-os a uma condição de miséria ou a emigrar.
Rui Manuel Azinhais Nabeiro, o terceiro de cinco filhos numa família modesta de Campo Maior, distrito de Portalegre, nasce a 28 de março de 1931. A sobrevivência não dava demasiada margem aos ensaios e desafinações da infância, e com 9 anos apenas o rapaz começou a trabalhar, ajudando os pais, a levar e a trazer encomendas da salsicharia da mãe, naquela inóspita zona raiana do Alto Alentejo onde a vida era ainda mais difícil do que é hoje e onde, dada a proximidade com a fronteira espanhola, o contrabando se impunha como uma oportunidade. «Eu comecei muito cedo, muito jovem, e as raízes foram sempre endurecendo», lembraria Rui Nabeiro muitos anos mais tarde. Mas antes de entrarmos em detalhes, e de cedermos às linhas biográficas convém questionar a forma como, por estes dias, os feitos de Nabeiro foram elencados numa ode e segundo aquele registo de homenagem, de pronta hagiografia em que parece ter sido o destino a arquitetar o percurso do empresário que desenvolveu a região e que construiu um império nos cafés e nos vinhos, sempre enquadrando na sua expansão um reconhecido compromisso de responsabilidade social. A verdade é que toda a gente bebe café, e Rui Nabeiro sabe que uma marca se impõe através da simpatia que convoca. E nada consegue ser mais aliciante do que uma boa história, que possa dar um salto a um passado que evoque elementos de superação perante as dificuldades, de risco e de aventura, e a isso mesmo aludem dois monumentos erguidos na vila de Campo Maior e que são indestrinçáveis entre si. Primeiro há aquele monumento aos contrabandistas, 12 homens de mochila às costas, numa evocação que nos devolve a um tempo que os relatos e a própria passagem do tempo não podiam senão ter mitificado, e é assim que estamos de volta ao período da Guerra Civil espanhola, e às desventuras de um afoito bando que descosia as linhas de fronteira num jogo do gato e do rato com as brigadas de carabineiros espanhóis e da Guarda Fiscal portuguesa. É difícil não se sentir enredado pelas façanhas desses perfis recortados num contraste tão marcante face aos nossos dias, homens que arriscavam a pele nas suas incursões a coberto da noite para lá e para cá, suportando às costas uma carga que podia chegar aos 40 quilos e que chegavam a cobrir distâncias de 60 quilómetros. E isto nem era feito por homens que consideravam estar a cumprir algum feito grandioso, mas era uma espécie de epopeia sacana, que teceu as suas próprias lendas nada solenes, e que precisamente não se conformava com esses limites que definem formas de sufoco. Não se tratava de salvar ninguém, mas fazer justamente pela vida, ganhar algum transportando uma série de artigos, entre eles «rebuçados, chocolates, calças de ganga, aspirinas e outros medicamentos, perfumes, tabaco, roupas, toucinho, tripas de porco, pneus, peças de automóvel, barras e folhas de cobre ou gado. E, claro, café, o produto mais cobiçado e ‘transacionado’ de Portugal para Espanha desde a Guerra Civil espanhola», como lista o Público.
Aos 12 anos, Rui Nabeiro já não andava só a fazer recados para a pequena mercearia de carnes da mãe, ajudava também o pai e os tios na torra do café, sendo que o negócio familiar estava em larga medida dependente do contrabando de café “verde” para o país vizinho. Nunca foi além da 4.ª classe, e aprendeu mais testemunhando os sacrifícios a que o seu pai, motorista de um médico, foi obrigado para que a pobreza não lhe desse cabo da família. Numa entrevista ao Expresso, contava que a família passava semanas e até meses sem o ver, isto porque, se durante o dia estava incumbido de levar o patrão onde este precisasse, de noite ficava de guarda a um filho dele que tinha problemas do foro psiquiátrico, e que ficava «totalmente descontrolado». Aprendeu também muito com o tio Joaquim, a vê-lo saltar a fronteira com um saco de trinta quilos às costas. Mas o que recorda desses tempos não é o sentido de aventura, antes o medo constante, a enorme incerteza em que se vivia quando eram tantos os contrabandistas capturados na fronteira. «A esquadra da polícia estava ligada ao edifício da Câmara e nós ouvíamos os gritos das pessoas quando lhes era anunciado que iam ser retornadas para Espanha. (…) Vinham, eram entregues, presas, e depois transportadas para Espanha, sabendo que iam para o suicídio»…
Foi o tio que, com a ajuda de um espanhol, montou a primeira fábrica de torrefação, e, aos 17 anos Rui perde o pai, assumindo a quota da família na fábrica. Antes da marca Camelo, que ainda hoje está no portefólio da família, houve a Cubana que viria a cair na mira da Inspeção das Atividades Económicas e teve de ser vendida. Aos 17 anos, Rui fica à frente da Torrefação Camelo. Em 1953, Rui Nabeiro casa-se com Alice Gonçalves, antiga colega dos bancos da escola primária. O casal viria a ter dois filhos, João Manuel e Helena. Sem abrir mão da Camelo, em 1961, instala uma máquina de torra de café, com capacidade para 30 quilos num pequeno armazém com 50 metros quadrados, em Campo Maior, e contrata três funcionários reformados para o auxiliarem. Nascia a Delta Cafés. O café ia buscá-lo a Angola, e, aos poucos, foi conseguindo empregar muitos dos contrabandistas da região, que transformou em carregadores contratados e depois em assalariados. Em 1962, teve a sua primeira experiência como autarca, que viria a repetir ainda durante o Estado Novo, em 1972. «Nomeado, claro, na altura não havia eleições. Nomeado e posto na rua da primeira vez, porque eles queriam que eu trabalhasse devagar e eu trabalhava mais à pressa. Na segunda fui eu que me vim embora», contava na entrevista ao Expresso em 2016. Depois do 25 de Abril, adere ao Partido Socialista. «Sou socialista porque nasci pobre», dirá em várias entrevistas. Voltaria a exercer o cargo em 1977, mas já por sufrágio universal, tendo sido reeleito duas vezes e mantendo-se no cargo até 1986.
Quando se dá a Revolução, a folha salarial da Delta Cafés já conta com 77 trabalhadores, e Rui Nabeiro vê-se obrigado a gerir uma tentativa de ocupação pelos trabalhadores da fábrica que logo ficou resolvida. «É nos momentos difíceis que os homens devem afirmar-se» e mostrar o «que são capazes de fazer e eu afirmei-me no 25 de Abril porque lutei», dirá anos mais tarde. Esse acabou por ser um período decisivo para a Delta, e isto ficou a dever-se claramente à sagacidade e audácia de Rui Nabeiro, que teve a intuição de que as coisas iam apertar e se queria sair na frente tinha de ir ele mesmo a Angola e trazer todo o café que podia comprar. «Foi essa a minha audácia», dizia na entrevista ao Expresso. «Não tive dificuldades em ir para a frente de batalha. Em 1975, quando estava tudo a vir para Portugal, não mandei ir outros – fui para lá eu. Passei dificuldades, queríamos comer e não havia (…) Dormi muitas vezes em fazendas de café, sempre ao pé da rapaziada toda. Isso conta bastante». E se teve visão e soube antecipar as restrições que aí vinham, contou também com a soberba dos seus rivais, que o subestimaram. «Na altura eu já vinha a dar passos. Essa gente grande, que tinha grande marcas, dizia: ‘O Nabeiro está a vender umas coisas, mas não vale nada, é um alentejano…’». Foi assim, com os concorrentes à míngua (a Chave d’Ouro, a Nicola, A Caféeira, a Sical, A Brasileira), que a Delta logo conquistou uma posição de domínio no mercado nacional. Nenhuma dessas marcas resistiu, como lembrou Nabeiro: «A Nestlé comprou a Tofa, a Sical e outra do norte. Duas outras financeiras têm a Chave d’Ouro, a Nicola e mais três ou quatro empresas do norte». A par da Delta, só houve uma outra resistente, a Torrié, no Porto.
A partir do momento em que assume uma posição dominante no mercado nacional, o grupo vira-se também para fora, comprando café em vários continentes, assumindo presença em vários países europeus e tornando-se símbolo de café da diáspora portuguesa nas principais comunidades de emigrantes, dos EUA a Macau. No arranque da década de 80, constitui a Novadelta (já então a “maior fábrica de café da península Ibérica”) e em 1988 cria o grupo Nabeiro, que se expande para outros negócios.
Atualmente, o império Delta emprega cerca de quatro mil trabalhadores, e são torradas por dia 100 toneladas de café pelo grupo, com vendas anuais que ultrapassam os 400 milhões de euros. Mas a Delta foi crescendo e não se ficou pelos vizinhos ibéricos, e mais de um quarto dos negócios vão para fora de Portugal. À produção de café juntaram-se outros negócios, de distribuição alimentar e da área imobiliária e turística. No ramo vinícola, tem a Adega Mayor, e distribui também a Corona e a Budweiser. Hoje, são 37 as entidades em que o grupo opera – entre sociedades anónimas, empresas internacionais e a holding Nabeirogest SGPS. Sem dispersão do capital em bolsa, o grupo manteve-se uma empresa familiar com a sucessão preparada a tempo, e com o neto, Rui Miguel Nabeiro, a ter já dado o passo seguinte, tornando-se o rosto da Delta Q, e assumindo a liderança do grupo em 2021. Mas se esta atividade empresarial é encarada como uma aventura singularíssima é pela forma como Rui Nabeiro assumiu sempre como prioridade um desenvolvimento que beneficiasse a comunidade que viu nascer o grupo. Uma reportagem do Público em 2010, dava conta de que em Campo Maior, a Delta Cafés era a principal empregadora. «Só na fábrica de torrefação do café, na Herdade das Argamassas, trabalham cerca de 1500 pessoas (em alguns casos, famílias inteiras), mais de um terço da população ativa do concelho. Isto sem contar com os empregos indiretos gerados pelo negócio do café, nem com as duas dezenas de empresas do Grupo Nabeiro, que atuam em sectores como o comércio, os serviços, a hotelaria e a distribuição».
Numa altura de crise profunda, o concelho, com perto de nove mil habitantes, tinha uma das taxas de desemprego mais baixas do Alentejo, longe da média nacional. Mas o impacto dessa redistribuição da riqueza sente-se em toda a região, tendo Rui Nabeiro feito muito para contrariar a desertificação que condena o interior do país a funcionar como um museu desolador, composto de terras-fantasmas. Multiplicavam-se as histórias das pessoas em situações delicadas que conseguiram ser ajudadas, e os apoios alargam-se em áreas como a educação, o desporto e a saúde. Em 2007, inaugurou o Centro Educativo Alice Nabeiro, para dar resposta às necessidades extraescolares das crianças de Campo Maior. Com o patrocínio da Delta, a Universidade de Évora criou, em 2009, a Cátedra Rui Nabeiro, destinada à promoção da investigação, do ensino e da divulgação científica na área da biodiversidade.
E comprometido com a missão social do grupo que criou recusou sempre vender a Delta à Nestlé e a outras multinacionais, como a Philip Morris, a Kraft ou a a Pepsi. Também rejeitou uma oferta do grupo Jerónimo Martins. Havia um projeto que superava esse horizonte tacanho do enriquecimento que apenas promove as aberrantes desigualdades sociais e vai devastando a diversidade e a própria riqueza cultural, ficando tudo submetido a um mesmo modelo de exploração e expropriação.
Em plena pandemia, com as vendas em queda abrupta e a fábrica praticamente parada, Rui Nabeiro juntou a família à mesa da administração para decidir a resposta que o grupo daria à crise. «Nós temos de saber o que queremos na vida e quando veio esta desgraça pensámos, numa reunião da administração, sobre o que faríamos. Não vendíamos, parou tudo… E tínhamos de pagar [aos funcionários]. Não fomos ao lay-off para dizer está aqui o dinheiro, não, esse dinheiro era mais lento e diferente. Pensámos que íamos pagar do nosso bolso, porque ainda havia meios suficientes para o fazer», contou Nabeiro ao Jornal de Negócios, adiantando que «os salários foram sempre pagos no dia habitual». Para o empresário, tratou-se de um ponto de honra, uma forma de demonstrar que as empresas «podem e devem» atuar de forma diferente quando são desafiadas pela crise. «E quando chegasse o momento de não podermos mais, aí tínhamos o direito de os nossos governantes repararem que não fomos a correr a buscar lá o dinheiro, fomos buscar primeiro o nosso dinheiro».
Mais do que útil ou justo, é educativo que se deixe bem clara a diferença de perfil e de atuação bem como o legado que deixa um empresário como Rui Nabeiro, e ninguém, nenhum dos tantos dirigentes políticos ou dos nossos colunistas “liberais” lhe terá rendido uma homenagem mais eloquente do que Daniel Oliveira: «Rui Nabeiro dedicou-se à produção de bens transacionáveis de exportação. Não se dedicou a distribuir bens importados e a esmagar produtores através de oligopólios. Não se dedicou a nenhum sector fortemente protegido da concorrência externa – pelo contrário. Não comprou uma empresa pública já feita e poderosa, quase monopolista, para afanosamente a destruir, como se fez com tantas em Portugal».
Rui Nabeiro também não se quis dedicar ao rentismo, vício da elite económica portuguesa. Ao contrário dos empresários com mais peso na política e nas redações deste país, não teve como grande objetivo empresarial receber dinheiro do Estado para providenciar serviços públicos com procura inelástica, sem concorrência externa e sem risco, como a saúde ou a educação. Ao contrário dos capitalistas mais defendidos pelos nossos supostos ‘liberais’, não viveu de mão estendida para ver quanto sacava dos nossos impostos, tentando convencer os incautos cidadãos que sabe gastá-los melhor do que aqueles que elegemos».
Contudo, e mesmo se temos toda a vantagem em compreender porque é que Rui Nabeiro foi esse raro exemplo de um empresário que soube tornar claro o que seria um capitalismo orientado por valores sociais, transcendendo esse jogo de números que acaba sempre por ter um impacto devastador, às tantas ele próprio se deixou encantar pelo seu mito. As mitologias modernas são estas que elevam certos homens a figuras de adoração, também num reflexo dessa forma de miséria cultural que se contenta em organizar uma ideia do mundo entre as decorrências dessa moral falsificada que se oferece como consolo para os sornas. Há quem só queira ouvir fábulas, contos de fada ou histórias de embalar. E, em decorrência disto, muitas pessoas preferem sacrificar toda a sua interioridade complexa a uma redução banal, fazendo de si mesmas personagens dramáticas. E muitos de nós, imersos no estupor desta narrativa linear, só de madrugada quando a mente vagueia, damos por nós a questionar-nos: então foi a isto que chegou a História?
Raros são aqueles que pretendem libertar-se dessa forma de condicionamento. E o que seria na verdade refrescante era encontrar uma figura que preferisse conservar para si um álbum de recortes colecionando não os louvores e elogios, mas os insultos e ofensas que recebeu, não num ânimo rancoroso, como quem prepara algum ajuste de contas, mas naquele espírito de quem sente gosto em confrontar-se mesmo com os reflexos mais rudes ou até as caricaturas mais grotescas, relativizando, satirizando-se a si mesmo, e isto faz-nos pensar em presenças de tal modo vertiginosas que não cabem no anedotário nem na vulgaridade impressionista das narrativas mais redundantes. Não se trata de nutrir ódio por si, mas superar-se. É preciso recordar um grande nome da sátira como Gógol, que tinha o hábito de se pôr de pé diante de um espelho, a gritar de vez em quando o próprio nome, num tom de repulsa e alienação.
Rui Nabeiro não se contentou em assumir os seus deveres sociais e económicos, devolvendo uma parte da enorme riqueza que foi acumulando, mas fez questão de inscrever o seu percurso segundo essa «ilusão biográfica fornece o sossego e bem-estar de que a ‘nova burguesia’ carece», para citar um texto recente de António Guerreiro em que este se insurgia contra essa operação que passa por fazer a biografia coincidir com a ideia de Destino. «A ilusão biográfica consiste em fazer do biografado um indivíduo coerente, consciente, unitário, soberano, que se vai tornando progressivamente naquilo que é». Este crítico sublinha ainda que «a biografia conserva, mesmo que com baixo teor, uma componente épica, uma positividade heroica». Ora, Nabeiro nunca se esquivou a este regime, e a par das estátuas, das comendas e outras distinções, depois de duas outras biografias, chegou mesmo a encomendar um monumento literário, como se fosse uma requisição feita aos serviços da posteridade de modo a melhorar as hipóteses de o seu mito durar para lá das suas boas obras e desse regime de providência ou caridade que fica tão fácil construir neste país. E não houve sequer a menor reserva em assumir que foi por causa de ter visto Peixoto, num programa de televisão, falar sobre o seu romance Autobiografia, em que José Saramago é uma das personagens, que o fundador do grupo Nabeiro-Delta Cafés contactou o escritor para que este lhe prestasse os seus serviços encomiásticos. O negócio fez-se e o livro chegou às listas dos mais vendidos e na imprensa, além desses ecos que cumprem também eles esse regime ululante do mais descarado publicismo, não houve um só crítico que tivesse surgido entre nós com a pompa de um grande acontecimento literário mais um desses títulos que assinalam a condição miserável de uma cultura subserviente e que apenas nos oferece a perspetiva de um imaginário definitivamente descido de todos os céus, condenando-nos a uma forma de representação do mundo em perpétuo estado de espasmo mítico.
Neste sentido, o que Rui Nabeiro acabou por trair foi a humildade e sobretudo essa capacidade de distância irónica em relação a si mesmo. Nos últimos anos, ele mesmo já não acedia a falar de nenhum aspeto mais espinhoso do seu passado, nomeadamente quanto ao período de exílio de 17 meses que passou em Badajoz, em 1986, para escapar a um mandado de captura por suspeita de fuga ao fisco. Convertido à monumentalização épica do seu percurso, no fim, Rui Nabeiro já só falava em si mesmo como uma figura do Destino. Leia-se a resposta que deu durante a apresentação oficial da tal biografia romanceada: «Esta terra precisava de alguma pessoa que se dedicasse a ela. Que trouxesse riqueza, que provasse o bem-estar de muita gente que não tinha nada. Isso começou muito cedo, eu comecei muito novo, e isso aconteceu porque Deus e a Providência me ajudaram e me disseram ‘por aqui’. Trabalhei sempre a pensar nas pessoas desta terra, e as pessoas desta terra viviam trabalhando exclusivamente para o campo, todos os dias, e vivia-se mal. Então, chegámos nós, cheguei eu, comecei com três empregados e, fomentando, chegámos às centenas. Hoje são muitos [cerca de quatro mil]. Sair da minha terra ou deixar que qualquer coisa saia da minha terra? Tantas vezes que fomos visitados para sairmos, para recebermos em troca alguns valores… Mas isso não aconteceu porque eu não poderia permiti-lo. Aquilo que aqui está é algo que eu construí e é da família, mas é algo também da família de todos os nossos colaboradores. Sair de Campo Maior, não. E se eu conheço o mundo: hoje mesmo recebi telefonemas e emails de parabéns de pessoas, mensagens da China, do mundo inteiro. Se não me tivesse dedicado, seríamos mais uns desconhecidos. Mas hoje somos referenciados e somos realmente queridos. Sinto que sou querido para a nossa região e para o nosso povo».
No fim, apesar de tudo, Rui Nabeiro teve a grandeza de ser um homem entre homens, de não abdicar do contacto direto com a vida, orgulhando-se por ter todos os dias pessoas que o esperavam à porta do seu escritório, querendo contar-lhe as suas histórias, pedir-lhe ajuda. Sendo acessível, podia assim estar perto dos outros, sentir-se capaz de afetar a vida das pessoas, e também manter-se ligado a elas, deixando claro que essa era a forma que tinha de tomar o pulso para medir a situação do país. E também nunca deixou que a riqueza o levasse para longe das suas origens ou o obrigasse a arrancar as suas raízes. Por isso, vivia há 40 anos na mesma casa e deslocava-se num carro com 16 anos. Não fingia ser o que não era, mas claramente ficava contente por ser aquilo que os outros esperavam que fosse: um capitalista alentejano, sem pressa de enriquecer, e que fazia gosto em pôr para bom uso o poder que o dinheiro confere, ao ponto de um empresário sagaz ser tido como um santo que atendia às preces dos mais desfavorecidos.