Quando não se pode confiar em Deus

Na iminência de receber a Jornada Mundial da Juventude e a visita a Portugal do Papa Francisco, é intolerável que os presumíveis culpados daquelas atrocidades se mantenham em funções.

por Alexandre Faria
Escritor, advogado e presidente do Estoril Praia

A Igreja Católica, milenar instituição deste nosso mundo, está a atravessar o pior momento da sua história, encontrando-se sujeita a um escrutínio nunca visto, por culpa exclusiva, não podendo contar, como tantas vezes sucedeu ao longo de séculos, com o apoio ou conluio de regimes e governos.

O que mais surpreende, atendendo aos seus seculares pilares existenciais, é a ausência de compaixão pelas vítimas, a par de um desnorte incompreensível no modo como esta entidade comunica aos fiéis e à sociedade onde se integra, procurando desvalorizar factos trazidos à tona por uma comissão independente por si autorizada, gerando uma perplexidade generalizada e uma indignação crescente por parte de quem necessita de acreditar numa redenção.

Se, numa fase inicial, tais atitudes dúbias e erráticas poderiam encontrar explicações numa religião assente no basilar conceito de perdão, as sucessivas declarações de altos responsáveis da igreja católica portuguesa, a roçar o tom provocatório e incendiário, demonstram outros caminhos, perigosos e atentatórios da livre circulação de pensamento e dos valores a defender em pleno século XXI, aparentando nada ter retirado como lições dos crimes cometidos, optando pela sobranceria, arrogância e pela ausência de moral.

Para além do desrespeito institucional e da vista grossa às declarações insuspeitas dos mais altos representantes políticos deste país, os portugueses mantêm-se chocados pela ausência de medidas e de coragem perante as óbvias conclusões dos relatórios apresentados. E ninguém duvida da necessidade de continuar a sua investigação, porque o número aproximado de cinco mil vítimas elencado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica estará, de certeza, muito aquém da realidade.

Na iminência de receber a Jornada Mundial da Juventude e correspondente visita a Portugal do Papa Francisco, é intolerável que os presumíveis culpados daquelas atrocidades se mantenham em funções, escondidos atrás de uma imerecida batina, sendo, de igual modo, insustentável que o ressarcimento das vítimas não seja assumido de imediato, escondendo-se estes temas atrás de sorrisos cínicos ou de declarações anedóticas por parte dos seus responsáveis.

À imensa coragem de quem denunciou, a Igreja respondeu com um incompreensível desdém. E, em vez de conferir esperança, demonstrou ser uma organização como as outras, repleta de compadrios e de proteções inadmissíveis a prevaricadores, metendo a cabeça na areia à espera que o tema desapareça por si.

Mas o assunto não irá passar e não será esquecido. Aquela página não se irá virar e a revolta social só conduzirá à criação de novas associações e comissões privadas, em busca da eficaz condenação dos agressores pelos abusos sexuais praticados e da justa reparação. Numa sociedade laica cada vez mais carente de fé, tanto no ser humano como no divino, até pode parecer contraditório, mas precisamos, mais do que nunca, de uma igreja humanista.