‘De certa forma, Trump é a nova normalidade’

Há dois anos, Vasco Rato publicou de Mao a Xi: o Ressurgimento da China. Agora, com Tsunami: Trump, Trumpismo e a Europa, continua a descrever como as grandes potências estão a mudar o nosso mundo.

Por Teresa Nogueira Pinto

Uma das coisas que percebemos no livro é que Trump e o Trumpismo são mais consequência do que causa…

A ideia subjacente ao título – Tsunami – é a de um acontecimento inesperado. Porém, deveriam ter esperado, pois o trumpismo é consequência de mudanças estruturais ocorridas nas décadas anteriores. Poucos foram sensíveis às mudanças em volta da globalização e das suas consequências sociais. Durante muito tempo pensou-se que a globalização era positiva – e talvez seja, do ponto de vista abstrato e global -, mas a globalização prejudica, fere certas camadas da população. Essas pessoas constituem a base de apoio a Donald Trump. Não vai buscar apenas votos tradicionais republicanos: altera a base social do partido, que se torna mais um partido da classe operária e dos excluídos. Além dessa clivagem de classe, há uma dimensão cultural. Os eleitores de Trump deixaram de se rever nas elites, na radicalização da agenda cultural woke dos últimos anos. Olham para Trump como um porta-voz do seu descontentamento. E ele assumiu-se como o defensor desses americanos esquecidos.

Essa hostilidade em relação às elites também não é uma novidade na América…

Não é. A tradição anti-Washington, isto é, anti-governo federal é longa. Depois de 1945, Truman, Carter, Reagan, Bush e o próprio Obama disseram que as elites não entendiam a população, que Washington was out of touch. A desconfiança relativamente ao governo federal está associada à descentralização do Estado americano e ao ritmo da mudança do quotidiano americano. Em resultado da inovação económica, a mudança social e económica é vertiginosa. O governo federal perde o contacto com a população, porque ela muda. Muda fisicamente, através das migrações internas, mas também muda em termos culturais – a cultura americana, sobretudo a pop culture, muda a um ritmo vertiginoso. As pessoas, por vezes, ficam desorientadas. Aconteceu nos anos 70, quando se verifica a resistência e a subsequentemente revanche contra as alterações sociais dos anos 60, o que levou muitos eleitores democratas a transferirem-se para Ronald Reagan. Neste sentido, Trump não trouxe nada de novo.

Trump é mais Buchanan que Reagan?

Há uma tradição populista nos Estados Unidos, tanto à esquerda como à direita. Políticos como George Wallace ou William Jennings Bryan exemplificam-na. Depois da Guerra Fria, essa tradição populista sentiu-se no seio do Partido Democrata nos anos 90, na resistência ao comércio livre por parte da ala protecionista ligada aos sindicatos, que depois desapareceu, ou melhor, transferiu-se para os republicanos. Mais tarde, seria parcialmente recuperada por Bernie Sanders e, sobretudo, por Trump. O Buchanan, nos anos 90, era tido como um louco. Mas muito do que ele dizia foi retomado por Trump, vinte anos depois. 

Um fenómeno acentuado com Trump, como com Bolsonaro, é a polarização. Os apoiantes vêem-nos como última esperança num mundo atacado por bárbaros; os opositores como inimigos totais, determinados a arrasar a decência e a até a democracia. É uma questão de forma ou de ideias?

É uma questão do evoluir das sociedades democráticas. A polarização não é exclusiva do Brasil e dos Estados Unidos, está a ocorrer em todos os países democráticos. Com o liberalismo em crise, as pessoas querem certezas, querem segurança. As certezas são fornecidas pelos partidos populistas através de uma radicalização cultural. A dimensão cultural é muito importante porque a política, nas sociedades democráticas, faz-se em volta das questões ‘fraturantes’, como se diz em Portugal. Mas as questões fraturantes, fraturam mesmo. Não se pode esperar que haja só fratura de um lado, que não haja resposta do outro lado ideológico. Isso traduz-se em bipolarização e radicalização. Os sistemas presidenciais – como o americano e o brasileiro – tornam essa radicalização mais fácil, porque se escolhe não apenas o supremo magistrado da nação, mas também o chefe do executivo. Na Europa sente-se menos, porque os partidos políticos, em sistemas parlamentaristas, põem um tampão no processo. Em França, o regime presidencialista acentua a radicalização. Uma das ideias que tentei transmitir no livro é que Trump não é um extraterrestre, que a sua candidatura e a sua eleição resultam de processos políticos que têm de ser entendidos. E não vale a pena dizer que não se gosta de Trump. Não vale a pena seguir a estratégia da UE: esperar que Trump abandonasse a Casa Branca para que tudo regressasse à normalidade. De certa forma, Trump é a nova normalidade.

As elites europeias, por convicção ou conveniência, nacionalizaram Trump. Até por cá tivemos um manifesto. O Trumpismo acompanha a reconfiguração da direita europeia?

Acompanha, justamente porque as elites europeias transformaram Trump numa questão de política interna. Aconteceu, também, em Portugal. Deixou de ser possível dizer que – em determinado assunto – Trump tinha razão. Nunca podia ter razão em coisíssima nenhuma. Quando chegamos a um ponto destes, já não estamos a entender nada, mas a fazer combate político e a propagar a cegueira ideológica. Foi uma das razões que me levou a escrever o livro. Se continuarmos a encarar Trump como uma anomalia, então não percebemos os rumos da política externa americana. E, se assim for, teremos mais crises transatlânticas. Trump era, obviamente, uma figura muito polarizadora, que também radicalizou os seus apoiantes na França, na Polónia e Hungria.

Trump é citado no livro, em visita à Escócia – ‘As pessoas querem ter os seus países de volta’. Lembra o slogan de Le Pen nas presidenciais francesas, ‘Se o povo vota, o povo ganha’. Uma democracia mais popular, menos liberal?

A formulação nos Estados Unidos salienta a ideia de que ‘a América é uma República, não uma democracia’. A distinção é relevante, pois quando falamos na defesa da democracia liberal, queremos dizer o Estado de Direito. Estamos a referir-nos às instituições republicanas. A democracia é outra coisa: é a soberania plena do povo. O populismo é um fenómeno genuinamente democrático porque permite que as pessoas tenham uma voz direta, sem filtros. Os resultados são, porém, frequentemente imprevisíveis. Nos países ‘mais democráticos’, muitas vezes não se gosta dos resultados… Talvez o populismo seja demasiado democrático. Não é por acaso que os gregos antigos expressavam grande desconfiança em relação à democracia.

Olhando para a política externa. O mundo segundo Trump é hobbesiano na substância e na forma. Há um realismo sem pudores…

Sim, é um mundo hobbesiano e de soma zero: o que uns ganham, outros perdem. Mas, para Trump, os EUA custeiam a segurança dos seus aliados ricos. Considera que essa é uma das causas do declínio da América. O seu ponto de partida é a ideia, que Obama também expressava, de que a América se encontra em declínio. A diferença entre Obama e Trump está na forma como encaram esse mesmo declínio. Obama pensava que era irreversível, e por isso seria necessário geri-lo. Trump julgava que era possível revertê-lo, se se alterassem um conjunto de elementos que caracterizam a ordem liberal, como o comércio livre. Curiosamente, a Estratégia de Segurança Nacional da Administração Biden apela a uma estratégia industrial e sugere que o comércio livre, tal como nós o entendíamos, acabou.

Como Trump, a ascensão da China também é um produto da globalização…

A entrada da China na OMC muda tudo, permitindo o take off vertiginoso da economia chinesa. Por que razão é que os americanos consentiram a entrada da China na OMC? Acreditavam que a integração do país na economia internacional provocaria mudanças socioeconómicas internas que levariam à democratização. O objetivo subjacente à entrada da China na OMC era, portanto, a democratização da China comunista. Essa visão era partilhada pelos europeus. Repare que as linhas mestras da política externa europeia assentavam na promoção do livre comércio, dos direitos humanos, e da democracia. Os europeus limitaram-se a espelhar o consenso americano em política externa, articulado por Bill Clinton através da estratégia de alargamento, e posteriormente seguida por George W. Bush e, com pequenas variações, por Obama. Trump rompe com esse consenso, julgava que era necessário traçar uma abordagem nova. Qual é essa abordagem? Um regresso ao século XIX, ou seja, à política do power politics, como fazem Xi Jinping e Vladimir Putin. Por isso é que digo que Trump é um sintoma – não a causa – de uma crise maior, do colapso da ordem liberal. Trump aponta para o que aí vem na politica mundial, que não vai ser benigno… justamente porque será um mundo assente na soberania, numa conceção hobbesiana. Mas o mundo é o que é.

Mas quando olhamos para o sistema internacional, Xi Jinping é o grande defensor do multilateralismo, do comércio livre…

Não é bem assim. A China considera que a ordem internacional criada em 1945 também lhe pertence. É um dos cinco países que estão no CS da ONU, um órgão criado para permitir que as grandes potências pudessem gerir um sistema internacional assente no princípio da soberania. O que a China quer recuperar, e a Rússia também, é essa leitura soberanista dos anos 40 e 50. Uma leitura que se alterou radicalmente à medida que as democracias liberais se tornam mais poderosas, sobretudo depois do colapso da União Soviética, com a tentativa de alargar a ordem e os princípios liberais através das doutrinas de intervenção humanitária de Tony Blair e Bill Clinton. É contra isso que a China está a reagir. Não se considera uma potência revisionista. Mas pretende regressar a um entendimento mais antigo da ordem mundial. Quanto ao comércio livre, a China nunca o praticou.

Xi Jinping e Trump, num contraste com a União Europeia, falam a língua da soberania…

A União Europeia não pode ter esse tipo de discurso. A integração europeia fez-se negando ou, melhor dizendo, transferindo e partilhando a soberania. Porquê? Depois da II Guerra Mundial chegou-se à conclusão de que o problema era o nacionalismo, a soberania e o protecionismo. Eram as causas da guerra. Acredita-se que a integração europeia dá resposta às causas da guerra, que é um projeto que visa garantir a segurança e a paz. Ainda hoje muitos europeus acham que o Estado soberano é o problema. Por isso, poucos europeus esperavam que os britânicos quisessem recuperar a sua soberania através do Brexit. Nas nossas cabeças a soberania continua a ser um sinónimo de conflitos, guerras e egoísmos nacionais. Tudo o que, aparentemente, não existe na União Europeia…

2016 é um annus horribilis para Bruxelas. Para ser um ator geopolítico é preciso raciocinar estrategicamente. A um só cérebro e uma só voz?

Sim. E que haja propósito, que a política externa não seja apenas um consenso mínimo. Duas razões explicam a ineficácia da política externa da UE. Primeira, a ausência de instrumentos militares credíveis. Mas não interessa possuir instrumentos militares se não soubermos como usá-los. Esse é o segundo problema. Há consensos mínimos, mas as questões verdadeiramente importantes dividem. Isso viu-se logo no início do pós-Guerra Fria com a eclosão das guerras na Jugoslávia. Quando as guerras balcânicas começam, o então responsável pela política externa europeia disse: ‘Atravessámos o Rubicão, nós – europeus – iremos resolver este problema’. Viu-se… Porque os interesses específicos dos Estados são tão divergentes, é muito difícil traçar uma política externa para além dos consensos mínimos. Por isso, quando olhamos para as linhas mestras da política externa europeia, verificamos que se limitam a salientar a cooperação, o não uso da força, mercados, democracia, direitos humanos. Esses objetivos são incontroversos. Mas o problema é como concretizá-los. Ao mesmo tempo, a UE é um jogo de equilíbrios muito complexo, sobretudo entre a Alemanha e a França, pois nenhum quer que o outro seja excessivamente poderoso. Dir-se-á que a União Europeia pode ser um líder moral, através do soft power. Mas isso não existe. Como disse, as coisas são o que são.

Uma das questões que mais críticas valeu a Trump foi a questão das migrações. mas a UE, nesta matéria, parece tão transacional quanto Trump…

É, claramente. Há uma dose de grande hipocrisia, que também existe noutras democracias liberais. Nos últimos tempos quantos refugiados aceitou o Japão? Poucos, nenhuns? Há muita hipocrisia nesta discussão porque, de um lado, estão os valores humanitários – compreensíveis, liberais, democráticos e que todos nós apreciamos. Mas do outro está a realidade inerente aos limites materiais. Quando a realidade choca com os princípios, normalmente são os princípios que cedem…

Já a postura da UE em relação à China parece não ser tão clara quanto a dos EUA…

Houve uma altura em que os europeus acharam que podiam ter uma relação próxima com a China ao mesmo tempo que os Estados Unidos aumentavam a conflitualidade com Pequim. Já se percebeu que não é assim. A guerra na Ucrânia também desfez essa ilusão. A China é, no mínimo dos mínimos, um adversário estratégico que colocará problemas sérios à Europa, sobretudo aos alemães e à indústria automóvel alemã. Temos, por isso, de começar a pensar como é que a Europa se pode posicionar, do ponto de vista económico e geopolítico, em relação à China. Quando percebermos que a relação terá de mudar, concluiremos que a relação será mais confrontacional.

A globalização produziu ganhadores e perdedores. Mas a esquerda, que antes estava na linha da frente contra a globalização, parece agora ignorar esses perdedores…

Não ignora inteiramente. Quanto á globalização, houve uma convergência entre Sanders e Trump. A Administração Biden também tem encorajado a desglobalização seletiva. 

A clivagem entre perdedores e ganhadores é relevante?

É. Desde 2016 que se assiste a um processo de crescente desglobalização. Rompem-se as cadeias de produção e distribuição, enfatiza-se a necessidade de aumentar a autonomia em relação à China, até por razões de segurança nacional. Estas mudanças vão ao encontro das críticas que foram feitas a quem pensava que a globalização e a interdependência traziam apenas vantagens. Trazem, também, vulnerabilidades, que estão a vir ao de cima. Quando impomos sanções contra a Rússia, estamos a politizar as vulnerabilidades da economia do país. Isto faz parte da nova realidade internacional.

Outra coisa que causou grande consternação foi o facto de Trump ter rompido compromissos internacionais importantes. Mas quando olhamos para organizações como o Conselho de Direitos Humanos da ONU, é difícil encaixá-los no quadro de valores da ordem internacional liberal…

Rompeu com compromissos internacionais que, na sua óptica, prejudicavam os interesses americanos. O multilateralismo não é um bem em si. É um processo para chegar a entendimentos, mas que só são possíveis de alcançar quando existe um consenso genérico sobre o mundo. Uma coisa é seguir o multilateralismo na UE ou na NATO, outra é o multilateralismo em instituições que englobam regimes não-democráticos crescentemente poderosos.

Biden propôs a criação de um Disinformation Governance Board e, no Brasil, Lula está empenhado num ‘Pacto Global contra a Desinformação’. Sendo ‘desinformação’ um conceito tão vago, não corremos o risco de eliminar uma das condições necessárias para a democracia, que é a liberdade de expressão?

Claro. Estas propostas visam condicionar a liberdade de expressão. Quando se fala em desinformação, o que muitas vezes está a ser dito é que não concordamos com o que a outra pessoa diz. Desinformação é apenas aquilo que não gostamos de ouvir. Em democracia temos de enfrentar, e eventualmente combater, coisas com as quais não estamos de acordo. Mas temos de as ouvir. A desinformação, como ela é discutida, basicamente refere-se a pontos de vista, a discordância política. Duas pessoas podem estar na posse dos mesmos dados e chegam a interpretações diferentes. A política é isso mesmo. Partidos políticos existem porque interpretamos a realidade de forma diferente. Muitos dos que defendem o combate à desinformação, o que querem, na prática, é censurar opiniões com as quais discordam.

A democracia pode realmente ser posta em causa se nós deixarmos de concordar sobre as regras do jogo…

As regras do jogo incluem o pluralismo de opinião e a liberdade de expressão. Houve um assalto nos últimos anos à liberdade de expressão, um assalto woke que invoca a desinformação, o hate speech, uma série de coisas. Mas uma sociedade democrática exige confronto político, e a robustez da democracia depende dessa capacidade de confronto. O que se está a tentar fazer, em muitos casos, é criar uma linguagem que não ofende ninguém, mas, por isso mesmo, é destituída de substância política. Devemos celebrar a liberdade de expressão até ao limite, de modo a que as pessoas possam, de uma forma aberta, discutir os problemas e as eventuais soluções. Se começamos a constringir a liberdade de expressão, excluímos eventuais soluções e acabamos naquilo que, há uns anos, se chamava o pensamento único. Ironicamente, havia muito menos pensamento único há dez anos atrás do que há hoje…

Na América, as eleições de 2024 serão decisivas. No campo republicano, há a hipótese de um DeSantis mais polido e sensato do que Trump…

Não sei o que isso quer dizer, polido e sensato. Reconheço que se trata de uma crítica generalizada na Europa, mas não é uma crítica política. É uma crítica à forma como Trump come à mesa. As maneiras de Ron DeSantis serão muito mais civilizadas, mas as suas políticas são praticamente iguais às de Trump. Viu-se, recentemente, quando DeSantis afirmou que a Ucrânia não é do interesse vital dos Estados Unidos. Trump subscreve esse tipo de neoisolacionismo. Qual é a diferença entre Trump e DeSantis no que diz respeito às guerras culturais? Não há. DeSantis poderá ser mais ‘polido e sensato’, mas a substância é a mesma. Convém olhar para a substância e não apenas para a forma. A mensagem do livro é essa: habituem-se, porque o Trumpismo tomou conta do Partido Republicano.