Há aquele verso de Fernando Assis Pacheco que, por estes dias, vêm amiúde à cabeça: «Indignar-me é o meu signo diário». Surge num poema sugestivamente intitulado, ‘Poeta no Supermercado’, e pode hoje ser lido segundo um regime um tanto forçado de espanto e agastamento perante um mundo onde a moral da história parece sempre ter sido substituída por imperativos de ordem económica. «Há países em que se espera/ que o homem deixe crescer as patas/ da frente, e coma erva, e leve/ uma canga minhota como os bois.» A história da edição, sobretudo no que concerne aos clássicos, tem desde há muito uma postura pragmática, em que importa menos respeitar os textos na sua versão original do que garantir que alguma versão destes continua a conquistar leitores entre as novas gerações. Pode falar-se em censura, em ataques à liberdade de expressão, mas não é tanto uma questão ideológica, e perante as recentes notícias de que os livros de Roald Dahl haviam sofrido alterações para eliminar termos potencialmente ofensivos relacionados com o género, a raça e o peso, do mesmo modo como têm vindo a ser reeditadas as aventuras de 007, de Ian Fleming, para atender às sensibilidades atuais, ou os livros dos cinco e dos sete de Enyd Blyton, e também os policiais de Agatha Christie, que vão ser reescritos para excluir descrições físicas, referências étnicas e insultos, percebe-se que as editoras não o fazem tanto para acomodar um novo regime ideológico, mas para garantir que a galinha dos ovos de ouro não acaba uma galinha como outra qualquer. Ao invés de se exasperarem nessas indignações um tanto superficiais, tendo muita gente vindo em tom choroso clamar que lhe estão a dinamitar a infância, os livros com que cresceram, se seguíssemos o exemplo de Poirot e de Miss Marple e levássemos a investigação um pouco para lá da tumultuosa sanha dos cabeçalhos, depressa descobriríamos que este esforço de adequar os textos às sensibilidades do tempo não é nada de novo. Agora recorre-se aos chamados leitores sensíveis, mas logo ficámos a saber que, no caso dos livros de Dahl, as edições de Charlie e a Fábrica de Chocolate não reproduzem o texto original desde 1973 (quando os oompa-loompas deixaram de ser «pigmeus negros» vindos «dos recantos mais escuros de África»). Lendo alguns dos artigos que escalpelizavam o tema em vez de se ficarem pelas notas de indignação, ficávamos a saber que um dos biógrafos de Dahl deixou claro que o manuscrito de Matilda seria quase irreconhecível para os leitores, uma vez que todos os aspetos mais memoráveis da obra foram sugestões e emendas do editor americano. No fundo, e se pode estar a haver um excesso de zelo por parte das editoras, estas não deixaram de estar atentas à evolução das receitas, e, quando a poeira assentar e alguém do departamento de contabilidade tiver registado o que importa na folha de Excel ou nalgum gráfico, as administrações não demorarão a afinar os seus critérios, que têm muito menos a ver com aspetos literários ou com a necessidade de limpar os livros de formulações ofensivas do que com a necessidade de preservar a popularidade das suas marcas.
D.V.P.