Gary Lineker sempre foi um sujeito ensimesmado e sem ter uma tendência especial para momentos de espalhafato. Foi um avançado de mão cheia e resolveu certo dia soltar uma daquelas frases que ficam para a eternidade apesar de não corresponderem à realidade. Disse então Mr. Clean, como os ingleses gostavam de lhe chamar, agora menos limpinho por causa de uma trafulhice com o fisco, que o futebol era um jogo em que se defrontavam onze contra onze e no final ganhava a Alemanha. Um exagero homérico. Basta dar uma ligeira vista de olhos à história dos Campeonatos do Mundo (nos últimos dois nem passaram a fase de grupos) para se perceber que em oito finais ganharam quatro e perderam outras quatro, coisa que atira a filosofia de Lineker para debaixo do tapete, Sim, sim, ganham muito, mas estão muito longe de ganhar sempre. Por outro lado, e vem isto a propósito do Dia das Petas que por agora se comemora, ficam indelevelmente ligados a duas das maiores trafulhices da história dos Mundiais, dois momentos que envergonhariam qualquer um, mas os alemães não são muito dados nem a arrependimentos nem a vergonhas. Se fossem ainda andavam por aí com as caras pintadas de preto tamanha a selvajaria que promoveram em Auschwitz, Theresienstat ou Dachau. Não estou a desviar-me do assunto de forma alguma, até porque uma das primeiras porcarias com que os germânicos resolveram conspurcar um Mundial foi em 1938, em França, com o pequenito do bigodinho ridículo chamado Adolfo tendo tomado o poder no Reich há pouco tempo.
A anexação da Áustria, três meses antes, já era um facto incontornável e, mais do que isso, os dirigentes nazis tivera a capacidade para entender que os jogadores austríacos eram, nesse momento, muito melhores do que os alemães em todos os aspetos. Após o fracasso em que se transformaram os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, nos quais Hitler espera ver expressa e bem expressa a superioridade ariana sobre as outras raças – a Alemanha foi eliminada pela Noruega -, o Campeonato do Mundo de 1938 surgia como uma segunda oportunidade. E, por isso, pouco dispostos a correrem novos riscos de serem menoscabados, dos onze alemães que entraram em campo no dia 9 de junho para defrontarem a Suíça, cinco eram austríacos e tinham feito parte do famoso Wunderteam dos anos 30, provavelmente a melhor seleção austríaca de sempre e que no Mundial de 1934 fora posta de fora da competição graças a uma arbitragem suja para que nada nem ninguém se pudesse pôr no caminho da Itália de Mussolini até ao título final.
Foi austríaco o marcador do primeiro golo desse Alemanha/Áustria/Suíça, marcado por Wilhelm Hahnemann aos 22 minutos, mas os suíços acabaram por tomar conta dos acontecimentos e obter a vitória definitiva por 4-2. Sepp Herberger, o selecionador alemão, membro do Partido Nazi, entrou em abolição tamanha a fúria e não teve pejo em condenar todos os jogadores austríacos de falta de empenho e atirar-lhes sobre as costas o peso da eliminatória. Mathias Sindelar, conhecido como o Homem de Papel, fugiu às críticas por se ter recusado a jogar com a camisola da Alemanha. Mas aqueles que muito consideram o melhor jogador austríaco de sempre não tardou a ser encontrado com a sua namorada no seu apartamento, em Viena, envenenados por uma fuga de gás. O braço vingativo de Adolfo era comprido como poucos.
A desgraça de Gijón
Passaram-se 44 anos. Parecia impossível que o ‘Anchluss’ voltasse a acontecer mas não há melhor forma de descrever a grande desgraça de Gijón, um dos momentos mais nojentos dos Campeonatos do Mundo de Futebol. Desta vez, Alemanha e Áustria não estavam do mesmo lado do campo mas sim frente a frente. O estádio de El Molinón recebia um dos jogos do Grupo 2 da fase de qualificação e os alemães corriam o risco de serem eliminados. A Argélia cometera a proeza de bater a Alemanha por 2-1 e o Chile por 3-2, tendo perdido com a Áustria por 0-2. As contas tornaram-se fácil de fazer. Uma vitória alemã em Gijón contra a Áustria garantiria a passagem à fase seguinte dos dois países de língua germânica.
Se assim tinha de ser, assim foi. Algo digno da prepotência nazi que não ligava aos meios para atingir os fins. A imprensa alemã não foi meiga. «Nichtangriffspakt von Gijón»: berraram em manchetes! Aos 10 minutos, a Alemanha marcou o golo necessário e a partir daí não aconteceu nada de nada. Trocas de bola entre jogadores austríacos no seu meio campo; depois trocas de bola entre alemães no seu meio campo. Os argelinos que se espalhavam nas bancadas deitavam fumo pelas orelhas ao verem-se eliminados por um jogo de mentira e erguiam notas simulando que o jogo fora comprado, Hans-Pieter Müller, jogador da Alemanha, viria a confessar mais tarde que o resultado tinha sido combinado. A FIFA abriu um inquérito mas chegou à conclusão salomónica: «Não se passou nada durante o jogo que tenha ido contra as leia do futebol». Eberhard Stanjek, o relatador da ARD, televisão alemã, recusou-se a continuar a fazer comentários, os espetadores espanhóis divertiam-se como podiam gritando «Fuera! Fuera! Fuera!» ou «Que se besen! Que se besen!». Alemães e austríacos estiveram-se nas tintas. Passaram ambos à fase seguinte, a Alemanha até viria a jogar (e a perder) a final frente à Itália, não quiserem nem saber da verdade do jogo ou do prejuízo dos argelinos. Há sempre aquela velha noção da superioridade da raça… até na trafulhice.