Todos nós vimos. Vimos as portas abrirem-se, puxadas por dois soldadinhos de chumbo, para darem passagem a um homenzinho baixo, louro, de rosto inexpressivo. Vimos este homem percorrer num andar bamboleante um gigantesco salão, em direção a outro homem, mais alto, que o esperava no lado oposto. Mas o homem baixinho não caminhou até ele: parou uns dez metros antes. Aí, esperou que o outro se lhe dirigisse. E só depois apertaram as mãos. Demoradamente.
O homem mais baixo era Putin, o mais alto era Xi Jinping e o local era o Kremlin.
Desconheço o significado deste estranho ritual. Por que razão Putin não foi até junto de Xi Jinping e parou antes, esperando que fosse o outro a ir ao seu encontro? Há certamente razões para isto, mas para um profano a encenação não deixou de ser insólita.
O Presidente chinês está familiarizado com estes cerimoniais. Mas, se conservar no fundo de si próprio uma réstia de sentido de humor, não deixará de achar ridículo ver aquele homem pequenino rodeado de todo aquele aparato grandioso, movimentando-se no meio de espaços desmesurados que, em lugar de o engrandecerem, o amesquinham.
Aliás, Xi Jinping observava Putin com uma expressão trocista; que, sendo nele habitual, tem a vantagem de esconder o que pensa e o que sente. É uma máscara.
Mas não só do ponto de vista físico – o russo mais baixo, o chinês mais alto – aquele encontro era desequilibrado. Não só do ponto de vista da pompa – o russo mais enfatuado, o chinês mais simples – o contraste era notório. Também do ponto de vista económico havia um abismo entre o poder daqueles dois homens: Putin presidente de um anão económico, Xi Jinping presidente de uma potência global.
Por tudo o que fica, não creio que Jinping leve Putin muito a sério.
Vejo na TV muita gente dizer que a China pode vir a ajudar militarmente a Rússia. Não acredito. E digo isto correndo o risco de fazer a figura triste daqueles distintos comentadores que, nas vésperas de a guerra começar, garantiam que a Rússia não invadiria a Ucrânia – e que hoje continuam a falar do tema como se fossem uns sábios…
Não sou sábio. Sou mesmo nestas matérias um profundo ignorante. Pelo que tudo aquilo que fica escrito a partir daqui deve ser lido com as maiores reservas.
Não acredito que a China venha a apoiar a Rússia (ou a invadir Taiwan) por razões que me parecem simples. Que passos têm sido dados pela China nas últimas décadas? Uma abertura total a Ocidente, com as exportações chinesas a encontrarem aqui os seus grandes mercados; uma emigração em massa para os Estados Unidos, Canadá e Europa, com os emigrantes a abrirem aí lojas e a criarem vastas comunidades; uma movimentação de empresas estatais chinesas no sentido de ocuparem posições no mundo capitalista, comprando sempre que podem grandes grupos económicos. Basta ver o que aconteceu em Portugal. Em cada terriola há hoje uma loja chinesa, e grandes empresas como a EDP estão nas mãos de chineses.
Esta expansão para Ocidente não é naturalmente obra do acaso: faz parte de um plano de afirmação global da China.
Ora, um apoio declarado à Rússia ou a invasão de Taiwan deitariam por terra todo este esforço.
Se a China ousasse transpor aquelas duas linhas vermelhas, os seus cidadãos passariam a ser vistos no Ocidente como personas non gratas, e a pouco e pouco seriam devolvidos à origem. E a compra por capital chinês de posições económicas estratégicas em países ocidentais seria suspensa ou revertida. A China voltaria ao seu isolamento secular.
Será isto que quer?
Dizem que a Rússia é muito importante para a China porque pode fazer com ela uma frente comum contra o Ocidente. E, além disso, tem o gás, que pode vender a um preço baixo, o que será muito importante para a indústria chinesa. Mas o que vale isso ao lado das exportações chinesas para o Ocidente?
A Rússia representa 3% das trocas comerciais da China. Três por cento!
As trocas comerciais entre China e Rússia totalizaram 175 mil milhões de euros no ano passado, enquanto com os EUA rondaram os 700 mil milhões e com a Europa apenas um pouco menos. E se somarmos a isto a Austrália e os países asiáticos aliados do Ocidente – como o Japão e a Coreia do Sul –, a diferença é astronómica.
Irá a China, em nome daqueles 3%, pôr em causa tudo isto? É muito difícil acreditar.
A China apresentou um plano de paz para a guerra da Ucrânia, porque está interessada na paz. Esta guerra não lhe interessa. E à Rússia, a prazo, também não. Basta pensar no seguinte: com as sanções, a Rússia viu reduzirem-se brutalmente as receitas da exportação de gás para o Ocidente; ora, se além disso vender gás à China a preço de saldo, como vai viver? Onde irá buscar o dinheiro para equilibrar o Orçamento?
Neste momento, só vejo um país ao qual a guerra interessa: os EUA. Porque o conflito está a engordar as poderosas empresas de armamento – e a enfraquecer o poderio militar e económico da Rússia, afetando a própria expansão da China.
Por isso, dificilmente os EUA apoiarão os esforços de paz – e apostarão até ao fim numa humilhação total da Rússia, ou seja, na sua retirada incondicional da Ucrânia. Neste momento, Putin (aí sim, com o apoio da China) só estará a pensar numa forma de não sair de cócoras desta alhada. O que não vai ser nada fácil.
Deixo a reflexão ao cuidado do leitor.