Embora se tenha tornado a festa mais importante dos cristãos, a Páscoa era originalmente – ainda muito antes do nascimento de Jesus – um ritual judaico. Também conhecida por “Pessach” (uma palavra que significa “passagem”), tinha no sacrifício de um cordeiro sem mácula o seu ponto focal.
A Bíblia está cheia de episódios que se ecoam reciprocamente no Antigo e no Novo Testamento. Para dar um exemplo bem conhecido, o massacre dos inocentes ordenado por Herodes (que tinha ouvido falar no nascimento de um novo rei e temia que este o destronasse) faz em tudo lembrar a ordem dada pelo faraó no Livro do Êxodo: “Todo o menino que nascer, atirai-o ao rio, mas deixai com vida as meninas”. Jesus acabaria por escapar à fúria de Herodes graças à fuga de Maria e José para o Egipto; já Moisés fora salvo das águas pela filha do faraó, que, indo banhar-se ao rio, descobrira “um cesto no meio dos juncais” e mandara uma serva trazer o bebé para segurança.
O leitor de hoje ficará um tanto confuso com estes avanços e recuos, como se o tempo não obedecesse a uma evolução linear. Numa peça dramática anglo-normanda do século XII, Adão já sabe de antemão que Cristo descerá à terra para redimir os pecados do mundo! A mentalidade medieval não via qualquer contradição no facto de o primeiro homem esperar um acontecimento que só se daria dali a milhares de anos. “Essa graça [da vinda de Cristo] – embora uma coisa do futuro […] – é no entanto incluída no conhecimento presente de qualquer e todos os tempos”, explicava o crítico literário alemão Erich Auerbach no livro Mimesis – A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. “Pois em Deus não há distinção dos tempos, uma vez que para Ele tudo é presente simultâneo, de modo que – como nota Santo Agostinho – não possui conhecimento antecipado mas simplesmente conhecimento”.
O fim da servidão no Egipto Também a Páscoa é um ritual que desafia a cronologia. Embora para os católicos represente a morte e a ressurreição de Jesus, os Hebreus já celebravam esta festa muito antes do nascimento do Messias.
A Páscoa judaica surge descrita no Livro do Êxodo, onde se narra como Moisés libertou o povo de Israel da servidão no Egipto: “O Senhor disse a Moisés e a Aarão [irmão de Moisés] no Egipto: ‘Este mês será para vós o primeiro dos meses do ano. Falai a toda a comunidade dos filhos de Israel e dizei-lhes: ‘No décimo dia deste mês tome cada chefe de família um cordeiro; um cordeiro por casa. […] O cordeiro seja sem defeito, macho, de um ano; pode ser cordeiro ou cabrito. Guardá-lo-eis até o dia catorze deste mês; então, pela tarde, imole-o toda a comunidade de Israel. Tomarão de seu sangue e o passarão sobre os dois umbrais e sobre o frontão das casas onde devem comê-lo’”.
Esta marca de sangue sobre os umbrais destinava-se a proteger os hebreus: depois das rãs, da peste, dos gafanhotos e das trevas, estava iminente a décima e mais terrível praga que Deus lançaria sobre o Egipto, aquela em que pereceriam todos os primogénitos, inclusive o do faraó, e que finalmente levaria à libertação do povo de Israel. Continuam assim as instruções dadas a Moisés e Aarão: “Assim o comereis: cingidos os rins [ou seja, vestidos], calçados os pés e o bordão na mão. Comereis à pressa, pois é a passagem do Senhor. Nessa noite eu passarei pela terra do Egipto e matarei a todos os primogénitos da terra do Egipto, desde os homens até os animais, e farei justiça sobre todos os deuses do Egito: eu, o Senhor. O sangue servirá de senha nas casas onde estiverdes; eu verei o sangue e passarei adiante, e não haverá para vós nenhum flagelo mortal quando eu ferirei a terra do Egipto. Esse dia será para vós memorável e o celebrareis solenemente em honra do Senhor, de geração em geração; será uma festa perpétua”. Eis a festa da Páscoa judaica – estranhamente, desde o início, uma festa manchada de sangue.
O sacrifício do inocente O paralelo, no contexto da Bíblia, é evidente. Decorridos mais de mil anos sobre a libertação do povo de Israel, liderada por Moisés, Jesus identifica-se na perfeição com o cordeiro sacrificado. Mais uma vez, tal como no ritual da Páscoa judaica, trata-se de um processo que exige sofrimento e sangue antes da celebração. Mais: esse sofrimento é instrumental no caminho para o triunfo. Para libertar o mundo do pecado, Jesus teve de suportar as agonias do calvário, de beber o cálice amargo até ao fim.
Na tradição pictórica do Ocidente, o Filho de Deus é por isso muitas vezes representado como o mais puro e inocente dos animais, o cordeiro “sem defeito” que será sacrificado, neste caso já não para libertação dos judeus no Egipto, como no Antigo Testamento, mas para redenção dos pecados de todos os homens. Vemo-lo em quadros como o Agnus Dei de Zurbarán, pintado na década de 1630, que mostra o cordeiro com as patas atadas, perfeitamente pacificado, para não dizer satisfeito, com o seu destino. Este modelo seria adoptado, entre outros, por Josefa d’Óbidos.
Da Lua ao ovo No calendário cristão, a Páscoa é marcada para a primeira lua cheia depois do equinócio da primavera (21 de março), embora os Evangelhos só façam referência ao escurecimento do sol quando Jesus morreu e não à fase em que se encontrava a lua. “Houve trevas em toda a terra até à hora nona, escurecendo-se o sol”, narra Lucas.
A Páscoa é o culminar de um período longo que começa com a sua antítese, o Carnaval (do latim ”carnem levare”), seguindo-se a Quaresma, período marcado pela abstinência. O Domingo de Ramos, que se comemora uma semana antes da Páscoa, evoca a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, montado num burro.
Já a Sexta-Feira Santa corresponde ao dia da crucifixão e morte de Jesus. Quanto ao Domingo de Páscoa propriamente dito, é o dia em que se celebra a ressurreição de Jesus do mundo dos mortos. Devido às suas origens na Páscoa judaica, mandam as regras que as privações da Quaresma sejam recompensadas neste dia com uma lauta refeição de borrego assado.
Como um curso de água onde se misturam as águas de diferentes afluentes, aos costumes judaicos e cristãos juntaram-se ao longo dos tempos tradições pagãs. No mundo germânico, a Páscoa assimilou aspetos do culto à deusa Eostern, ou Ostara, associada à primavera e à fertilidade. Daí o facto de as palavras para Páscoa em língua inglesa (Easter) e alemã (Ostern) terem uma etimologia diferente da do mundo latino. Julga-se que venham daí, dessa associação à fertilidade, as tradições do coelho e dos ovos da Páscoa. Se bem que o simbolismo do ovo, muito presente no leste europeu e em especial na Rússia, possa também ter conotações cristãs. Afinal, o passarinho que quebra a casca do ovo e nasce para a luz pode ser visto como uma metáfora para a saída de Jesus do túmulo e o início de uma nova vida, a vida eterna que está prometida a todos os justos.