É delicada e difícil a questão de saber se o crime de violação deve ser semipúblico ou público, ou seja, se o processo deve ou não depender de queixa. A minha opinião vai no sentido de o crime dever continuar a ser semipúblico. Porém, compreendo bem algumas opiniões em sentido contrário, sendo este um daqueles temas em que a minha se formou e mantém à custa de periódico desafio a si mesma. E essa opinião tem em vista principalmente a integridade de quem poderá ter sido a vítima do crime. Muitas das opiniões opostas, as que entendem que o crime deve ser público, têm precisamente em vista o mesmo. O que nos separa é o relevo que damos aos modos de proteger essa integridade. Eu penso, tudo ponderado e apesar das dificuldades e dos pesares, que vale mais garantir que quem poderá ter sido vítima tem o poder de decidir se o processo é para si mesmo ou mesma melhor ou pior e, assim, de avançar ou não com ele. Já muitos dos que defendem que o crime deveria ser público acentuam fatores como o medo, a coação e/ou o constrangimento como inibidores do exercício de queixa, e portanto acham que melhor se garante aquela integridade com não fazer depender o processo da vontade de quem poderá ter sido vítima.
Compreendo, mas não me convencem, não só porque para mim pesa mais a possibilidade de ter o domínio do processo e dos seus potenciais efeitos negativos para si mesmo ou mesma, mas também porque questões como o medo, a coação ou toda a sorte de constrangimentos não desaparecem com a natureza pública do crime e continuam a ter mecanismos de se manifestar – inclusive no processo, desde logo na prestação de declarações desta ou daquela forma, ou até na sua não prestação (que é possível em vários casos). Mas também porque essas questões se deveriam acautelar mais de outras formas, e não tanto através da lei – solução sempre mais fácil e que aparece amiúde ungida de poderes quase mágicos. Não é a lei que resolve todas as coisas, sendo que até distrai de investir noutras, bem mais importantes, como a educação, o apoio às vítimas, os meios de proteção, de abrigo, de socorro, de acompanhamento, et cetera. Isso sim, isso urge, e nada disso depende da natureza pública ou semipública do crime. Mas, repito, o tema é difícil, e compreendo muito bem quem pensa de forma diferente da minha, ambos orientados para a proteção das pessoas.
O que já compreendo menos bem (não no sentido cognitivo, mas no sentido de aceitação) são opiniões que recorrem a ou arrancam de visões e proclamações essencialmente panfletárias, simbólicas ou de ideologia social, como as que, para dar alguns exemplos, acentuam o combate à ‘cultura de violação’ ou à ‘ estrutura patriarcal’ ou enfatizam o ‘empoderamento feminino’. E o meu problema com a colocação destas linhas de raciocínio na base da discussão não se prende com reticências que possa ter quanto a algumas delas, e também se não prende com a recusa de aspetos simbólicos ou ideológicos no Direito (que os tem e deve ter, embora em medida moderada, e excluindo sempre o panfleto). O meu problema resulta de o predomínio dessas orientações na base de algumas opiniões acabar por poder conduzir a um esquecimento ou mesmo a uma instrumentalização daquilo que procura ou diz proteger, nomeadamente a proteção da vítima e dos seus interesses individuais concretos, e são esses que a mim me interessam, muito mais do que qualquer ativismo ou simbolismo (o que aconteceu na violência doméstica seria também um bom tema de reflexão, lá irei um dia). Que importa o combate à dita ‘estrutura patriarcal’ perante o mal que um processo concreto pode fazer a uma pessoa/vítima concreta? E deve essa vítima concreta ser vítima também do processo para que se cumpra a batalha, entre outras, do ‘empoderamento feminino’? Et cetera. Entre a afirmação de uma ideologia e a consideração concreta do ser-pessoa – sobretudo em casos de grande delicadeza e sofrimento –, eu tendo sempre a preferir esta. É talvez um defeito, mas não está a passar com a idade, antes pelo contrário.