Dentro de um mundo cabem muitos outros. Dentro de uma cidade, podem existir, metaforicamente falando, claro, muitas outras. Essa é uma das ideias que nos invade o pensamento quando falamos do Chapitô, a primeira escola de artes circenses do país que, desde 1991, se tem transformado e crescido, sendo casa ou sonho para uns e motor de arranque para muitos outros. Entrar pela porta colorida no número 1 da Costa do Castelo é desprendermo-nos da vida lá fora, dando asas à imaginação e ao sentir. Mas o que acontece realmente dentro dessas paredes? Neste projeto, a quem Teresa Ricou chama de ‘filho’, o circo e as artes estão ao serviço da inclusão, formação e qualificação humanas, prestando serviço às pessoas e à sociedade, ao bairro e ao mundo, no sentido do aprofundamento da vida social e solidária. A LUZ foi passar um dia no espaço para compreender a magia por detrás de um local que é várias coisas ao mesmo tempo.
Ao entrar, parece que começamos a ler uma história. A primeira paragem é o pátio, onde os alunos convivem e tomam as suas refeições. As mesas e cadeiras estão protegidas debaixo de uma grande tenda colorida que lhes faz sombra e transforma a luz. Ouvem-se vozes que se cruzam. Aqui, bem perto deste espaço, encontra-se a sala de aéreos e equilíbrio.
Equilíbrios e Aéreos
«Pardal! Cabeça para baixo sem colchão não…Ok?», corrige o professor Joca, que está no Chapitô há 5 anos. Aqui vemos a turma de segundo ano, o que equivale ao 12º ano. As aulas são feitas em conjunto, com vários professores. Quando se inicia a aula, os alunos aquecem todos juntos. Depois a turma é dividida em três grupos, que se espalham pelas disciplinas. «Eu estou aqui a dar os aéreos e os equilíbrios e, lá em cima, estão os outros dois professores, nos malabares. Depois há uma rotação, vão trocando, para terem o mesmo tempo nas técnicas e a aprendizagem ser equitativa», explica o docente. Para si, a magia do circo, está no facto deste «nos desafiar o físico e o psicológico». «É uma arte que conjuga as duas coisas. Estar pendurado a muitos metros de altura, ou estar equilibrado, conseguires controlar isso, é a parte mais especial… O controlo no teu corpo. Saberes o que consegues fazer ou não», conta.
E é precisamente aqui que recaem também os maiores desafios. A maior dificuldade dos alunos é mesmo o treino físico. «Eu acho que quando os alunos chegam, alguns não têm muitas expectativas, outros já têm algumas referências. Uma coisa é verem um trabalho já feito, outra coisa é treinarem todos os dias para chegarem lá», sublinha. «Ficam muito cansados, são muitas horas de treino. Mas acho que como qualquer outra arte, para singrar, temos de lhe meter horas. Chega a um certo ponto que começas a distinguir e perceber quem é que realmente quer fazer do circo vida e quem não quer», acrescenta Joca, que acredita que o circo, para além de ter uma influência social enorme, está na moda e é o futuro. «Tem existido uma explosão muito grande. É visto de uma maneira completamente diferente… Já está associado a marcas como a Mercedes ou a Porsche, marcas que nunca se iriam associar à conotação do circo de antigamente. Atualmente vemo-lo mais contemporâneo, uma fusão de muitas outras artes. Não é só chegar, fazer um truque e esperar pelos aplausos. Já é muito mais conceptual, conta uma história», defende.
Malabares
A viagem continua até ao piso de cima, onde, para além de aulas práticas, os alunos têm aulas teóricas. A Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espectáculo oferece dois cursos com duração de 3 anos – Curso Profissional de Artes do Espectáculo/Interpretação e Animação Circenses; Curso Profissional de Artes do Espectáculo/Cenografia, Figurinos e Adereços. Os cursos dão equivalência ao 12º ano, com Certificado Profissional de nível 4, de acordo com a regulamentação da União Europeia. Além disso, possui uma parceria em curso com a Escola Pública de Circo da Vila das Artes (Fortaleza, Ceará no Brasil) e por isso está a decorrer uma residência artística com dois formadores.
Com o chão em madeira e circundada por espelhos, encontra-se a sala de malabares. Os alunos encontram-se em grupos de dois, passando os malabares uns para ou outros, umas vezes com sucesso, outras gerindo alguma frustração, mas sempre com um sorriso no rosto. Natacha Baltazar e Margarida Pinto têm ambas 19 anos e apesar de não terem tido o mesmo contacto com as artes, em pequenas, possuem a mesma paixão pelo circo.
Natacha cresceu dentro do meio, pois passou a sua infância em festas medievais. «Convivi desde cedo com alguns artistas do chapitô», conta. E foi também por incentivo dos mesmos que decidiu escolher a escola. «Fui para artes visuais no secundário e, no 12º ano, mesmo no fim, desisti para poder entrar aqui. Percebi que queria uma coisa mais específica e então vim fazer o secundário todo outra vez», exclama orgulhosa. A jovem vinha com o pensamento nos malabares e no teatro. «Acabei por me apaixonar pelo circo», admite.
Ao contrário de Natacha, Margarida não conhecia tão bem a escola: «A minha mãe viu um post no Facebook à noite e propôs-me entrar para a escola. Sabia que eu queria seguir teatro… Não pensei duas vezes, apesar das minhas expectativas serem um pouco baixas», revela. «Eu não queria tanto o circo, queria mais a parte do teatro, da representação. Mas, tal como acontece a quase todos, acabei por me apaixonar pelo todo. Percebi que era capaz de fazer muitas coisas», explicou a jovem, acreditando que «o circo aproxima as pessoas e surpreende-nos». «É mais uma valência, uma coisa que me vai distinguir dos outros», frisa.
Segundo Natacha, o maior desafio, presente todos os dias, é ter de lidar com a frustração. «Temos de enfrentá-la todos os dias. Também é complexo teres de arranjar inspiração e motivação para treinar», afirma. Quanto aos desafios do futuro, «é tu conseguires ter trabalho na tua área, seres reconhecida e conseguires comer até ao final do mês, o que é muito difícil acontecer aqui em Portugal», lamenta. De acordo com a jovem, ainda existe muito preconceito. «Lembro-me quando as pessoas me perguntavam para onde ia estudar, que não era muito bem visto. ‘Como assim vais para o circo? Vais viver do quê?’. Eu também posso ser bem sucedida nesta área. Pode ser mais complicado, sim. Mas quero acreditar que sim», sorri. Interrogada sobre a forma como o Chapitô se distingue das outras escolas de artes, Natacha acredita que a proximidade das pessoas é uma das características dessa distinção. «Existe uma grande proximidade e as coisas aqui são muito mais intensas do que numa escola normal. Além disso, esta escola faz-te remexer em coisas que estão dentro de ti e que tu geralmente ignoras. Esta escola vai buscar isso. Porque a arte vem de ti, tu tens de sentir alguma coisa para poderes fazer arte», defende.
Figa foi um dos sortudos que, desde cedo, conseguiu viver apenas da sua arte. Já viajou por todos os cantos do mundo e, em jovem, quando tentou ingressar na escola não conseguiu. Hoje, é professor de malabares e, por mais que o tempo tenha passado, a paixão pelo ofício continua a mesma, agora, com o complemento de poder passá-la a quem quer aprender. «A minha história é uma história de disciplina. Comecei a tentar ser malabarista aos 14 anos. Tive o prazer de, nos anos seguintes, conhecer o Chapitô. Tentei entrar, mas não consegui. E é aquilo que tento explicar aos alunos… Não tem nada a ver com o Chapitô, ou com os professores. Têm a ver com uma paixão pelo circo, isso é o mais importante. Não entrei, mas hoje em dia sou professor no Chapitô», conta com os olhos brilhantes. Em 1993 teve a «sorte» de uns malabaristas irem à sua escola fazer uma performance. Foi amor à primeira vista. «Desde essa altura que dizia que ia ser malabarista. Os meus pais insistiam que eu tinha é de ir ‘trabalhar’… Hoje sou o motivo de orgulho lá de casa», continua.
Para si, o mais especial nesta área, é o «desafio constante». «Todos os dias treinamos e é um bocado ‘obsessividade/compulsividade’. Deixar cair muitas vezes e voltar a apanhar. Esta resistência à frustração, a ti mesmo… Estás sempre nesta luta constante de conseguir. E o que acontece com os malabaristas é que, quando conseguem, continuam a estar insatisfeitos e têm de conseguir mais e mais difícil», explica o profissional.
Relativamente aos maiores desafios do ensino, segundo Figa, muitas vezes, vê desmotivação nos alunos. «Nesta geração do imediato, temos de estar sempre a renovarmo-nos enquanto professores para arranjarmos coisas novas, estímulos. Quando eu treinava, treinava de 3 a 6 meses o mesmo truque. Eles agora fazem um truque numa hora e querem logo algo novo», lamenta.
Felizmente, o estigma tem vindo a diminuir. «Apesar dos malabaristas estarem sempre associados aos semáforos, por exemplo. Em relação a isso, é um trabalho tão dignificante como qualquer outro trabalho! Estão a trabalhar para mostrar algo único e incrível… Arte! Não existe absolutamente nenhuma diferença naquilo que eu estou a fazer aqui e o que um artista está a fazer nas ruas, por exemplo», defende o malabarista.
Da Chapitô para a Rua
Ao mesmo tempo, na Avenida dos Estados Unidos da América, Nikki, de 23 anos, e Ana, de 21, ex-alunas do Chapitô, manuseiam o staff de contacto. Para além do trabalho que fazem nos semáforos, ao contrário do que muita gente possa pensar, participam em feiras medievais, cabarés, espetáculos em discotecas, etc. Para ambas, o sorriso das pessoas a cada truque, vale cada esforço. «Para mim a magia está no inspirar outras pessoas. Quando nos apresentamos numa performance aqui, num espetáculo qualquer e depois disso alguém nos diz que precisava de ter visto o que viu, ou ouvido o que dissemos. É contagiante», afirma Nikki a sorrir.
Antes de entrar no Chapitô, Ana não tinha conhecimentos nenhuns. «Nunca pensei entrar e agora, olhando para trás, foi a casa que me ensinou quase tudo o que sei. É graças a ela que eu vivo da arte, seja na rua, seja nos festivais», conta. Para trabalhar nos semáforos, segundo as duas jovens artistas, é preciso muita coragem.
Algo que as pessoas «não pensam». Além disso, lamentam, ainda existe muito estigma principalmente pelos artistas que trabalham fora de uma tenda ou palco. «As pessoas não conseguem perceber que arte é arte, quer seja feita aqui, nos semáforos, num palco, numa tenda… As coisas ainda são vistas de forma diferente. Mas, por outro lado, toda a gente gosta de vir a Lisboa, passear na baixa e ver músicos, malabaristas, homens estátua… É um contrassenso», explica Nikki, acrescentando que, em geral, as pessoas «ainda pensam que estão a cometer ilegalidades, que são marginais». «Não fazem ideia do trabalho que está por trás. Não é algo que seja a contratos, com impostos, seguros… Não há esse apoio», lembra. Segundo Ana, as pessoas, quando vão a um espetáculo, numa tenda, ou num auditório ou teatro, veem tudo o que está à frente, mas não veem os bastidores. «O esforço, o trabalho, os métodos, o treino, a paixão e persistência. Não é qualquer um que pega no staff e o manipula com fogo nas pontas. É igual estando eu no Chapitô, ou na rua», frisa.
Ana faz, todos os dias, 1h30 de viagem para trabalhar em Lisboa. Por norma, as jovens trabalham 4 horas por dia. Porém, depende sempre de muitos fatores. «É um trabalho que também depende muito do tempo. Se chove, não dá para trabalhar, se está demasiado sol, não dá para trabalhar, ao domingo, não há trânsito, não dá para trabalhar», exemplifica Nikki. Além disso, devido à «permanente e enraizada sexualização da mulher», nesta área, por norma, estas ganham mais do que os homens. «Também temos de lidar com situações desconfortáveis todos os dias», revela, acrescentando que nunca é agradável ouvir: «Vá, como és bonitinha, toma lá uma moedinha».
Circo Tradicional
Regressando ao coração das artes circenses em Lisboa, o Chapitô, a viagem leva-nos agora a uma outra sala de espelhos luminosa, com vista para o pátio e para o rio. Vestido com um fato prateado, que ao levar com os raios de sol se transforma em arco-íris, Saulo, contracionista e professor de antipodismo, encontra-se de sorriso no rosto, sentado no chão. Vem de uma família de circo. Da parte do pai é a sétima geração e da parte da mãe, a quinta. «Nasci no circo e foi lá que vivi toda a minha vida. Não conhecia mais nada», começou por contar. Quando tinha 4 a 5 anos, viu um senhor a fazer contorcionismo e achou «um máximo». «Comecei sozinho a tentar imitar as coisas que ele fazia… Foi-me saindo. Fascinou-me a forma como conseguimos dobrar o nosso corpo, criar diferentes figuras com ele, ou seja, tinha ali algo mágico», explicou.
Quando tinha 6 anos, mostrou à sua mãe o que sabia fazer, depois de um ano de muito treino. Estava pronto para ir para a pista. «Fiz a atuação toda e comecei a trabalhar. Comecei a fazer espetáculos. Como estava integrado naquela família, o processo foi muito mais fácil. Tudo ajudou», continuou. Quando tinha 12 ou 13 anos, começou a apaixonar-se por antipodismo (malabares com os pés).
Para si, infelizmente, «Portugal é um país um bocadinho pobre de cultura»: «Não que não tenhamos artistas fenomenais, mas as artes circenses não têm tanta aderência como na Alemanha ou na Dinamarca. A dada altura pensei que se queria dar mais de mim, tinha de pensar em outras formas de mostrar as minhas valências. Se ficasse por aqui, era pouco», admitiu. Em termos de diferenças no público, de acordo com o contorcionista, o português quando gosta, gosta! «Notas que gosta! Mas uma coisa que tens no público alemão é que basta entrares no palco e fazeres qualquer coisa que para eles já é bom! Ou seja, não tens de te matar para que eles gostem. O público português é mais exigente, mas ainda tem muito aquela mentalidade de que o circo é no natal. E o resto do ano? Não existe circo? Não existem artistas? A cultura morre? Não!», alertou. «Vamos à França e há espetáculos de segunda a segunda, estão sempre a trabalhar, as pessoas gostam. Falta-nos isso», acrescentou.
Júlio César
Numa das salas, entre o pátio e o bar e biblioteca, a companhia Chapitô já começou os ensaios para ‘Júlio César’ – a sua mais recente criação teatral a partir de eventos da vida desta figura histórica, eternizada pelos grandes contadores de histórias, desde Plutarco a Shakespeare -, que estreou no dia 23 de Março e estará em cena até 28 de Abril. Jorge Cruz, Pedro Diogo e Susana Nunes estão no meio do espaço, em posição, à espera do sinal verde do encenador José Carlos Garcia, também vice-presidente do Chapitô. Os artistas experimentam, marcam posições, trocam ideias, corrigem movimentos. «Talvez aquilo que mais destaque nesta companhia, é que aqui, não há egos pessoais. Há um ego único, a peça em que trabalhamos. Tentamos não ter uma mecânica de criação, a criação é sempre conjunta», explica o encenador, que também foi aluno da casa, ao mesmo tempo que trabalhava no espaço. «Antes de vir para o Chapitô fazia projetos de engenharia. Deixei tudo para vir ganhar 20 contos na altura. Fazia as luzes e era aluno. Em 1996, o Chapitô não tinha nenhuma companhia e então eu, o João Sena e o Rui Rebelo, nas conversas, decidimos criá-la. Eu era parte responsável pela companhia, mas entrei também como ator durante 20 anos», lembrou.
Segundo José Carlos Garcia, no Chapitô, antigamente, eram muito poucos. «Aquilo que era uma bolha muito própria, mudou, porque o próprio mundo mudou. Esta casa muda bastante consoante as pessoas que aqui estão. Havia aqui valores que hoje em dia já não existem, porque o mundo mudou. Sinto falta do companheirismo da altura», admitiu. Na altura em que decidiu formar a companhia, «teve muita sorte»: «Tivemos a sorte de não começar do nada, porque já existia uma estrutura por trás. Tivemos sempre muita liberdade para criar o que queríamos». A ideia era levar um espelho da casa a outros locais. «Corremos mundo. A nível internacional são muitos anos, fazendo com que o Chapitô ficasse conhecido além fronteiras», afirmou satisfeito.
Mas apesar do reconhecimento «lá fora», em Portugal, para si, a companhia carrega ainda um estigma: «Existe sempre um estigma com o Chapitô, porque é muito difícil comunicá-lo. Lembro-me que a companhia foi uma das primeiras a ser criada fora do âmbito das pessoas que vinham do conservatório. Quando surgimos fomos muito maltratados por essas figuras que queriam manter essa estrutura», lamenta o encenador. Depois há o estigma do «palhaço»: «Nem fazem ideia do trabalho por trás disso, da mestria que é preciso ter», reforçou.
No que toca à singularidade da companhia, de acordo com José Carlos Garcia, esta possui muitas polivalências: «Fomos beber muito ao palhaço, à comédia del art, à técnica da máscara, acrobacia, malabarismo…Tudo o que é o lado mais físico. Um ator tem de ser completo. Quanto mais ferramentas tiver, mais fácil é criar em palco», sublinhou.
«O Chapitô deu-me um lugar, deu-me uma sociedade, um nicho. Esse é um dos maiores poderes do Chapitô, que tem sobrevivido, espalhado paixão e sido casa para muitos», rematou.
As marcas que deixa
César Mourão é uma das caras conhecidas que passou pela escola e que a carrega dentro de si. «Entrei no Chapitô em 1997, com a expectativa de me formar como ator. Sendo o Chapitô a escola mais versátil que eu conhecia», começou por contar à Luz. Segundo o artista, as memórias são as melhores, «havia uma grande vontade de aprender, a ligação entre alunos e professores era muito próxima». «Havia disciplinas teóricas como português, história de arte, inglês etc. e práticas, dança, interpretação, ginástica acrobática etc.», lembrou. Na altura, os seus interesses «eram muito latos». E, tal como Natacha e Margarida «gostava de ter a maior versatilidade possível». «A ânsia de aprender sobre mais coisas… urge naquela idade essa vontade», afirmou. Hoje em dia, tal como antigamente, vê o Chapitô como uma escola «livre». «A exigência parte de cada um, logo se não formos focados os objetivos ficam longe de ser cumpridos. Deu-me uma autodisciplina muito boa», admitiu. Tem por isso a certeza de que, se não tivesse frequentado a escola, «era um género de ator muito diferente».