Babilónia. Preciso de bater com urgência à porta nº 8!

Durante dias percorri as estradas, apenas caminhos de um Iraque que quer voltar à vida mas está ainda demasiado destruído para se lhe poder chamar um país. Bagdade alinda-se aos poucos; Ur não passa de um monobloco no deserto; só Ishtar, a oitava porta da Babilónia ainda nos faz recordar as cores perdidas.

HILLAH – Do lado direito do carro a cair aos pedaços que vai palmilhando os arredores de Bagdade em direção a sul, atravessando o bairro de Kararra, a lua cheia ilumina a noite e a estrada tão mal-amanhada que não sei se se lhe pode chamar estrada ou não. Tem pedaços de alcatrão por entre buracos e lombas, nas margens portas de garagens estão abertas ao longo de quilómetros com os materiais à venda postos cá fora, sobretudo eletrodomésticos e aparelhos de ar condicionado, faz um calor morno e Hassain, o condutor, teima em aumentar o som roufenho do rádio que me entope os ouvidos com a cegarrega de instrumentos de sopro e de metais que praticamente abafa a voz já de si estridente de Rahma-riad que canta qualquer coisa como «Se te tirar do meio da multidão erguer-te-ei no centro do olhar». Rodo o botão e baixo o volume. Hassain ri-se muito e volta a rodá-lo em sentido contrário na tentativa mais do que evidente de me rebentar um tímpano ou dois. Em seguida ergue o polegar da mão direita e pergunta: «tábom?» Mostro-lhe o meu polegar invertido e ele ri-se ainda mais. Parece que é a única forma que vamos ter de comunicar ao longo dos cerca de cem quilómetros que nos separa de Hillah, a cidade que esconde o que sobra dos segredos destruídos da Babilónia. Não tem grande importância. Conseguimos acertar um preço que caiu bem a ambos para fazer de meu chofer ao volante do Nissan amarelo que é o táxi dos seus afazeres quotidianos. Nesse ponto, provavelmente o mais fundamental, o assunto está arrumado. Ou está arrumado para já, no regresso a Bagdade apresentou-me um amigo façanhudo que exigiu mais cem mil dinares pelo serviço com a justificação de que era apenas condutor e o carro pertencia, de facto, ao outro mafoma de forma a que seria mais confortável para mim pagar a porção que lhe cabia. Não, não «tábom!», mas essa parte da história fica para o fim, ainda estamos apenas no início, voltaremos a ela mais tarde.

O rio Tigre corre pelo lado esquerdo desde que saímos do hotel que fica perto da construção belíssima que é Al-Shaheed, o Monumento aos Mártires, um dos poucos lugares em que a cidade respira modernidade e vontade de voltar a ser um lugar procurado por quem não pode deixar de se fascinar pelo seu nome maravilhoso: Bagdade. Não há quem não tenha uma teoria sobre a sua origem. É tão antigo que supera mesmo a antiguidade do Islão. A teoria mais forte é a que junta Bag (palavra persa que significa deus) e dad (simplisticamente uma forma do verbo dar). Explicado assim é tão óbvio que parece falarmos em português: Dado por Deus. Já o Tigre faz, a par com o seu irmão paralelo Eufrates (e com o qual acaba por unir-se), fronteira para a Mesopotâmia (significa precisamente Terra Entre Rios), o lugar primevo da civilização. É sexta-feira, mas aqui não santa. A lua cheia, primeira lua cheia da Primavera, indica aos católicos que o próximo domingo será domingo de Páscoa. O nosso calendário é bem mais simples do que o que dele pretendemos desenhar. O céu está claro, o movimento de veículos é escasso mas ainda assim caótico, estico-me para voltar a baixar o som da chinfrineira e quando levanto a cabeça vejo um camião passar centímetros à nossa frente em sentido contrário. Hassain ri-se outra vez, passa a vida a rir, ainda bem para ele, não parece ter levado muito a sério a probabilidade inequívoca de termos sido praticamente degolados por aquele imenso hipopótamo das estradas. «Tábom?», pergunta com o polegar ao alto. «Tábom» respondo, pois, que remédio.

É para Hillah que têm de correr aqueles que vão em busca das ruínas da velha Babilónia. «É urgente bater à porta número 13» escreveu Manuel Alegre no seu Tudo É e Não É. Sempre senti urgência de bater à porta nº 8, a Porta de Ishtar, a única que nos consegue, nos dias que correm, dar uma ideia da imensidão da cidade que terá sido, no seu período de ouro, a maior do universo recordada por uma das sete maravilhas do mundo antigo, os Jardins Suspensos. É portanto para a porta nº 8 que acelera Hassain, esforçando a lataria até ao limite, exigindo o impossível das nossas vértebras. Tenho-a desde a infância esboçada nas lembranças, o seu azul-mágico, os destaques dos azulejos com as suas imagens vívidas de dragões e uroques. Ishtar era uma das deusas alvo de culto em todas essas fantásticas cidades sumérias e assírias, da Babilónia a Ur, o sítio para onde irei amanhã, para já espero, ou melhor, esperamos. Ishtar, símbolo do erotismo, da fecundidade, da fertilidade. Associada ao planeta Vénus, representada com um capacete com chifres, acompanhada por um leão e uma estrela de oito pontas. O sol ainda não nasceu na Babilónia. É preciso ter paciência para se bater à porta número 8. Direi antes: é preciso ter paciência para que nos deixem ver a porta nº 8.

As portas da Babilónia

O Iraque é um país destruído que procura a redenção. Aceitemos que os estrangeiros com que me cruzo não estão aqui para fazer turismo – aliás não me cruzei com um único estrangeiro no Sítio Arqueológico da Babilónia, que é no fundo o trabalho precioso de arqueólogos que tentam roubar à terra os pormenores de um lugar único na História da Humanidade. É tempo de reconstruir cidades dizimadas pela bárbara invasão levada a cabo pelos americanos e apadrinhada pelos seus comparsas ocidentais – Portugal tem de engolir a vergonha insuportável de se ter colocado no lado errado da história – justificada pela monstruosa mentira de que o governo de uma besta de pacotilha chamado Saddam Hussein fabricara e possuíra armas de destruição em massa. A besta era um assassino em massa, sim senhor, mas um assassino e massa do seu próprio povo – aponta-se para um número de cerca de 250 mil mortos vítimas do regime que implantou através do Golpe de Estado de 1968, primeiro como braço direito do general  Ahmed Hassan Al-Bakr, depois como um daqueles ditadores que soube tirar partido da nacionalização do petróleo para se perpetuar no poder.

Uma guarita anuncia a entrada para o sítio arqueológico e um guarda arma uma discussão acesa com Hassain pelo que consigo perceber sobre a autorização que nos tem de ser dada para percorrer os dois quilómetros que nos separam da Porta de Ishtar. Dinheiro, dinheiro, sempre dinheiro. Empresas de construção civil avançam em força para que os edifícios sejam repostos ou reerguidos, também há portugueses com interesse na restruturação do Iraque e na sua nova vida como país atrativo já que, assim como assim, não é bem um país que vim encontrar, quanto muito o projeto de um país. O guarda não nos deixa avançar para lá dos portões se não em troca de uma verba de 50 mil dinares (um dinar equivale a 0,00063 de euro) – se quisermos ser picuinhas – 31,5 euros. Não quero ser picuinhas: afinal não se corre o mundo à procura das civilizações milenares, como tenho feito há mais de 40 anos a esta parte, para discutir em cima de trinta euros. Mas também há uma certa hesitação por ser por demais percetível que o dinheiro que nos cobram não vai para o progresso do trabalho e arqueológico e serve somente para alimentar o bolso prepotente de um homenzinho de farda ridícula (pior só mesmo a farda dos taxistas, com golas vermelhas em casacos castanhos) que neste preciso momento manda mais na Babilónia do que Alexandre O Grande quando chegou a hora da sua morte, exatamente aqui, 323 anos antes de Cristo.

A discussão termina subitamente com o aparecimento de um fulano encorpado de cabeça rapada e que conduz um jipe preto. A autoridade impôs-se de imediato. Perante o recém-chegado, o homenzinho grotesco como que desaparece. O episódio não deixa de me fazer sorrir. Vejo-o esconder-se no fundo da guarita ao mesmo tempo que Hassain passa a ter de se haver com o calmeirão alopécico quanto ao preço a atribuir aos dois quilómetros que faltam para cumprir o meu destino bater à porta de Nabucodunosor II, filho de Nabopolassar, tido como o maior rei neobabilónico, que abriu esta entrada para a cidade no ano de 575 a.C. Deixo-os no bate boca do negócio. Saio do carro para ficar a olhar para o céu que clareia e para a estátua gigante de Nabucodonosor que parece ter a lua cheia espetada na ponta do dedo indicador. Um cheiro adocicado a terra, uma brisa que perpassa por entre as folhas das palmeiras, um silêncio que vem lá do fundo dos tempos. O brutamontes do jipe pede-me o passaporte e fica com ele entre os dedos a investigar página a página os vistos que o enchem, na sua maioria da Índia, de onde acabo de vir como acontece repetidamente todos os anos ano após ano muitas vezes mais do que uma vez por ano. Satisfez-se com o que viu, dá a sensação. Os dois quilómetros ficam a 40 euros. Que são 40 euros para quem cumpre o seu destino de bater à única porta reconhecível da Babilónia?

De Bagdade a Hillah e volta

Ishtar foi retirada dos escombros entre 1902 e 1914. Tem 14 metros de altura e uma extensão de 30 metros. Como o Iraque foi saqueado na última década e meia, também as ruínas da Babilónia foram vítimas da ganância ocidental dos que se continuam a considerar civilizados mesmo que, como diria Almada Negreiros, sejam os mais atrasados de todas as Áfricas. Partes inteiras do Portal dos Leões estão espalhadas pelos museus de Londres, Paris ou Nova Iorque. Baixos relevos de leões, dragões, cavalos e bois moram no Museu Arqueológico de Istambul. Há pedaços das portas da Babilónia expostos no Louvre, no Museu de Arqueologia da  Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, no Metropolitano de Nova Iorque, no Instituto Oriental de Chicago, no Museu da Universidade de Rhode Island, no Museu Röhsska, em Gotemburgo, no Museu de Belas Artes de Boston… Um fartar vilanagem.

Se querem ver a Porta de Ishtar no seu verdadeiro esplendor, na verdadeira dimensão da sua arte, no ponto mais alto daquilo que a imaginação dos homens consegue reproduzir em beleza não venham a Hillah que não vale a pena. Ishtar autêntica, enorme, poderosa, tal como Nabucodonosor a concebeu, não mora aqui, cem quilómetros a sul de Bagdade, ao fim do sacrifício completo das vértebras através dos requebros do caminho – está em Berlim, no Museu Pergamo. Fixar o tom perfeito do lápis-lazúli pode muito bem provocar a cegueira. Afaguem-na apenas com o olhar.

A manhã ficou quente, para lá dos 27 graus, Hassain insiste que temos de passar em casa de uns familiares, não faço grande questão mas também contrariar o rapaz com que sentido? O dia é grande e ainda há pouco começou. Impinge-me um cigarro comprido e branco que tira de um maço estreito e eu fumo só por desfastio, para lhe fazer o gosto. A casa à frente da qual estaciona o Nissan amarelo é pouco melhor do que uma barraca. Um grupo junta-se na minha frente a papaguear monólogos que não entendo mas sou integrado por Karim, um primo de Hassain que fala um inglês razoável embora misturado com alemão. Tem um braço paralisado e uma perna defeituosa. Fala pelos cotovelos e nem o cotovelo diminuído é capaz de baixar o ritmo da metralhadora das palavras. O tempo parou. Hassain pede-me dinheiro para ir buscar bebidas e kleichas, uma espécie de pastéis recheados com tâmaras e açúcar, enjoativos como todos os excessivamente doces dos doces árabes. Depois pede-me dinheiro para a gasolina. Depois pede-me dinheiro para comprar mais tabaco. Tem jeito para pedir. E no fim diz: «tábom?» sem que eu tenha resposta decente para lhe dar, sobretudo quando já de regresso a Bagdade me põe frente a frente com um mamífero com a cara marcada pelas crateras da varíola que se apresenta disposto a negociar uma viagem que me convenci já estar paga de avanço quando a combinei com o meu chofer bem-disposto mas decididamente de palavra pouco fiável. Entramos por um beco sem saída. O dinar pode valer meio tostão furado, mas não faço tensões de pagar nem mais meio. O trombalazanas insiste que, sendo o proprietário do automóvel, deve ser pago pelo desgaste do veículo como se mais duzentos ou menos duzentos quilómetros pudessem desgastar fosse o que fosse daquela traquitana. Eu teimo que já paguei o que tinha a pagar e que Hassain nunca me colocou esse assunto no momento de negociarmos a viagem. Estamos num bate-boca que já irrita. É sexta-feira santa, que diacho!, dia pouco próprio para torrar a pachorra alheia. Despeço-me da dupla de pedinchas e sugiro-lhes uma queixa na polícia. Com a certeza de que é algo que jamais lhes passaria pela cabeça. Há coisas que ficam para lá de Bagdade…