Nem sei bem o que dizer

Seja como for, da língua preta do rei tibetano e do cumprimento com a língua de fora ao “chupa-me a língua” do Dalai Lama vai a distância da normalidade para a demência. 

"Chupa-me a língua". As palavras do Dalai Lama para o rapaz petrificado na sua frente são de quem já certamente não sabe bem o que diz. Mas não deixam de ter significado. Embora mais significativo tenha sido o facto de o pedido de desculpas ao garoto e seus familiares feito em nome do líder budista e Prémio Nobel da Paz pelo seu gabinete de apoio ter sido acompanhado de uma tentativa de justificação: «Sua Santidade brinca frequentemente com pessoas de uma forma inocente e jocosa, mesmo em público e perante as câmaras fotográficas».

Por todo o mundo, correram as imagens e a justificação de representantes do Dalai Lama  acompanhadas com a história, pretensamente desculpabilizadora, de que mostrar a língua é uma forma de cumprimento que se terá tornado tradição no Tibete a partir do século IX, quando a região era governada pelo rei Lang Drama, conhecido por ter a língua preta – tratando-se de rei impopular, terá passado a ser comum o ato de mostrar a língua para provar que não tinha a mesma cor da do rei entretanto falecido e assim atestar não haver ligação sanguínea ou genética ao mal amado monarca.

Seja como for, da língua preta do rei tibetano e do cumprimento com a língua de fora ao «chupa-me a língua» do Dalai Lama vai a distância da normalidade para a demência. Que naturalmente se lamenta, mas não se justifica.

Por isso é que não deixa de ser mais um sinal dos tempos que vivemos de profunda crise de referências e de valores o facto de a comunidade se indignar e revoltar com a demencial tirada do Dalai Lama quando o mal maior está no pedido de desculpas formulado em seu nome e procurando justificá-lo.

Há semanas, mesmo antes de ser internado num hospital de Roma com problemas respiratórios, o Papa Francisco deu uma entrevista a um órgão de comunicação argentino na qual entendeu por bem defender o Presidente do Brasil, Lula da Silva, que considerou ter sido injustamente perseguido por juízes e procuradores brasileiros e referiu-se à ex-Presidente Dilma Rousseff como «uma senhora de mãos limpas». As imagens da entrevista passaram em todo o mundo, Portugal incluído, mas, por certo por se tratar de Lula e de Dilma e por estar o Papa hospitalizado, ninguém se indignou com coisa alguma.

Se Francisco tivesse dito algo semelhante em relação a Bolsonaro ou Trump, também ninguém reagiria?

O mundo está de pernas para o ar e Portugal não foge à regra. Antes pelo contrário.

Estas primeiras décadas do terceiro milénio ameaçam ficar para a História como as mais estúpidas de sempre. É tudo um absurdo. Parece que já não há quem escape.

Veja-se agora o que nos havia de acontecer com a denúncia de três investigadoras da Universidade de Coimbra que envolvem em casos de assédio sexual dois reputados professores catedráticos, sendo um deles Boaventura Sousa Santos.

Tratando-se do que se trata, não poderia o país deixar de sentir-se chocado.

E, tratando-se de quem se trata, não dá para não parafrasear João Galamba: nem sei bem o que dizer.

O melhor, como conclui Cavaco Silva, é «não fazer quaisquer comentários».

Antes de situar as declarações de Galamba e de Cavaco, apenas uma nota sobre o escândalo de Coimbra: Boaventura Sousa Santos veio a terreiro declarar que a denúncia de que é alvo é uma «difamação anónima, vergonhosa e vil». Convenhamos: anónima, não é – há três investigadoras que a subscrevem –; vergonhosa, é – com toda a certeza!; vil, a investigação o dirá – vamos aguardar pelas conclusões.

Quanto a João Galamba e à sua frase «Nem sei bem o que te hei de dizer», tem tudo a ver com o caso da TAP, paradigmático do que é a governação de António Costa e da relação de promiscuidade do PS com a Administração Pública e o setor empresarial do Estado.

A frase foi dita durante o primeiro encontro público que o ministro das Infraestruturas teve com o  chairman da TAP, Manuel Beja, num contexto em que este último aproveitou para se queixar de ter sido votado ao esquecimento pelo anterior titular da pasta, Pedro Nuno Santos.

 O mesmo Manuel Beja que foi à comissão de inquérito dizer que a sua demissão foi motivada por «conveniência política e partidária».

O problema é que a sua nomeação também o foi. Como são quase todas com este PS. Até aquelas que não são publicadas em Diário da República, a ver se passam.

Já quanto ao ex-Presidente Cavaco, lembrando que há semanas alertara «que a política portuguesa estava perigosa», veio agora constatar que, «de então para cá, deteriorou-se muito», e, por isso, entende não dever fazer «quaisquer comentários».

Não precisa, porque disse tudo.

Só não ouve quem não quer.

Enquanto isso, comem-nos a carne e chupam-nos os ossos. E não há quem lhes ponha a língua de fora. A não ser o mesmo de sempre, mas logo deixando claro que é só por brincadeira, ainda que nada inocente e jocosa.