O cenário é ‘muito preocupante’. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa está neste momento a viver de resultados acumulados em anos anteriores e esses fundos começam a esgotar-se, sem que a instituição consiga recuperar receita que se perdeu durante os anos da pandemia.
O provedor, Edmundo Martinho, está a terminar o seu mandato, mas os restantes membros da mesa estão já na sua maioria em gestão corrente, sendo que o vice-provedor, João Pedro Correia, já abandonou funções há mais de um ano. Há muito tempo que responsáveis de departamento e funcionários aguardam mudanças até porque é sabido por todos que o atual provedor e a ministra do Trabalho e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, não comunicam o que tem deixado a instituição em stand by à espera de novo provedor.
Mas à medida que o tempo passa a situação torna-se mais crítica. As receitas do jogo, a maior fonte de financiamento da SCML, diminuíram abruptamente nos anos da pandemia e não voltaram aos valores anteriores. Para tanto tem pesado a concorrência que entretanto surgiu no mercado com a entrada de vários operadores de jogo online que captam cada vez mais adeptos. De acordo com fontes ouvidas pelo Nascer do SOL, o facto de não existir uma estratégia para fazer face à nova concorrência, assim como a ausência de um plano para encontrar novas fontes de financiamento, são fatores que estão a contribuir para ‘um cenário muito crítico’ nas contas da instituição que em Lisboa assume grande parte das responsabilidades sociais do Estado.
A agravar a situação de fragilidade financeira da Misericórdia de Lisboa estão ainda as novas responsabilidades que foram assumidas por esta organização nos últimos anos.
Investimentos ruinosos
Em situação económica muito difícil, o Hospital da Cruz Vermelha acabou por ser absorvido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que, no final de 2020, adquiriu 55% do capital, ficando os restantes 45% nas mãos da Parpublica (holding estatal). O hospital com sede em Lisboa estava em falência técnica quando foi adquirido, com um passivo de 7,3 milhões de euros, a que se juntaram avultados prejuízos em 2021 (6,7 milhões), esperando-se prejuízos semelhantes quando se fecharem as contas de 2022.
A Clínica Oriental de Chelas foi outra aquisição da Santa Casa. No final de 2020 os donos desta clínica dedicada aos cuidados da gravidez e cuidados pós-parto, assinaram um protocolo de doação da clínica à Santa Casa exigindo como contrapartida dotar esta instituição de capacidade para prestar cuidados em fim de vida. Passou a ser mais um encargo para as finanças da Misericórdia de Lisboa que tem assumido desde essa altura os compromissos financeiros da clínica. Ao que apurámos do orçamento da SCML saem anualmente 236 000 euros para assegurar as despesas.
A Santa Casa Global é outro buraco que tem afetado e muito o equilíbrio financeiro da principal instituição que presta apoio social em Lisboa. Inicialmente foi pensada como uma forma de recuperar a receita perdida nos últimos anos. Mas os planos saíram furados ao provedor e esta entidade, com personalidade jurídica autónoma, destinada a explorar a atividade do jogo fora de portas, não só não conseguiu ainda cumprir a sua missão, como já custou aos cofres da Misericórdia de Lisboa 8,5 milhões de euros.
Outro elefante branco nas contas da SCML é a projetada Casa da Ásia. O colecionador de arte Francisco Capelo negociou com Edmundo Martinho alojar a sua vasta coleção de arte num equipamento destinado para o efeito pela Santa Casa. Entre despesas de obras e organização da Casa da Ásia, já saíram dos cofres da instituição 4,778 milhões de euros. Isto sem contar com as contratações que já foram feitas para pôr a casa museu a funcionar.
Equipamentos fechados e subaproveitados
É sabido que as unidades de cuidados continuados e paliativos são uma das maiores carências do país. Precisamente para atender a essa necessidade, as instalações do antigo Hospital Militar na Estrela, foram entregues à Misericórdia de Lisboa, para que aí instalasse uma unidade de cuidados continuados. Efetivamente as obras foram feitas e parte do edifício está já a funcionar. Mas apenas uma parte, porque uma área significativa do espaço, está sem utilização, à espera de destino e enquanto isso não acontece, aloja uma companhia de teatro, House of Neverless, que aí desenvolve a sua atividade a título gratuito.
Outro equipamento com obras feitas à espera de destino, é o Edifício Nestlé em Monsanto. Foi pensado para ser uma residência para idosos. As obras estão prontas há mais de um ano, mas o orçamento da Santa Casa não tem qualquer indicação ou verba para pôr estas instalações ao serviço. Ao que disseram ao Nascer do SOL, ninguém sabe o que vai acontecer ali.
Santa Casa sem rei nem roque
«A Misericórdia de Lisboa tem responsabilidades importantíssimas junto dos mais frágeis e esta desorientação começa a afetar a nossa capacidade de intervenção», comentou ao Nascer do SOL um dirigente da SCML. O impasse que se verifica está a deixar inquietos funcionários e dirigentes que desesperam por uma nova administração com capacidade para dialogar com a tutela e para tomar decisões. É que as responsabilidades, ainda por cima numa época de crise social aumentam a cada dia que passa e é preciso «orientação e gestão para conduzir este barco que é muito grande e não pode estar parado», até porque as solicitações vão somando, como foi o caso recentemente com a necessidade de alojar todos os que ficaram sem teto com as recentes cheias em Lisboa.