por Rui Patrício
Já houve quem (me) dissesse que não sou boa pessoa, e certamente também houve quem o pensou sem dizer. Lá terão as suas razões, quem sou eu para discutir as razões dos outros, sobretudo em coisas tão escorregadias como são as categorias do bem e do mal, especialmente num tempo em que tudo é rigidamente binário – bom ou mau, a favor ou contra, gosto ou não gosto –, sem saudáveis meios termos, sem cambiantes e ambiguidades, sem paradoxos, sem ’mas’, ‘porém’, ‘talvez’, ‘embora’ e outras variáveis da tentativa de compreensão. Mas penso nisso, e procuro questionar-me, pois a cabeça não é apenas para fazer peso nos ombros e o coração não tem como única serventia bombear sangue. Mas ainda não cheguei a grandes conclusões, e cada vez estou pior nessa demanda, porque a idade traz cada vez mais dúvidas – exceto para os que têm o bem (o seu) e o mal (o dos outros) bem definidos e marcados a ferros numa visão de túnel. Mas não importa. O que importa é que, a ser verdade que não sou lá grande coisa, descobri – não há muito tempo, mas nunca é tarde – que haverá possíveis culpadas, a saber, Enid Blyton e Agatha Christie, autoras que cultivei e devorei na infância, na puberdade e na fase mais tenra da adolescência. Pois é, podem ter sido elas, essas malvadas agora em boa hora canceladas ou à beira disso (e só não levam com uma pedra, com sopa fervente ou com ovos podres, porque já se passaram para o confortável mundo dos mortos).
E tudo por conta dos significados e dos significantes ofensivos com que encheram os seus livros. Racistas, sexistas, patriarcais, xenófobas, não inclusivas, colonialistas, et cetera; e toda a sorte de epítetos que se podem encontrar para qualificar – com os muito sensíveis olhos e as militantes almas do presente – os seus graves despautérios. Poirot é um ser repugnante, Miss Marple uma velhota retrógrada, a personagem Zé uma construção a vários títulos de repudiar, a ciganita todo um programa opressivo e, last but not least, também deve haver um ror de coisas horrorosas sobre o cão, o Tim de Os Cinco – ainda não deram por elas, mas estou certo de que lá chegaremos. Seja como for, já separei os livros para uma sessão de queima, livros que todos estes anos guardei – com o nostálgico carinho que damos ao que nos fez felizes e ao que contribuiu para estimular (achava eu, pobre tolo) as nossas imaginação e criatividade e, com isso, a nossa liberdade. Sessão de queima? Não será de mais? Claro que não. Pois é isso que se faz à arte degenerada, como no-lo ensinaram, em ilustradas décadas do século XX, revolucionários que, por exemplo, andaram a purificar para os lados da Alemanha e da Rússia. Fogo com eles.
Mas ainda não estou satisfeito, e muito menos tranquilo, porque a personalidade se começa a formar muito mais cedo, e, portanto, a culpa não será só daquelas duas senhoras. Tenho andado à procura de pecados noutros estímulos de imaginação, criatividade e liberdade (achava eu, pobre tolo) que tive muito mais cedo, quando era ainda uma criança em formação. Neste momento ando à procura na Heidi, no Marco e na Abelha Maia, e com paciência e bom espírito ainda encontrarei(emos). É verdade que a minha avó (que já cá não está para aprender o que é a verdadeira sensibilidade) dizia à minha mãe que me deixasse ver o Marco e que se não preocupasse com o facto de eu às vezes chorar baba e ranho, porque o Marco na sua dolorosa busca da mãe, dizia ela, fazia bom coração. Faria? Não deve ser, até porque a minha avó não tinha estudos e não era ilustrada em desconstrução e em procurar pelo retrovisor do presente os graves erros do passado. Ando muito desconfiado, deve haver coisa no Marco, na Heidi e na Abelha Maia.