Por Teresa Nogueira Pinto*
Voltou a aumentar a tensão no estreito de Taiwan, depois do encontro entre a Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, e o presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Kevin McCarthy, na Califórnia.
O encontro, onde a Presidente de Taiwan sublinhou estar como cidadã privada e ao qual Washington nunca se referiu como ‘visita’, foi visto por Pequim como um ato de provocação. Já em agosto de 2022, na sequência da visita de Nancy Pelosi a Taipei, a China reagiu com uma demonstração de força militar e sanções a Taiwan, e suspendeu conversações com Washington em vários temas.
As origens próximas das tensões remontam a 2016, quando Tsai Ing-wen, então líder do Partido Democrático Progressista (DPP), foi eleita presidente de Taiwan. Ao contrário do Kuomintang (KMT), o DPP não subscreve o ‘Consenso de 1992’, que estabelece o reconhecimento, por Taiwan e por Pequim, de que existe apenas ‘uma China’. O Consenso tem contribuído para manter o status quo, deixando espaço para divergências sobre em que é que, na prática, se deverá traduzir.
O Sonho Chinês
Com Xi Jinping, a política externa da China tornou-se mais ambiciosa e agressiva. Isso é visível na Nova Rota da Seda, no empenho em reformar o sistema de ‘governança global’ ‘à maneira chinesa’, na disputa territorial com a Índia ou na militarização do Mar do Sul da China.
Mas se Washington vê Taiwan como uma questão de política externa, Pequim vê como uma questão interna, e fundamental. Em julho de 2021, por ocasião do centenário do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping descreveu a «reunificação total da China» como sendo uma «missão histórica» e uma «aspiração partilhada por todos os filhos e filhas da nação chinesa». A política externa de Pequim, de resto, mostra como o princípio de ‘uma só China’ não é negociável. Ao contrário dos EUA e da União Europeia, Pequim não impõe condições políticas em matéria de ajuda externa e financiamento; mas exige que os beneficiários reconheçam que Taiwan é um ‘território inalienável’ da China, e ajam de acordo, rompendo relações oficiais com Taipei.
Dos mais de 30 países que mantinham relações diplomáticas com Taiwan no início da década de 70, restam treze. O último país a romper relações foi as Honduras, condição imposta pela China para a assinatura de uma série de acordos de comércio e investimento. O princípio de ‘uma só China’ também está cimentado nos fóruns multilaterais, em particular na ONU e nas suas várias agências, onde a China tem cada vez mais influência.
Se a China está perto de recuperar o estatuto de grande potência, um outro desígnio do ‘grande sonho Chinês’ – a reunificação – mantém-se ainda por realizar, e é condição necessária para reverter o ‘século de humilhação’ (1839-1949).
Nixon e Kissinger apostaram, num contexto de Guerra Fria, em enfraquecer o adversário principal mediante uma aproximação ao adversário secundário. Da histórica visita de Nixon à República Popular da China resultou a Declaração de Xangai, onde Washington aprova a política de “uma só China”. Mas se, em 1979, os EUA deixaram de reconhecer oficialmente a República da China, a posição americana manteve-se ambígua. Ao abrigo do Taiwan Relations Act, Washington tem mantido uma relação próxima com Taiwan, que é hoje um dos principais importadores de armamento americano.
Embora tenha prevalecido a ambiguidade estratégica, tida como forma de dissuasão, o Presidente Biden não foi o primeiro a sugerir uma mudança. Em abril de 2001, George W. Bush afirmava que os Estados Unidos «fariam o que fosse necessário para ajudar Taiwan a defender-se» face a um ataque da China. Mas uns meses depois veio o dia que mudou o rumo da política externa americana.
Também Donald Trump começaria o seu mandato com um sinal de rutura, mantendo uma conversa telefónica com Tsai Ing-wen que depois anunciaria num Twitter, em que se referia à ‘Presidente de Taiwan’. Durante a sua administração aumentou a frequência com que navios militares americanos atravessaram o estreito de Taiwan e a venda de armamento, ações vistas por Pequim como provocatórias. Em 2018, os EUA anunciaram um upgrade ao American Institute in Taiwan que funciona, na prática, como uma embaixada.
Joe Biden, por sua vez, foi o primeiro presidente americano a convidar representantes de Taiwan para a tomada de posse e tem afirmado que, em caso de ataque, os Estados Unidos atuarão em defesa de Taiwan. Pode ter passado da ambiguidade à clareza estratégica quando, numa entrevista em setembro ao programa 60 minutes, questionado sobre se isso queria dizer intervir militarmente, respondeu que sim.
Divergência e convergência
Para a UE, um conflito entre Taiwan e a China representaria um dilema estratégico e possíveis divergências.
A presidente da Comissão Europeia sublinhou a importância da relação com a China e afirmou acreditar que «podemos, e devemos, construir uma abordagem europeia distinta, que deixa espaço para cooperar também com outros parceiros». O Chefe da Diplomacia europeia, Josep Borrell, afirmou que a EU e a China estão num «modo de rivalidade», mas que a Europa deve continuar a falar com a China. Depois de Emanuelle Macron ter defendido que a Europa deveria ter uma política própria em relação a Taiwan, estas posições parecem confirmar a divergência em relação a Washington, que defende uma estratégia de dissociação (decoupling), numa das poucas matérias que reúne consensos entre democratas e republicanos.
Já a ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock, afirmou, depois da sua visita à China, que a política chinesa estava a ficar mais repressiva no plano doméstico e mais agressiva no plano internacional, descrevendo partes da visita como «absolutamente chocantes». Baerbock definiu – em linha com a UE – a China como sendo simultaneamente país parceiro, competidor e rival sistémico e alertou para o impacto de uma potencial escalada militar no estreito de Taiwan, onde passa 50 por cento do comércio mundial e 70 por cento dos semicondutores. Afirmou ainda que qualquer alteração ao status quo no estreito de Taiwan através do uso da força seria «inaceitável».
Guerra possível, mas não provável
Apesar da escalada de tensões, três fatores sugerem que um cenário de conflito, embora possível, é – por agora – pouco provável.
O primeiro vem na forma de percentagem. Segundo dados da BCG, 92 por cento da produção de semicondutores mais avançados (inferiores a 10 nanómetros) concentra-se em Taiwan, onde está sediada a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC). Os semicondutores, descritos como o “petróleo do século XXI”, são usados para a produção de carros, smartphones, computadores, armamento sofisticado, sistemas de inteligência artificial e para a internet das coisas. Resultado da globalização, e dos processos de deslocalização e especialização regional que desencadeou, a TSMC concentrou-se e especializou-se na produção de semicondutores, adquirindo uma capacidade muito difícil de replicar, desde logo pelo investimento e tempo que exige. E se um cenário de conflito teria consequências muito negativas para as economias europeia e americana também impactaria a economia chinesa, o que poderá funcionar, por enquanto, como um escudo protetor para Taiwan.
O segundo fator são as mudanças políticas que poderão ocorrer em Taiwan, após as eleições presidenciais de janeiro de 2024. Nas eleições locais de novembro de 2022, o Partido Democrático e Progressista, que usou como slogan ‘Resistir à China e preservar Taiwan’, sofreu uma derrota. O candidato presidencial do DPP, William Lai, tem oscilado entre posições pró-independência e a defesa do status quo; mas uma vitória do candidato do KMT, que será escolhido em junho, significaria uma política mais conciliatória em relação a Pequim.
O terceiro fator é o do tempo político. A China, não tem o mesmo sentido de urgência das democracias ocidentais. E é provável que Xi Jinping, que está no poder há treze aos e lá poderá ficar indefinidamente, resista à tentação da pressa, pensando e planeando a longo prazo. Prazo esse que poderá ser 2049, ano em que a República Popular da China cumprirá um século de existência.
*Texto editado por Sónia Peres Pinto