Ur e Babel da Cidade da Torre à escuridão da noite

Desventuras de um jornalista percorrendo um Iraque destruído em busca dos lugares e das lendas que chegam a ser de 5700 anos antes de Cristo e falam do tempo em que a língua, que era só uma, se desfez em centenas de outras línguas que não se entendem umas às outras.

MOSSUL – Estou sentado à mesa juntamente com mais quatro mamíferos a discutir o preço do carro e do motorista que me levará de Bagdade às ruínas de Ur e Nínive. Não estou com paciência para mais trampolinices desde que Hassain me levou à Babilónia e volta e depois de ter combinado que a viagem ficaria por 30 mil dinares (0.00063 de um euro cada um) e no regresso me entregou nas mãos de um gordo façanhudo com uma teoria bem mais prática do que a inicial: 30 mil dinares só para o chofer; depois mais 50 mil dinares para o avantajado que se auto-denominava dono do carro e, por isso, sentia que tinha de receber a sua parte. Um bate-boca que vai de encontro à velha canção «Sobrevoei os sete mares/Por cima das nuvens/Tentei me entender/Eu vou pra lá de Bagdade/Eu vou pra lá de Bagdade…».

Nem mais um dinar! Ora que diabo! Eu percebo: o Iraque está a saque, cada um se esforça por aldrabar o outro, então estrangeiros são um luxo, não há turistas, só gente ligada à prospeção de petróleo e à construção civil – vários portugueses, por exemplo – mas meti-me a caminho da Babilónia de bolsos vazios e não faço tensões de andar aqui a fazer de pacóvio numa jiga-joga de regateios. De Bagdade a Ur, essa tão antiga cidade/Estado da Suméria, também conhecida por Urim, agora uma espécie de museu maltratado de Tell el-Muqayyar, exatamente como Nínive é o museu maltratado de Mossul, são 400 quilómetros e mais uns pós (aqui o que não falta é pó), ou seja mais do dobro do caminho que percorri na véspera entre Bagdad e Hillah, para mim as contas são fáceis de fazer, para o dobro da distância o dobro do preço. Mas Ahmed não está pelos ajustes, prefere a progressão geométrica à progressão aritmética, chiça lá para os 200 mil dinares que quer à cabeça, mesmo sabendo todos os que rodeiam a mesa que as cabeças não têm um valor por aí além nas estradas feitas caminhos ou picadas que percorrem o país de norte a sul sem que se obedeçam a regras.

Ele teima e eu teimo, as horas vão passando e a noite já caiu. Queria sair de Bagdade por volta da uma da manhã. O trânsito está menos saturado de camiões, o calor é menos violento, é sempre agradável chegar a locais que vivem dentro do nosso imaginário pelo nascer do Sol (foi assim que cheguei à Babilónia, foi assim que cheguei a Palmira, foi assim que cheguei a Angkor, e por aí fora). Assentamos finalmente num acordo de 100 mil dinares. E ponto final, nada de pedinchices extra. Hassain mostra um semblante amuado, mas não estou verdadeiramente para o aturar depois de ter ido com ele a Hillah, lá no Sul, e voltar. É com Youssef que viajo agora. De novo através dos arrabaldes toscos de uma Bagdade destruída vergonhosamente pela ignorância e cupidez humanas, mas agora com o Tigre do lado esquerdo a partir da ponte de Muthana e da ilhota que se esconde para lá das águas castanhas de lodo e lixo.

Quando cheguei ao Iraque, movido por mais um daqueles impulsos irresistíveis que, a par da profissão, me levou a mais de 130 países de todo este planeta redondo e apenas achatado nos polos trazia como objetivo primordial a antiga Babilónia e a porta nº 18, a única que se distingue, mandada construir por Nabucodonosor II, conhecido por O Grande, o maior dos imperadores neobabilónicos, e também o lugar onde morreu Alexandre O Grande depois de proferir a frase lendária: «Se destruí aqueles que me ajudaram como posso regressar a casa?». Não regressou. Morreu aqui embora não se saiba ao certo onde se encontram hoje os restos desse conquistador de todos os conquistadores. Depois havia Ur e Nínive. É, portanto, para lá que caminho noutro carro a desfazer-se em pedaços ao lado de um condutor que mal sabe pronunciar uma frase em inglês mas, ao contrario de Hassain, na véspera, não teima em por canções árabes lamechas no rádio do veículo.

Viajamos calados. Só a lua é testemunha. E só o roncar do motor do Hyundai se atravessa no nosso silêncio. Desenhámos no mapa as rotas a cumprir. Não vale a pena criar grandes expectativas e eu também não as criei. Não fui atrás da Torre de Babel que nas Escrituras nunca surge como Babel e sim como Torre da Cidade, mito fundador de todas as línguas. «Viajando os homens para o Oriente, acharam uma planície na terra de Sinear; e ali habitaram. Disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e queimemo-los bem. Os tijolos lhes serviram de pedras, e o betume de cal. E disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, cujo cume chegue até o céu, e façamo-nos um nome; para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra. Porém desceu Jeová para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam. Disse Jeová: Eis que o povo é um só, e todos eles têm uma só linguagem. Isto é o que começam a fazer: agora nada lhes será vedado de quanto intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que não entendam a linguagem um do outro. Assim Jeová os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade. Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu Jeová a linguagem de toda a terra; e dali os espalhou sobre a face de toda a terra». (Genesis 11:1)

A prepotência de Jeová é absolutamente inaceitável mas no tempo pós-diluviano não era de estranhar que se instalassem na Terra os prepotentes. O seu lugar ao certo ninguém se arrisca a indicar. Há quem diga que a base da torre é um conjunto de ruínas que ainda podem ser vistas no lugar de Etemenaqui; um zigurate, ou seja, um templo dedicado ao deus Marduque que teria 91 metros de altura e que teria sido arrasado pelo rei assírio Senaqueribe em 689 antes de Cristo. Depois, Nabopolasar, pai de Nabucudonosor II, fez um esforço para a reconstruir mas não chegou a lado algum. Tal como não chegamos a lado algum se persistirmos na sua busca. Motivo mais do que suficiente para que, a seguir a viajar pelo sul do Iraque, tentemos o norte.

A fortaleza de Ur

Olhar a fortaleza de Ur é um daqueles momentos que guardamos na memória para sempre, mesmo que seja obrigatório tirar dela algo para ocupar o seu lugar. Afinal falamos de um edifício construído 3800 anos antes da notícia de que o Messias teria vindo à Terra para salvar os homens nem que para isso fosse obrigado a deixar-se crucificar. O seu nome foi, à época, Mesennapada e fez parte do reino dos Ubaicos. Hoje em dia a terriola mais próxima é a empoeirada e desinteressante Tell el-Muqayaar. O bloco solitário e firme revela a sobriedade com que foi construído. Convenhamos: se foi feito para durar então já cumpriu de longe o seu objetivo. O período Ubaico foi estabelecido pelos arqueólogos modernos como tendo durado entre 5500 e 3700 antes de Cristo. E Ur teria nascido na margem direita do Tigre. A desertificação deixou-a a cerca de 16 km de distância do rio. O ideólogo da sua construção foi Ur-Nammu, o fundador da terceira dinastia dos sumérios. Ao longo do sítio arqueológico podem ver-se restos de zonas habitadas formando ruas, mas a única testemunha é a fortaleza/templo de cor castanha erguida em honra de Nanna, o deus da lua para os sumérios, acádios e assírios.

Quando o sol nasce sobre Ur o tempo parece ter parado.

Os raios vão surgindo pelo meio do deserto, a sede chega exigindo líquidos, a realidade manda-nos olhar para algo que o homem foi capaz de erigir nos primórdios na civilização que apareceu na zona desértica que fica entalada entre o Tigre e o Eufrates. Ao contrário do que acontece na zona das ruínas da Babilónia, onde as palmeiras brotam da areia com uma decisão inusitada, separando a cidade do deserto e justificando aquilo que ficou para a História como os Jardins Suspensos, Ur perde-se na cor que rodeia o monobloco de inacreditável resistência. A primeira palavra que me vem à cabeça depois de simplesmente observar é inamovível. Talvez tenha sido assim a base da torre da qual todos falam e nunca ninguém viu, a torre que separou os homens por línguas e nasceu da inveja omnipotente de Jeová. A viagem desde Bagdade foi dura e será mais dura ainda no regresso tanto aperto levam as vértebras no automóvel do qual as suspensões já quebraram. A dureza do caminho ressente-se pelas costas, pelas ancas e pelas pernas. São horas a fio de paisagem repetitiva e vou-me entretendo a falar com Youssef mesmo sabendo que ele não sabe peva de português. Digo-lhe meia-dúzia de patacoadas e ele responde com um resignado movimento de cabeça que não é nem sim nem não. Pouco importa. Sabe levar-me onde quero.

E agora é tempo de ir a Nínive essa cidade que foi gigantesca e é esse mesmo o sentido do seu nome: «Cidade excessivamente grande». Como se houvesse algo excessivamente grande capaz de saciar a curiosidade de um homem…

Os crimes de Mossul

Nínive é perto de Mossul, a terceira maior cidade do Iraque depois de Bagadade e Baçorá (Basra para os iraquianos), o lugar onde os portugueses se instalaram através dos avanços de António Tenreiro em 1523, lugar fundamental para dominar o comércio marítimo escoado pelo Golfo Pérsico. Xenofonte, militar, historiador e filósofo de Atenas, um dos discípulos preferidos de Sócrates, registou a sua localização num mapa de 401 antes de Cristo. Fica a cerca de 460 quilómetros de Bagdade, para norte, desta vez caminhámos para norte, sempre para norte deste país que ficou profundamente marcado por uma guerra de ganância e por uma invasão assente apenas na mentira.

Apesar de Nínive ser muito mais antiga no tempo, Mossul chegou a ser uma espécie de seu espelho na outra margem do Tigre. À medida que Nínive enfraqueceu e perdeu a sua glória, Mossul (à qual os gregos chamavam de Mápsila) tornou-se num centro comercial de inequívoca importância e um lugar famoso pelo negócio do artesanato, pelo fabrico de objetos de ferro e pela sua escola de pintura. Ainda é possível ver algo que sobre da velha Mossul (Iski Mossul). A mesquita de Al-Nouri e o minarete de al-Hadba, por exemplo.

Se o século XII, durante a dinastia de Zangid, foi o período mais brilhante da história de Mossul, o seu nome fica amarrado à invasão americana justificada pelo fabrico de armas de destruição em massa de um governo liderado por Saddam Hussein que podia muito bem ser um assassino de pacotilha e um tirano insuportável, mas nunca teve capacidade para desenvolver armamento de tal calibre. No dia 24 de Março de 2016, Mossul passou a ser um nome citado na abertura dos telejornais de todo o mundo. Dois anos antes tinha o seu destino nas mãos dos que se diziam Estado Islâmico como se o islamismo tivesse por detrás qualquer tipo de incentivo à violência. Não tem. O abuso da interpretação da palavra escrita é como que uma repetição, por exemplo, da interpretação feita pelos criminosos da Inquisição em relação às Escrituras. Infelizmente esta confusão entre Estado e religião mantém-se muito firme em alguns países retrógrados e incapazes de evoluir para uma conceção do universo que saia dos seus dogmas.

Podemos dizer que isso existe em toda a parte, desde as comunidades anabaptistas dos Canadá e dos Estados Unidos às orientações que desviaram muitos países que sendo motivo de interesse histórico (Mali é um bom exemplo) passaram a ser inacessíveis. Sorte os que tiveram a possibilidade de conhecer as catedrais de areia de Mopti, o País Dogon e essa incrível cidade que é Timbuktu. E longe ficamos de saber quando será possível lá voltar.  Eu, que sou um dos privilegiados e conheci o Mali em toda a sua extensão, olho de frente para os muros beges de Nínive e penso nos anos em que este foi um lugar proibido. A meu lado, Youssef boceja de tédio. Chamo-lhe uma série de nomes feios num português cavernícola que ele está longe de atingir. Nada o faria vir até à Nínive se não a atração irresistível do dinheiro. Penso: «Quanto custa vir a Nínive?» E a pergunta não faz qualquer sentido. Abram o Livro dos Livros: «Está próxima a ruína de Nínive, porque a palavra de Deus não falha; os nossos irmãos, que foram dispersos para longe da pátria de Israel, voltarão para ela. Todo o seu país deserto será repovoado, e a casa de Deus, que ali foi queimada, será reconstruída». Nínive soa-me na memória deste criança como me soa desde a infância a Torre de Babel. «Oh! Oh! Fugi para longe da terra do norte, porque eis que vos espalho pelos quatro ventos do céu – oráculo do Senhor. Salva-te, filha de Sião, tu que agora habitas na cidade de Babel! Porque isto declara o Senhor dos exércitos (que me enviou, depois) da provação, contra as nações que vos despojaram: quem vos toca, toca a menina dos meus olhos. Eis que vou levantar a minha mão contra essas nações, e elas serão a presa de seus escravos: assim sabereis que fui enviado pelo Senhor dos exércitos. Solta gritos de alegria, regozija-te, filha de Sião. Eis que venho residir no meio de ti». Há sempre uma voz que me chama em todos os lugares do Universo. Jerusalém também me chamou e eu fui. O chamado de Nínive cumpro-o agora enquanto me preparo para a massacrante viagem de regresso a Bagdade. Iremos pela escuridão da noite e pelo desafio da madrugada. Youssef conduz sem dizer uma palavra. E eu confesso que neste momento também não tenho nenhuma palavra para lhe dizer. Vou escrever e nada mais…