BAGDADE – Caminho à toa pela cidade. É importante deambularmos sem destino pelas cidades para que elas nos segredem aos ouvidos os seus mistérios invisíveis aos olhos e que apenas o coração pode entender. Uma poeira veio do deserto e deixou os carros sujos, as vidraças baças, uma incomodativa sensação na pele. O calor é forte mas não bruto. A Haifa Street leva-me até à margem do Tigre. O rio dá as suas voltas como uma cobra por entre os edifícios desta urbe destruída cujo nome ressoa na noite dos tempos e faz eco nos corredores da Humanidade. A origem do nome encontra-se no farsi – Bag (deus) Dad (dada). Oferecida por Deus. Sim, Deus pode tê-la dada ao mundo mas o homem tirou-a com a sua ganância asquerosa capaz de arrasar lugares cujos anos se contam aos milhares. Bagdade: a dimensão de um som.
Pelos passeios largos os lojistas que abrem as portas de metal da sua espécie de garagens que são lojas e armazéns espalhando o material de tal ordem que temos de percorrer labirintos de máquinas de lavar louça e roupa e aparelhos de ar condicionado como se nos deslocássemos dentro de um daqueles malditos free-shops que fazem moda nos aeroportos de todas as nacionalidades. Acho que procuro qualquer coisa que me faça sentir em casa. Quero dizer: para cada lugar para onde viajo procuro motivos para se me sentir em casa – rotinas, restaurantes, cafés, esquinas reconhecíveis pelo canto de um olho, personagens curiosas que me atraem a atenção ao primeiro olhar. Sentir-me em casa é importante. Muito importante. Ainda não me senti em casa em Bagdade, mas pode ser que, como acontece na última imagem de Casablanca, este seja o princípio de uma boa amizade. É necessário para que as ruas, avenidas e cruzamentos façam sentido, para que o mapa do sítio se desenhe na minha cabeça e se fixe na minha memória. Não estava à espera de encontrar uma cidade delirante. Não há motivos para isso. As feridas das guerras sucessivas ainda estão abertas, as outras são cicatrizes feias. E as cicatrizes falam. «Eu vou morar/Para lá de Bagdá/Onde o petróleo nasce/E não pára de jorrar», dizia a velha marchinha brasileira. Mas em Bagadade, Bagdad, Baghdah, Bagdá, escrevam como quiserem, o negócio agora é o da construção civil. Recuperar a cidade, devolver-lhe a honra, voltar a transforma-la num dos lugares procurados do Médio Oriente, conseguir que venha a ser a rival de Teerão como os iraquianos sempre sonharam. Afinal Bagdade nasceu com o destino de ser capital. Por culpa e Almançor, Abu Jafar Abdallah ibn Mohammad al-Mansur, o segundo califa abássida. Califa é o nome que se dá aos líderes muçulmanos.
Almansor, como o seu nome foi aportuguesado, fundou Bagdade em 762. Uma jovem cidade neste país onde lugares como Ur surgiram há mais de oito mil anos. Mas já tomei o caminho dos desertos desde que cheguei, não vou voltar atrás. Fui dos desertos do sul em direção a Hillah e aos destroços da Babilónia, naquele lugar onde o Tigre e o Eufrates, os rios/pais da civilização, se juntam antes de desaguarem no Golfo Pérsico. Fui aos desertos do norte, a Mossul e aos lugares onde se ergueram, indestrutíveis, os muros de Ur e de Nínive e ainda podemos ficar ali a olhá-los como bois para palácios.
Milhares de quilómetros percorridos e sempre esta melancolia de não sentir que estou num país inteiro e apenas no projeto de um outro país que ninguém sabe ao certo o que vai ser e que destino quer percorrer. É este o nosso tempo. Destruir para construir depois enriquecendo as grandes empresas dos países que saem das guerras com a aura de vencedores como se não perdêssemos todos neste jogo em que não há lugar decente para instalar vitoriosos e derrotados. Por causa de uma mentira proferida sem escrúpulos os novos donos do mundo traçaram um risco sobre o Iraque e declararam o seu apagamento do mapa das nações. As cidades arrasadas, os edifícios reduzidos a escombros, os buracos de bala no que resta de paredes desabadas são testemunhas dessa perseguição a Saddam Hussein, um ditador de pacotilha, um assassino do seu próprio povo (contam-se mais de 250 mil iraquianos mortos no tempo em que governou o Iraque como quis), elevado ao poder perante a displicência daqueles que depois o acusaram de fabricar armas de destruição em massa, tudo está aí à vista de quem quer cá vir embora não tenha encontrado um único fulano com ar de turista e os únicos estrangeiros com que me cruzei (portugueses também) estão aqui para se dedicarem aos projetos de reconstrução civil. E projetos há muitos em andamento, de todos os géneros e para todos os gostos, a começar pela tentativa compreensível de inventar lugares que consigam atrair os turistas (sobretudo ocidentais) como uma espécie de ilha do paraíso no meio do Tigre, um local pleno de hotéis de luxo e campos de golfe capaz de despertar a curiosidade de gente com dinheiro no bolso e não longe da roda gigante (copiada da de Londres) também ainda em fase de desenvolvimento. Os arranha-céus irão desabrochar em Bagdade como cogumelos cumprindo o mesmo destino de todas as outras grandes cidades dos Países do Golfo como Koweit, Dubai, abu-Dhabi, Doha ou Teerão. Para já, enquanto o avião sobrevoa o derredor, espreito pela janela oval e só vejo um, ainda por acabar. Branco, espelhado, cilíndrico. À volta, as máquinas preparam-se para levantar um centro económico onde as empresas multinacionais irão abrir as suas sucursais. No terrenos aplainado os guindastes não têm descanso. Não será já para amanhã. Mas talvez seja para daqui a dois dias…
À procura da vida
O monumento al-Shaheed é francamente bonito. Monumento erguido em homenagem aos mortos nas guerras contra o Irão. Duas meias conchas de azulejos azuis-claros com um espaço no meio onde existe uma pira e um pau de bandeira. Por dentro os azulejos são dourados. À medida que o sol nasce percorre o céu e morre os azuis percorrem tons infinitos: celeste, mar, céu, índigo, petróleo, mar, caribenho… Perco-me ao mesmo tempo que o procuro ver por diversos prismas. É um alívio para quem já calcorreou quilómetros de ruas e ruas entregues aos mais simples dos interesses económicos, a venda de tudo o que é absolutamente necessário para a vida do dia a dia e o tal acréscimo de qualidade da existência como por exemplo um aparelho de ar condicionado algo que para muitos é um luxo sibarítico. Ou, para ser mais autêntico, um luxo babilónico.
O Jardim Zoológico é evitável diz o meu guia dessa tarde, Mohammad, com o qual não discuti nem um centavo pelo serviço, estou farto de regatear por tudo e por nada e regatear os regateios, só que me indicasse alguns lugares da velha Bagdade de antes da devastação em troca de um jantar à base de húmus, cebola e pão ázimo, algo que caiu que nem ginjas no meu estômago verdadeiramente maltratado nos últimos dois dias. Ele diz, e eu não tenho como confirmar, que quando as bombas começaram a rebentar sobre Bagdade, em 2003, era possível dar de caras com girafas e chitas e opossuns, leões e elefantes de repente, ao sair de casa, porque uma explosão certeira desfez as suas prisões de grades e das 700 espécimes que faziam dele um dos maiores zoológicos da Ásia não sobraram mais de 35. Animais de todos os géneros espalharam-se pelas avenidas da capital do Iraque com a diferença de que os mais perigosos tinham metralhadoras na mão. Por alguma razão babilónico passou a ser um adjetivo. Mesmo aqui, no reino da Babilónia de Nabocudosor O Grande pelo qual Alexandre (também O Grande) se deixou fascinar de tal forma que não parou antes de aqui chegar e aqui morrer embora tenham levado o seu corpo para algures que ninguém sabe ao certo. Claro que ganharam os animais das metralhadoras. Há crateras inteiras que o testemunham. Tigres ou rinocerontes nem vê-los. Não havia lugar para eles no centro da carnificina que ainda deixa por toda a parte um odor requentado a pólvora.
Poucas fardas!
Há, pelo menos, o alívio de as fardas não espreitarem a cada quarteirão. Para quem detesta fardas como eu bastam-me os casacos castanhos de golas grandes e verdes dos taxistas que não mandam nada porque só conduzem (quem manda nos táxis são os proprietários) e a qualquer momento somos entregues a um façanhudo barato e bacoco para refazer as verbas entretanto combinadas numa máfia das barracas que não se pode levar a sério. A polícia, por seu lado, está sob a determinação do exército que é musculado por elementos militares estrangeiros. E parece aceitá-lo sem rebuço.
O sol está a pino. As sombras estão reduzidas ao mínimo e é preciso uma certa estratégia para caminharmos protegidos de um bafo que irá atingir os 28 graus. Vou pelos carreiros do parque de al-Zawra’a em direcção a outro jardim público com um nome mais compreensível para toda a gente: Praça de Kharamana, ou dos 40 ladrões. Recorda a história desse jovem persa, Ali Babá, que percorria quilómetros atrás de quilómetros e que era, por assim dizer, uma espécie de jornalista que viajava de um lado para o outro com a intenção de recolher informações para serem entregues ao xá. Ali Babá, às escondidas, soube a palavra passe que abria a gruta onde se escondiam as enormes riquezas de um grupo de ladrões que atingiam as quatro dezenas. Foi lá pelas esconsas. Ou seja, pela escuridão da noite, tornou-se o ladrão de todos os ladrões. E ainda assim é herói. Dos ladrões roubados, a malta pensa: «Que se quilhem! Não roubassem!» Não sou capaz de dizer que Bagdade está instalada na filosofia básica do roubo. Mas o dinheiro é demasiado importante para que não se discuta em volta dele. Ao fim do primeiro acordo vem o chefe daquele que fez acordo connosco e diz que o acordo é válido mas é preciso fazer outro. Com ele. E assim por diante. Às vezes é necessário lidar com três ou quatro interessados e os preços de uma viagem para a Babilónia pode subir sem remissão na escala do regateio. Enfim… só é enganado a segunda vez quem é ingénuo suficiente para não perceber como encaixam as rodas dentadas dos negócios desta Bagdade que anseia por ser uma das capitais do mundo ao mesmo tempo que se vê reduzida a um arrabalde bisonho da cidade que já foi. Os ATM são poucos e só vomitam dinares (0,00063 de euro) embora o dólar seja utilizado igualmente como moeda. Mas quem tem dólares guarda-os. Valorizam. Já os dinares desvalorizam. Bastam 24 horas.
«Já tô cansado de almoçar roendo o osso/Eu quero um diamante pendurado no pescoço/Com certas odaliscas servindo o meu jantar/Para lá de Bagdá…» Sabem quanta letras de músicas carnavalescas os brasileiros têm com a expressão para lá de Bagdá? Pois esqueçam que eu também não sei e também não vou contá-las. «Sobrevoei os sete mares/Por cima das nuvens/Tentei me entender/Para lá de Bagdá…/Para lá de Bagdá…» Ou então: «Vou fazer você dançar/Sem cansar até raiar o sol/Eu quero fazer amor/E o seu calor no meu lençol/Vai soltando seus cabelos/Me tirando o sossego/Eu estou para lá de Baghdah», por exemplo. Se mergulhar nos dicionários brasileiros a frase tem dois significados formais: expressão usada para significar lugar muito distante; expressão utilizada em relação a alguém que está muito bêbado. É certo que bêbado não estou. Há cinco dias, desde que cheguei, que não toco numa gota de álcool. Nem me apetece. Não vou entrar num desses restaurantes de cinco estrelas que ainda há pouco vi no cruzamento da Al-Rashid com a Nasir só para enfiar uma cerveja de golada. Estou aqui tranquilo no meu lugar nem para lá nem para cá de Bagdade. Estou em Bagdade, ela própria, aquela que Genghis Khan exigiu que fosse destruída, aquela que os países que representam a civilização ocidental decidiram que teria de ser destruída. E, no entanto, resiste. E vai sendo reerguida a pouco e pouco à medida que a poeira das obras vai assentando e as obras se interrompem para que os homens vão descansar agora que a noite entra pelo horizonte e se instala num céu com estrelas impossíveis de contar. Bagdade é tão preciso como navegar. Fico sentado com o movimento no meu redor. O resto só não é silêncio porque ainda existe o miar doloroso de alguns guindastes que não desistem. E conseguem ver o futuro através do passado…