Por António manuel de Paula Saraiva, Arquiteto paisagista
Na Europa e na América – as únicas regiões do mundo onde há governos minimamente democráticos – discute-se muito o estado da democracia, ameaçada, dizem, pelo populismo e pelo desinteresse das populações, patente na diminuição do número de cidadãos que fazem uso do seu direito de voto. Diminuição essa que levou alguns países a decretar o voto obrigatório, o que não deixa de ser uma contradição, com seus laivos de caricata.
Mas a democracia tem de facto inimigos poderosos, alguns externos, outros resultantes da sua própria conceção.
A vigilância eletrónica
O principal inimigo externo é a vigilância eletrónica. Como bem se sabe hoje, quase todos os cidadãos – exceto os muito velhos ou as crianças – comunicam pela internet. E analisando o teor das mensagens, será cada vez mais fácil conhecer as opções políticas de cada um, o grau real de instrução, os interesses, e até a sua própria personalidade. A isto acrescem os dados recolhidos pelas câmaras de vigilância (complementados pelas técnicas de reconhecimento facial), e o registo das compras e outros movimentos bancários feitos através de cartões de crédito, cada vez mais ‘amigos do utente’, que do mesmo passo permitem mais facilmente ligar os movimentos bancários aos seus utilizadores. E a somar a isto temos uma lei europeia supostamente de ‘Proteção de Dados Pessoais’, mas que possibilita às empresas venderem os dados de quem a elas acede; e que permite que o acesso a numerosos sites só seja possível quando o utente dá esse consentimento.
Temos assim na mão dos governos – e não só, pois a prática demonstrou que hackers habilidosos podem aceder a registo de entidades governamentais, mesmo as supostamente blindadas contra tais intrusões – aquilo que até hoje todos os ditadores através das épocas tentaram, mas só imperfeitamente conseguiram: saber o que cada um dos seus cidadãos pensa e faz, as suas fraquezas e forças, e até o seu estado de saúde.
Poder-se-á entretanto contra-argumentar que ‘quem não deve não teme’, e por isso ‘eu não me importo que me vigiem’. Pensamento um pouco infantil, pois está implícita na democracia o conceito de ‘Não Coação’, para que as opções de cada um numa votação sejam as que lhe brotam do fundo da alma, e não condicionadas por vantagens ou desvantagens económicas, medo, ou vontade de agradar – o que implica o voto secreto.
A informação
A importância dos media é tal que alguém já os classificou de 4.º poder (a somar aos outros três, o Poder Legislativo, o Judicial e o Executivo); mas tal classificação é errada: não se trata de um verdadeiro ‘poder’, mas ‘pode’ condicionar o sentido de voto, e consequentemente o Poder Legislativo, que é o cerne das democracias. De facto, as escolhas dos cidadãos dependem da informação que possuem; e, por isso, para haver escolhas corretas é indispensável que os cidadãos tenham acesso à informação relevante – o mais verdadeira e completa possível. A ausência de Censura não basta.
Na verdade, como infelizmente se sabe, os cidadãos estão diariamente expostos a ‘fake news’: mas estas não são muito de temer – são um pouco anedóticas, e quase sempre desmentidas pelos factos subsequentes, sendo por isso detetáveis. Já a informação tendenciosa – que diz a verdade mas conta só uma parte da história – é de temer e pode tornar-se cada vez mais frequente, devido ao controle da informação por grupos poderosos.
Uma tentativa de solução seria a de classificar os meios de comunicação social como bens não vendáveis; a sua posse seria reservada a cooperativas de jornalistas; e a quantidade de publicidade teria limites. Isto para impedir que uns media – os com determinada linha política, que defendessem certos interesses ou que não divulgassem certos factos – fossem beneficiados com chorudos contratos de publicidade, enquanto os media de diferentes linhas minguariam à falta de receitas de publicidade. Mas mesmo ainda assim os cidadãos ficariam expostos a eventuais notícias tendenciosas veiculadas por meios de informação de outros países.
A velocidade de rotação dos cargos públicos
Um terceiro inimigo, este interno, é a velocidade de rotação dos cargos públicos. Um governo toma determinada decisão aparentemente razoável, mas que irá ter consequências nefastas de futuro – às quais, no entanto, esse governo não terá de fazer face, pois nessa altura já não estará no poder (o exemplo mais gritante é a contração de empréstimos). Note-se que, ao nível pessoal, as nossas escolhas – quanto aos estudos, ao casamento, à saúde, às opções económicas – têm consequências que se arrastam pela vida fora.
Assim, uma democracia exige maior perenidade nos cargos públicos – problema entretanto de não muito fácil conciliação com a necessidade de retirar do poder quem dele não se está servindo de forma honesta, ou carece de ideias para corrigir os problemas, ou mesmo de novas ideias, indispensáveis num mundo em mutação.
A partidocracia
Um quarto, e também muito poderoso inimigo é a partidocracia.
A partidocracia pode-se definir como o governo da república só nominalmente resultar da vontade dos cidadãos – antes, e pelo contrário, resulta das ideias/vontades dos membros da direção dos partidos do ‘arco do poder’.
E, além disso, os vários partidos, mais do que serem fóruns para pensar diferentes soluções para os problemas do país, são frequentemente agências de distribuição de empregos. Isto traduz-se em que não são os mais capazes que ocupam determinados lugares, mas os mais fieis à direção dos partidos do referido ‘arco do poder’– realidade que está em flagrante contradição com o princípio da igualdade, e que por isso os demais cidadãos sentem como grave injustiça.
E pelo facto de os partidos, como se disse, serem, em boa parte, máquinas de distribuição de benesses, leva a que criem o maior número de lugares de direção possível, para dar lugar ao maior número de amigos possível. Isto tem custos acrescidos para a máquina do Estado; e os serviços ficam muitas vezes incapazes de resolver os problemas, pois o seu âmbito de ação é limitado. Problema a que se soma frequentemente a falta de uma clara definição de competências, que se cruzam e sobrepõem, tudo resultando num emaranhado de vontades que se anulam. E isto tanto mais quando falta um coordenador; e existe um medo difuso mas generalizado em tomar decisões.
Assim, o número de serviços deve ser reduzido; e, depois de muito ouvir, deve haver um coordenador que sintetize e decida. Estudar na dúvida mas realizar na fé, deve ser o mote.
A solução deste problema exige que as nomeações políticas sejam no menor número possível, sendo a grande maioria dos cargos ocupados por cidadãos escolhidos através de concursos abertos ou da escolha dos pares. O número de lugares que poderão ser preenchidos por simples nomeação é assim um aspeto fulcral, que deveria por isso ter ‘honras’ de ser regulado na Constituição da República.
Mas além dos aspetos de injustiça acima referidos, esta partidocracia revela-se de outras formas, nomeadamente na escolha dos deputados.
Em teoria, o poder nas democracias está no órgão que faz as leis, o Parlamento, constituído pelos deputados eleitos pelo povo, sendo o Governo o executor das suas decisões. Mas o que se verifica na realidade? Todos sabemos que os deputados são escolhidos pelos partidos, e colocados numa determinada ordem, sendo eleitos os colocados nos primeiros lugares da lista. Assim, aos cidadãos é dado escolher um partido mas não os deputados que o irão representar.
E durante a legislatura os deputados não poderão decidir por si – como seria suposto – mas de acordo com as orientações da direção do partido, pois de outra forma não voltarão a ser escolhidos para integrarem futuras listas.
Assim, uma democracia exige que os cidadãos tenham escolha sobre quem, de entre os nomes indicados por cada partido, deve ser eleito (mantendo o método de Hondt, pois o método do deputado único esmaga os partidos mais fracos e assinalando nas listas de voto os deputados preferidos).
A quem é concedido o direito de votar?
Um quinto inimigo, embora ainda com pouca expressão, tem a ver com os cidadãos a quem é concedido o direito de votar. A nossa lei – diferente da de muitos países – alarga, para certas eleições, o direito de voto aos cidadãos da União Europeia, dos PALOPS, da Venezuela. Ora, Portugal ainda é um país independente, do que resulta que a sua condução cabe aos seus nacionais. E é fácil perceber que estrangeiros que vieram para Portugal em busca de trabalho, de segurança, ou de um clima ameno, não estão identificados, não sentem o país da mesma forma que os portugueses. Assim, esta extensão do voto ‘liquefaz’ a democracia.
Argumentarão os do partido do ‘Politicamente Correto’ que esse direito é concedido para melhor integrar os imigrantes no nosso país. Mas, ao defenderem tal, esquecem de que a ‘integração’ vem de uma atitude interior de cada imigrante, e não das decisões, ou opiniões, de políticos estranhos a essas comunidades, ainda que bem-intencionados. Quando, no recente Campeonato do Mundo de futebol, a França ganhou a Marrocos, os marroquinos que vivem em França festejaram a vitória do país de acolhimento?
Os votos não presenciais
E, finalmente, um sexto inimigo, que no nosso país ainda não faz estragos, mas que tem partidários (talvez bem-intencionados mas naïfs): os defensores dos votos não presenciais e do voto eletrónico, formas de votar que, a serem adotadas e ganharem expressão, irão quase certamente causar problemas. De facto, a democracia não pressupõe apenas que os cidadãos votem, mas também que votem de forma livre e não coagidos, e que todos aceitem o resultado das votações – ainda que não concordem com as decisões através delas tomadas. Ora, essa aceitação só pode ter lugar se os cidadãos tiverem a certeza que ‘foi mesmo esse’ o resultado a votação. Mas quem pode assegurar que os votos por correspondência não são roubados no percurso, ou foram obtidos sob coação? E que os votos eletrónicos não são alterados por hackers habilidosos? Os exemplos de votações nos Estados Unidos e no Brasil mostram-nos que podem surgir dúvidas quanto à autenticidade deste tipo de votações; e essas dúvidas, mesmo que infundadas, minam pela base a convivência social.
A quem compete decidir?
Para finalizar: muitas organizações que supervisionam atividades como o desporto, a ciência, a Igreja não são governadas pelo voto dos cidadãos mas por direções restritas. Qual deverá ser o âmbito das decisões a tomar pelo voto da generalidade dos cidadãos e o das organizações especializadas? Creio podermos responder com um exemplo da nossa vida: eu decido se devo ir ao médico e se quero ou não ser operado (e não o médico); mas, tomada essa decisão, a operação compete ao médico. Assim devem reservar-se para a generalidade dos cidadãos as decisões gerais, e para organismos especializados as decisões técnicas.