Por causa de um vício que me vem do coração tenho a tendência de procurar nas letras mais pequenas dos jornais desportivos os resultados da Académica e do Recreio de Águeda. Estão hoje em dia ambos entregues aos bichos, por assim dizer, os Galos do Botaréu vegetando nos distritais, a Briosa aguentando-se como pode na Liga 3. Dia 1 de maio, nas Caldas da Rainha, o Caldas-Académica reproduz uma partida que chegou a excitar muitos adeptos em tempos que já lá vão. «Ai que saudades, ai, ai», diria o grande Carlos Pinhão. Porque as recordações são como as cerejas, quem puxa por uma traz logo mais duas ou três pegadas, fui em busca daquele jogo mágico no qual uma personagem única do futebol português marcou quatro golos ao Caldas, aos 3, 8, 9 e 34 minutos, empurrando a Académica para uma das vitórias mais sensacionais da sua história, 11-0 aos pelicanos das Caldas.
Chipenda tinha sido campeão pelo Benfica na época anterior (1957-58) e veria a sua carreira ser dizimada quando foi apanhado pela PIDE em junho de 1961, acusado de ter criado em Lisboa a Juventude do Movimento Popular da Libertação de Angola. Nascido em Benguela, a 15 de Maio de 1931, era um jogador bravo e um homem por inteiro. A política afastou-o dos estudos de Geologia.
Nesse dia que relembro, o 22 de março de 1959, mosquitos por cordas atacaram o campeonato nacional da I Divisão e tornaram-no num dos momentos infelizmente inesquecíveis das guerras de alecrim e manjerona que fazem dele um dos mais miseráveis da Europa. Daniel Júlio Chipenda, conhecido por Sango como nome de guerra, merecia que fosse um dos seus grandes momentos e lembrado como tal. Mas, a não ser em Coimbra, no final do dia ninguém falava dele. Dois nomes estavam prontos a impor-se como o exemplo da vergonha que a arbitragem portuguesa sempre foi.
A bandalheira
A vitória da Académica sobre o Caldas por 11-0 não teve espinhas, era o que faltava. Mas, na Luz e no Campo das Covas, em Torres Vedras, Benfica e FC Porto lançaram-se num ombro a ombro de pouca dignidade. O presidente do FC Porto que é, para usarmos uma expressão sua, o delfim de José Maria Pedroto, tudo fez para que esse domingo de abril se reduzisse à atuação do árbitro Inocêncio Calabote no Benfica, 7 – CUF, 1, ganhasse uma aura de corrupção que não lhe cabia como fato à medida pela simples razão de que, em Torres Vedras, Francisco Guiomar, ido de Beja, meteu os pés pela mãos tanto como o seu colega de profissão.
Em Coimbra, no Municipal, Hermínio Soares esteve entretido a registar os golos da Académica no seu caderninho. Em Lisboa, Calabote deu cerca de 6 minutos de compensação no final da partida, tempo suficiente para que Serra fizesse um golo de livre direto e José Águas desperdiçasse outro isolado frente a Gama. Golo que daria o título aos encarnados que estavam empatados com o FC Porto no topo da tabela, tão empatados que o campeonato dessa época foi decidido por um simples golo, algo absolutamente irónico se pensarmos que a Académica tinha marcado 11 ao Caldas, ou seja, teve golos para dar e vender.
O meu bom amigo Aventino Teixeira tinha uma opinião curiosa sobre o eterno presidente portista: «O azar dele foi o Pedroto não perceber nada de eletrodomésticos». Como o referido mamífero chegou a ter um negócio de eletrodomésticos, a tirada define bem quem lhe forneceu os ensinamentos que o conduziram ao lugar pouco invejável de campeão dos arguidos do futebol português. José Maria Pedroto quando assumiu o cargo de treinador do FC Porto usou e abusou da guerra psicológica. E foi desenterrar essa arbitragem de Calabote dando a entender que o árbitro do Benfica-CUF tinha dado todo aquele tempo de compensação na esperança de que pudesse surgir o golo que desfizesse o empate no topo da classificação a favor dos encarnados.
O problema é que, ao mesmo tempo que o Benfica marcava o sétimo golo e desperdiçava o oitavo (que lhe garantiria o título), aquilo que se passava no Campo das Covas era muito pouco digno. O FC Porto precisava de ganhar por três golos de vantagem e, ao minuto 89, ainda estava apenas 0-1, golo de Perdigão, e o torriense Manuel Carlos já fora expulso. A pressão sobre o juiz do encontro, Francisco Guiomar, tornou-se insuportável. E este tomou a decisão irreversível de expulsar Saldanha no último minuto, deixando os portistas a jogarem contra nove. Aproveitaram os do norte marcando os golos decisivos para o título através de Noé (89m) e Teixeira (90m). Ou seja, falar de Caçabote e esquecer Guiomar pode dar jeito a alguns mas revela uma certa falta memória… E a memória não prescreve.