Cada vez havia mais leitores, cada vez se vendiam mais livros, cada vez se atribuíam mais prémios literários. Havia uma nova indústria e novos consumidores. Os escritores apareciam na televisão, concediam entrevistas, eram assediados pelos admiradores. Tornavam-se famosos e respeitados. Muitos deles ficavam ricos. Além disso, os escritores não tinham de trabalhar como as outras pessoas – só escreviam quando lhes surgia a inspiração. Enquanto o cidadão comum se levantava de madrugada, o escritor sonhava com o seu novo livro. Quando aquele recebia ordens do chefe, este ditava a sua vontade às personagens. A sua vida era um romance, sem sofrimento nem tragédia. E para tanto bastava ter imaginação e audácia, já que escrever toda a gente sabia. Nada mais. Que outra profissão se lhe podia comparar?
Tais constatações levaram António Burnay a decidir tornar-se escritor. Estava farto do desempenho de tarefas monótonas que a função de empregado de escritório lhe impunha. Já bastava de preencher formulários, redigir cartas, arquivar documentos, atender telefonemas, aturar clientes e espreitar a net à socapa. Tinha-lhe sido prometido um novo cargo e um aumento de salário, mas a página da sua promoção nunca mais era virada. Chegara a altura de mudar de vida. O seu potencial estava a ser desperdiçado como amanuense, quando poderia ser utilizado como romancista.
A primeira prenda que a sua mãe lhe dera fora um livro de contos. Talvez por isso, desde a escola primária que as professoras lhe elogiavam as redacções, nunca dera erros e não se enganava a conjugar os verbos. E quanto à imaginação e à audácia, chegavam para encher uma biblioteca. Dispunha, portanto, das ferramentas necessárias para ser escritor. Se a falta de talento para o desenho o impedia de se tornar artista plástico, se a incapacidade de se emocionar com a música não lhe permitia ser instrumentista, e se a fraca condição física lhe negava uma carreira desportiva, não carecia de nenhuma competência para ser um romancista.
«Se houve pessoas sem estudos que ganharam o prémio Nobel, internados em hospícios que escreveram obras-primas, e escritores famosos que apenas despertaram para o ofício por necessidade de sobrevivência, porque não conseguirei eu, letrado, lúcido e de livre vontade, superá-los?», interrogava-se.
Não tinha Fernando Pessoa desempenhado a mesma profissão de escriturário, servindo-se quiçá dessa experiência para se iniciar na literatura? Pois se esse seu colega, que passava a vida enfrascado, havia conseguido ascender tão alto, também ele conseguiria. Afinal, esse Fernando Pessoa até nem era assim tão bom quanto diziam. Inventara o truque de se fazer passar por outras pessoas e de escrever frases paradoxais que ninguém entendia, e assim se tornara célebre. Na poesia, como não havia regras, qualquer um podia martelar versos, confundir sensações, escrever oblíquo. Mas criar romances com princípio, meio e fim, coisas de jeito, com pés e cabeça, isso não estava ao alcance de qualquer pessoa.
Por outro lado, não existiam tantos livros aclamados pela crítica que, na verdade, nada tinham de especial? E que dizer dos que eram mesmo medíocres, mas que ninguém se atrevia a questionar? Um dia, entrara num alfarrabista – esse cemitério de livros – e descobrira que as ditas obras de qualidade suplantavam as consideradas vulgares. Os clássicos da literatura universal estavam lá todos; as mesas atulhadas de prémios Nobel e outros escritores consagrados. Eis mais uma prova de que algo estava errado na literatura. Se realmente esses romances tinham tanto valor, por que motivo os seus donos os teriam vendido por tuta-e-meia?
Enfim, a história dos livros estava mal contada.
Com mais confiança nos defeitos alheios do que nas virtudes próprias, saiu de casa para o trabalho. Vestira o seu melhor fato e engraxara os sapatos; o pente debatera-se contra os cabelos. Passou a porta de entrada sem cumprimentar o porteiro, atravessou o átrio a passos largos, entrou no elevador e carregou no botão sem esperar pelas pessoas que vinham atrás de si. Depois, percorreu um corredor e abriu a porta do escritório. O sopro do ar condicionado não lhe arrefeceu o ânimo; a luz dos néones iluminou-lhe o porvir. Olhou em volta: a maioria dos seus colegas estava a escrever. Contos que começavam e acabavam sempre da mesma maneira: clientes e fornecedores eram as únicas personagens, e havia por vezes a intrusão de um biltre chamado fisco. Um escritório era um depósito de escribas sem imaginação. E após milhares de páginas destinadas à reciclagem, no último capítulo recebiam uma nota de rodapé de reforma. Não seria esse o seu destino.
Interrompeu então a tarefa dos colegas e revelou-lhes o seu desígnio literário.
– Tenho uma novidade para vos dar: vou escrever um romance.
Esperava congratulações e incentivos, espanto e inveja. Mas a maioria, após escutá-lo, continuou a trabalhar como se nada fosse, tendo apenas uma das secretárias desatado a rir. Quem não achou graça nenhuma foi o seu chefe. Ouvindo também a insólita revelação, veio ter com Burnay e advertiu-o de que «essa história de andar a escrever livros nunca deu bom resultado». Feito o aviso, destinou-lhe trabalho extra como castigo. Burnay vingou-se nas folhas dos formulários, retalhadas a golpes de caneta, e nas teclas do computador, seviciadas pela fúria das falanges.
No entanto, os copistas tinham afinal algo a dizer. Alguém se atrevera a escrever fora do escritório – urgia quebrar-lhe a pena. As mulheres tomaram a iniciativa. A colega do lado comentou para quem a quisesse ouvir:
– Isso de ser escritor é para quem não sabe fazer mais nada na vida.
Outra funcionária, do lado oposto da sala, também se pronunciou:
– As pessoas chegam a casa cansadas do trabalho e têm lá pachorra para ler livros.
Depois, foi a vez dos homens. Para censurar o atrevimento, um colega deu-lhe uma sugestão:
– Olha lá, Burnay, e se te tornasses astrólogo em vez de escritor?
Outro aperfeiçoou o alvitre:
– E depois podias escrever romances astrológicos.
Burnay não respondeu às provocações. Passada uma hora, já pouco se importava com os palpites e as piadas daquela gente ignara. Apenas levou em conta os sentimentos do chefe para com a literatura. Havia aprendido uma lição: levar livros para o trabalho não dava bom resultado.