A tirania do mérito

Renegando a sociedade de mercado, que paga a cada pessoa segundo o seu mérito, Michael Sandel defende uma sociedade assente na moral, em que todos ganhem de acordo com o seu trabalho e não com o seu talento. 

Um destes dias, o convidado de Vítor Gonçalves na Grande Entrevista era um americano, professor em Harvard, chamado Michael J. Sandel. A entrevista era feita por videochamada, o que me provocou estranheza, pois o programa é sempre realizado em estúdio. Mas foi isso que me fez parar para ver.

Sandel é considerado um dos maiores pensadores vivos, sendo autor de um livro com o sugestivo título de A Tirania do Mérito, editado em Portugal no ano passado. Não li o livro, mas pelo que percebi o autor resumiu-o de forma bastante rigorosa na entrevista. 

A teoria defendida por Sandel é exatamente a que o título do livro sugere. Segundo o autor, nas sociedades ocidentais o ‘mérito individual’ impôs-se a qualquer outro fator, instituindo uma verdadeira tirania. E essa é a principal causa da crise deste modelo de sociedade. 

Para concretizar a ideia, o entrevistador perguntou se Sandel conhecia o exemplo do futebolista Cristiano Ronaldo e pediu-lhe para comentar o seu sucesso e a fortuna que ganha. E o homem disse mais ou menos isto:

«O Ronaldo ganha milhões por ano. Certamente pelo seu trabalho mas sobretudo pelo seu talento. Ora, o talento é inato, resulta da sorte. Ronaldo teve a sorte de nascer com aquele talento. Eu, se fosse jogador de futebol, poderia trabalhar muito mas nunca chegaria a ganhar o que ele ganha. Nem um centésimo.

Por outro lado, Ronaldo teve também a sorte de nascer numa época em que o seu talento (jogar à bola) é muito valorizado. Se tivesse nascido no Renascimento, por exemplo, as suas qualidades de futebolista não lhe serviriam para nada. Assim sendo, tendo sido Ronaldo duplamente bafejado pela sorte (com o talento e a altura em que nasceu), torna-se imoral o dinheiro que ganha em comparação com o que ganha o comum dos mortais».

Michael Sandel adianta que esta ditadura do mérito é resultado do neoliberalismo e da globalização. 

O mérito é sobrevalorizado – e o demérito é penalizado. E daqui resulta uma grande frustração em muita gente, que produz o populismo e da qual o populismo se alimenta. O populismo, para Sandel, é fruto da frustração de milhões de seres humanos que, por falta de mérito, vão ficando para trás.

Assim, o ensaísta conclui que se impõe mudar de paradigma – e passar a valorizar não o mérito, que é consequência da sorte de cada um, mas o trabalho. É preciso revalorizar e redignificar o trabalho.

 

A teoria é esta, sem tirar nem pôr. E muitos críticos literários em todo o mundo fizeram-lhe elogios rasgados e apresentaram-na como uma grande novidade. Sandel tornou-se um guru a nível planetário – e deve ganhar milhões, pois o livro foi traduzido em muitas línguas e vendeu montanhas de exemplares. Ou seja, o próprio Sandel é um exemplo da teoria que criou, pois enriqueceu com base no seu… mérito. Não o mérito desportivo, como Ronaldo, mas o mérito intelectual.

Mas qual é a originalidade da teoria? Será mesmo nova? Ou não é mais do que a velha teoria marxista, segundo a qual cada um deveria receber de acordo com o seu trabalho? E que postulava que o desenvolvimento natural do processo capitalista conduziria fatalmente a que os pobres fossem ficando cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos, pelo que a revolução proletária seria inevitável? 

É isto, precisamente, o que diz Sandel – substituindo a palavra ‘comunismo’ por ‘populismo’. Ele afirma que os frustrados vão aumentando sempre e que, em consequência disso, o populismo vai triunfar. A propósito, ele antecipa a vitória de Trump nas próximas eleições americanas. 

Para Sandel, um futebolista como Ronaldo deveria ganhar o mesmo que um pedreiro ou até menos. Tudo depende da quantidade de trabalho e do esforço despendido por cada um.

Renegando a sociedade de mercado, que paga a cada pessoa segundo o seu mérito (um grande futebolista, um grande pintor, um grande gestor gera milhões e é pago de acordo com isso), Sandel defende uma sociedade assente na moral, em que todos ganhem de acordo com o seu trabalho e não com o seu talento. 

Mas isto não é mais nem menos do que o modelo comunista. «A cada um segundo o seu trabalho», era o que postulava a primeira etapa do comunismo. Ora, este modelo já foi experimentado e não deu provas. Pelo contrário, provocou catástrofes.

A revisitação que Sandel faz ao marxismo, para lá de não ser original, apresenta ideias que já foram testadas sem sucesso. É estranho, por isso, o entusiasmo que tem provocado em vários setores. A nossa sociedade anda febrilmente à procura de ideias novas, e tudo aquilo que cheire a novidade intelectual é imediatamente agarrado com as duas mãos pelos exploradores… do mérito.