por Fábio Sousa*
Um espaço que durante a maior parte do tempo é apenas um estacionamento ocupado por carros está agora cheio de gente de todos os tipos. Chegamos ao Campo de Santa Clara, onde se faz a Feira da Ladra, pelas 9h00 e o alvoroço já está instalado. Com pouca clientela ainda a comprar, os feirantes fazem-se ouvir. Uma senhora que se debruça sobre louça exposta em cima de uma mesa de campismo, usada como montra, cumprimenta: «Bom dia Sr. Vítor, hoje trouxe a minha mãe, já viu?». O dono da banca, ainda atrapalhado a montar o que resta, não deixa de esboçar um sorriso. «Olhe que fez muito bem, com um dia destes há muita coisa bela para comprar». Os termómetros lisboetas marcam 26ºC de máxima e o sol faz reluzir os diversos produtos que se distribuem pela feira. Uns no chão, outros em cima de mesas improvisadas, outros até estão pendurados em estendais como peças de roupa e retalhos.
Os feirantes dispõem as suas bancas desde o Arco Grande de Cima até à Rua do Mirante, em frente ao Casão Militar. São dezenas de feirantes e outras tantas dezenas de clientes. Cada um com a sua história irrepetível – porém com um ponto em comum: o amor pela Feira da Ladra.
Apesar de agora se montar no campo de Santa Clara, a feira já passou por diversos locais de Lisboa. A sua primeira menção remota ao século XII, época em que se instalava junto ao Castelo de S. Jorge. Segundo consta, já se realizava à terça-feira, como acontece hoje. Mais tarde, já no séc. XV, passou para o Rossio onde permaneceu por mais um tempo. Após o terramoto de 1755, a feira foi inicialmente realocada para a Praça da Alegria. Contudo, com o número de feirantes sempre a aumentar, teve de se mudar de armas e bagagens para o Campo de Sant’ana (atualmente conhecido como Campo dos Mártires da Pátria). Apenas em finais do século XVIII é que a Feira da Ladra se instala no local atual, o Campo de Santa Clara.
Quem por cá anda
Sandra é feirante há quinze anos e desde 2013 que possui um espaço de venda permanente. A sua mercadoria é constituída por produtos de louça, azulejos e até mesmo alguns postais antigos. Uns a cor, outros a preto e branco. Os produtos que vende são ‘velharias’ que compra a filhos e netos de pessoas que já faleceram e que «já não querem as coisas para nada». «As pessoas ligam, ou falam com a gente na feira, isto também porque normalmente distribuímos uns panfletos». Por vezes «são conhecidos, porque são muitos anos a comprar e amigos dizem a amigos», revela. Organizados por caixotes, lê-se: ‘Azulejos 5€’, ‘Postais 2x 1’, vendendo de tudo um pouco.
Francisco, de 75 anos, que os outros feirantes tratam familiarmente por ‘Chico’, frequenta a Feira da Ladra desde que se recorda. Com um sorriso, e debruçado sobre a sua banca, conta-nos que em 2023 faz «23 anos enquanto feirante». Nota-se que é veterano por estas andanças: tem um toldo montado para o proteger a ele e à sua mesa do sol, tornando a sua longa estadia na feira mais agradável. Na sua mesa veem-se várias bandas desenhadas colocadas dentro de um plástico protetor, cada uma devidamente etiquetada com o preço: ‘5€’ e ‘6€’. ‘Chico’, que se assume um colecionador, veio para a feira para vender o excesso que tinha. «Comecei como colecionador, e para me livrar do excesso vim para aqui vender. Entretanto, passado este tempo, ainda não me desfiz disto». Saltam à vista títulos como ‘Super-Homem’ ou ‘Homem-Aranha’, bandas desenhadas que apesar da sua idade apresentam um excelente grau de conservação. As capas de plástico ajudam a mantê-las assim.
‘Está muito pior que estava’
Tal como muitas outras feiras, também a Feira da Ladra foi afetada pela pandemia covid-19. Com a exceção dos meses entre abril e junho, os vendedores estiveram parados devido ao aumento de casos de SARS-CoV-2. Ultrapassada a pandemia, queixam-se de que as vendas diminuíram significativamente. «Isto baixou muito desde a pandemia até agora», afirma ‘Chico’ com um olhar distante posto nas pessoas que passam. O poder de compra das pessoas, diz-nos, também diminuiu, porém considera que esse não é o problema central: «O custo de vida está mais caro, sim, mas de qualquer maneira desde que houve a pandemia isto baixou muito».
Sandra é da mesma opinião. «Notou-se muita diferença», lamenta. Porém, olha para os tempos que correm com esperança: «Está melhor, mesmo com a crise, está melhor!». Acrescenta ainda que quem tem dado uma ajuda são os estrangeiros, que acabam sempre por «comprar alguma coisa». «Independentemente da altura do ano, mesmo no inverno, desde que não esteja a chover torrencialmente», é quem vem de fora que sempre vai fazendo alguma despesa.
José Bernardino, feirante todas as terças-feiras e ‘bate-chapas’ nos restantes dias da semana (exceto ao domingo, que «é dia de descansar») está em sintonia com a sua colega. Apesar da crise, nota uma melhoria em relação à altura da pandemia: «As pessoas que frequentam esta área e este tipo de coisas de feiras, não ligam muito ao dinheiro gostam é das coisas», afirma. E acrescenta que ir a uma feira deste tipo é «muito diferente de ir a um centro comercial». Sem dúvida – a começar pelo facto de estas se realizarem ao ar livre, passando pelo tipo de artigos que se encontra à venda e acabando nas relações que se estabelecem entre vendedores e visitantes.
‘Desde o rico ao mendigo’
José Bernardino sacode as mãos nas calças e despede-se de nós a tempo de acabar de arrumar as coisas antes da chegada dos primeiros clientes interessados nos seus candeeiros e lanternas. Na Feira da Ladra vê-se toda uma variedade de pessoas interessadas naquilo que para outros não tem relevância. Já dizia o ditado ‘o lixo de uns é a riqueza de outros’ e a Feira da Ladra é a prova irrefutável disso. Um casal vasculha um monte de carros de brincar de plástico à procura de um modelo em específico.
O perfil de cada pessoa é diferente, explica-nos ‘Chico’. Os seus clientes ou «são colecionadores ou qualquer pessoa que tenha interesse em ler uma banda desenhada». Por outro lado, os clientes de Sandra são muitas vezes estudantes e académicos. «Já cheguei a vender caixas e caixas a pessoas da universidade […] a partir destas fotografias dá para ver penteados antigos, roupas antigas, carros antigos…», conta-nos enquanto vai apontando para os postais.
Os turistas representam uma fatia cada vez mais larga da clientela e vêm de todas as partes do mundo. A Feira da Ladra aparece nos sites de viagens e é cada vez mais divulgada na internet. O_Lisbon’s Flea Market, como se diz em inglês, cativou o interesse de Benjamin e sua família. Vindos da Bélgica, contam-nos que também eles participam em feiras deste tipo: «A nossa família está ligada a estas coisas. Na Bélgica nós compramos e vendemos». Benjamin acrescenta que a sustentabilidade é também um dos fatores que os motiva a continuar a frequentar estas feiras.
Paulo Vilas, nascido e criado em Lisboa, vem à Feira da Ladra há mais de 40 anos e não é por causa da sustentabilidade. Diz que a feira é «cinema, é cinéfila, tem um pulsar». Enquanto responde às nossas questões, gesticula, entusiasmado. Através destas bancas, diz-nos, «viajei o mundo, vi muito do mundo, apesar de amar Nova Iorque e Berlim não há nada como isto», elogia. «Repare só a descida a pique, o sol, o Tejo lá em baixo!». Se a sua casa é um dos melhores museus, revela, é por aquilo que adquiriu na feira. Tem «à volta de três mil copos» e intitula-se o maior «amante da feira». Até depois de morrer quer continuar por esta zona: «As minhas cinzas vão ser lançadas daquele jardim ali», diz-nos apontando para o jardim Botto Machado.
Mesmo depois de uma pandemia e durante uma crise, a Feira da Ladra, a feira mais antiga de Portugal, persiste. Tanto os feirantes quanto os clientes vão animados, felizes e de bom grado. Como diz José Bernardino, a feira é feita de tudo. E de todos: «Desde o engenheiro ao mendigo, é toda a gente. Uns têm um euro para gastar outros têm cem, quem vem à Feira da Ladra é porque quer e gosta». l
* Texto editado por José Cabrita Saraiva