BAGDADE – Já que estou na terra do Ladrão nada como partir em busca da sua origem. Até porque ter existido um Ladrão de Bagdade dá mau nome à cidade que teve durante muitos anos um patife como Saddam Hussein e tenta agora esquecê-lo à medida que os passos vão sendo dados na reconstrução de um lugar que ficou devastado por guerras sucessivas e isso entra pelos olhos dentro de quem se passeia por entre ruínas, não as de Ur, de Nínive ou da Babilónia, que essas são milenares, mas pelos labirintos da própria Bagdade.
As noites são longas nas Arábias. Mil e uma com Sherezade ou sem ela. De preferência com ela porque ninguém contribuiu tanto para que esta se tornasse uma terra de encantos muitas e muitas centenas de anos antes de se tornar uma terra de pesadelos. Como o Homem é Homem seja em que século for, carregado com as virtudes e defeitos que um deus qualquer resolveu atribuir-lhe à sua imagem e semelhança, o rei Shariar da antiga Pérsia era ciumento da ponta dos cabelos às unhas dos pés. Talvez fosse um daqueles chatos inimitáveis incapaz de entreter uma mulher, pelo que se viu traído pela sua com a facilidade com que os camelos passavam pelos buracos das agulhas. Um dramalhão! Shariar rasgou as vestes, chorou lágrimas em quantidade suficiente para fazer transbordar o Tigre e o Eufrates ao mesmo tempo, mergulhou numa depressão levada da breca e, mal recuperou dela, tratou de fazer executar a mulher e o amante que, ainda por cima, não passava de um mero servente do seu palácio. As mortes acalmaram-lhe a ira e começou a fazer planos para se casar outra vez, que nisso os reis da Pérsia eram muito dados a haréns. Decidiu, pelo caminho, que para evitar novas traições, todos os dias desposaria uma mulher e, depois de uma noite juntos, faria decapitá-la na manhã seguinte. Remédio santo para quem a cabeça lhe pesava por via daquilo que na linguagem popularucha se chama um par de cornos.
Sherazade foi a primeira escolhida. E Shariar ficou a saber o verdadeiro termo da lábia feminina. Não dormiu um segundo na primeira noite que deveria ser igualmente a última porque a sua nova esposa resolveu contar-lhe uma longa história e o sol nasceu sem que a narrativa tivesse chegado ao fim. A curiosidade do rei para conhecer o desenvolvimento dos acontecimentos era tanta que concedeu a Sherezade mais uma noite para que ela pudesse acabar de contar a aventura que tanto o cativou.
A imaginação de Sherezade não tinha limites. Por isso é que a noite que devia ter sido primeira e única de núpcias com o bastante macabro marido ganhou mais mil em seguida, isto que a gente saiba, porque mil e uma foi assim como que um número atirado para o ar para entreter pacóvios. Imagino, mas isto sou eu a supor, que se o rei da Pérsia passava noites a fio a ouvir histórias não terá tido grande oportunidade para actividades sexuais próprias de recém-casados, pormenor que ainda valoriza mais a lábia da mulher. Bem se enganou quem nisso acreditou.
Ora bem, vamos lá por partes. Entretenho-me na escrita à medida que o dia vai caminhando para o fim sentado num café vizinho à Universidade que se encaixa num recesso que o rio Tigre forma com duas curvas sucessivas. Lembro-me da frase que marcou a personalidade do Ahmed, a personagem principal da trama, um fanfarrão que dizia para quem o queria ouvir: «Aquilo que eu quiser terei!». Roubava o que podia envolto na escuridão das noites. Até que, inevitavelmente – este inevitavelmente encaixa na perfeição em tudo o que for romance ou conto – ao percorrer com maus instintos o palácio do califa entrou no quarto da filha do figurão e apaixonou-se fulminantemente pela rapariguinha que dormia o sono dos justos. Nesta matéria de lendas e mitos há aquilo que cada um vai distribuindo pelos que os escutam e uma verdade que lhe fica por cima como o manto diáfano do divino Eça. O pai da dorminhoca que fez o coração de Ahmed bater com uma força inusitada, parecendo que estava disposto para sair-lhe pela garganta, era um homem de grande poder chamado Abu Ja’far Harun ibn Muhammad al-Mahdi , califa abássida entre os anos de 786 e 809, data da sua morte. No Iraque é tido como um magnífico benfeitor: foi ele que fundou Bayt al-Hikma, A Casa da Sabedoria, uma biblioteca extraordinária, e manteve uma relação à distância com Carlos Magno, procurando trazer para o seu país muita da sabedoria dos estudiosos europeus. Diga-se de permeio que, se não fosse por causa de As Mil e Uma Noites, Harun teria caído no fundo do poço do olvido. À boa maneira dos califas do seu tempo acumulou mulheres, amantes, concubinas, aquilo que lhes queiram chamar, e teve filhos em barda, Sherezade incluída.
O bom trafulha
Toda a gente sabe que a história de Sherezade, a contadora de histórias, acabou em bem. Shariar ouviu uma infinidade de contos enquanto o carrasco que deveria separar à machadada a cabeça do corpo da rapariga ficava à espera de notícias. Ao fim de mil uma noites, Sherazade teve o atrevimento de se impor: «Já se passaram mais de mil noites desde que estamos casados, agora chegou o momento de conhecer os filhos que tivemos entretanto e de me mandar para o cadafalso». O amor tem destas coisas: apaixonado e fascinado pela mulher, Shariar deixou-se de ideias parvas e de vícios sanguinários vivendo com a esposa dias ditosos.
Por seu lado, Ahmed, tornava-se cada vez mais ousado. Uma noite não teve pejo em trepar por uma corda mágica e insinuar-se no palácio do califa Abu Ja’far Harun ibn Muhammad al-Mahdi, percorrer salas e corredores até entrar no quarto da filha deste e decidido a raptá-la. A miúda não esteve pelos ajustes, gritou «Ò da guarda!» e Ahmed deu às de Vila-Diogo perseguido por um grupo de mongóis mais mal encarados do que o próprio Mafoma. Irritado consigo mesmo e com o mundo inteiro, Ahmed repetiu para consigo: «Tudo o que quiser terei!» E gizou outro plano.
Ahmed, o Ladrão de Bagdade, tinha um amigo íntimo chamado Adu que era uma espécie de Grilo Falante da história do Pinóquio mas às avessas. Isto é, em vez de lhe dar conselhos que o levassem por bons caminhos espicaçava-o para as maiores futriquices.
Desta vez, Ahmed foi mais vivaço. Sabendo que a princesa fazia anos e iria escolher um homem para seu marido – aquele que entre os pretendentes tocasse primeiro numa das suas rosas de um vermelho-inimitável, disfarçou-se de homem poderoso, carregado de sedas, e apresentou-se no meio dos outros candidatos, o elegante Príncipe das Índias, um anafado Príncipe da Pérsia, e o façanhudo Prícipe dos Mongóis. Todos passaram pela roseira sem lhe tocar mas, avisado por um dos seus criados sobre a promessa da princesa, o mongol preparava-se para colher uma rosa quando, num gesto absolutamente dramático, Ahmed esporeou o cavalo e recolheu a flor primeiro. Um movimento que caía como uma luva de pelica no canastrão que foi Douglas Fairbanks, o primeiro Ladrão de Bagdade das telas de cinema, em 1924, embora na versão de 1940, dirigida por Michael Powell e com argumento de Alexnder Korda, John Justinian de Ledesma, o filho de um inglês proprietário de um ror de cabeças de gado na Argentina, tenha sido capaz de ser ainda mais canastrão de que Fairbanks, o que é obra!
O lugar de parceiro da princesa e futuro homem mais poderoso da nação continuava em aberto, porque o bufo do Príncipe dos Mongóis continuou na ser um esbirro do pior e foi fazer queixinhas ao rei aconselhando-o a enfiar Ahmed numa masmorra já que era um indiscutível aldrabão de primeira classe.
Palavra puxa palavra
Não restam dúvidas que Ahmed, a dar-se o caso de ter realmente existido, além de atrevido até à protérvia era um cara de pau bem caçado. Falamos de um tempo em que as histórias iam de boca em boca e de memória a memória. Numa delas, o Ladrão de Bagdad perde o protagonismo para um mamífero chamado Jaffar que faz evoluir toda a trama da lenda. Claro que em histórias como esta o importante é que o herói acabe a sua vida lado a lado com a heroína habitando um T3 nas Olaias e produzindo um ror de filhos. Quem diz nas Olaias diz a ilha de Um Al-Khanzir, exposta num dos cotovelos do Tigre e onde me sento numa esplanada a beber um enjoativamente doce chá de hibisco.
Este é um universo de gente tão rica que só faltava que não existissem ladrões por toda a parte. Na parte que me toca não posso queixar-me muito. Ninguém me roubou um tostão que fosse, mas é o cabo dos trabalhos para negociar o que quer que seja porque há sempre uma figura tutelar que manda nos que negoceiam connosco e quer a maior parte do bolo. Exige paciência. Muita paciência. E boa disposição – nada como um sorriso para deitar abaixo uma relativamente bem programada ideia de extorsão.
Ora bem, se um ladrão incomoda muita gente, quarenta ladrões incomodam muito mais. É nesta altura que passamos de uma lenda para outra e conhecemos Ali Babá, um tipo cuja missão era viajar por todos os cantos do reino da Pérsia e recolher material para depois revelar ao rei. Enfim, mais um bufo. Só que este era dos quadros, por assim dizer, com contrato assinado e tudo e tudo. Passaram-se anos e anos e anos e toda a gente conhece a história de Ali Babá e os 40 Ladrões. Ali Babá não é um herói de coisa nenhuma, há que reconhecer. Na verdade limitou-se a espiolhar um bando de canalhas pouco recomendáveis e perceber que tinham uma palavra-passe para abrir um buraco numa montanha e no fundo do qual jazia um tesouro de esbugalhar os olhos a toda a família Rockfeller. «Abre-te Sésamo!», gritou ele quando se sentiu seguro, imaginando que os salafrários estavam longe o suficiente para não lhe provocarem sarilhos. Se o Ladrão de Bagdade ficou com essa alcunha de Ladrão só por ter pilhado uma rosa do canteiro da princesa que, aqui para nós, o entalou de tal forma que o obrigou a um casamento apenas por interesse, já que ninguém vai na conversa de que se terá apaixonado pelo simples motivo de ver a garota adormecida e com um sorriso nos lábios provocado por um sonho mais agradável ou mais húmido, vá lá saber-se, Ali Babá devia ter sido tatuado na testa com a palavra gatuno, lapim, larápio ou malandrim por ter deitado a mão a uma considerável porção do tesouro que tanto tinha custado a rapinar aos 40 ladrões. Mas, ao contrário do seu colega, teve o azar de ser topado por um dos ladrões mais molenga que tinha ficado para trás do bando e o viu, com os olhos que a terra comeu, sair da caverna ajaezado de joias como um burro da Judeia. O final da narrativa é um bocado à trouxe-mouxe mas, lá está, são histórias passadas de boca em boca e não obras literárias de fôlego, a despeito de terem surgido mais tarde em livros e em filmes. Parece que, depois de Ali Babá ter convencido a princesa da Pérsia (a Pérsia teve mais princesas do que os coelhos têm filhos) a casar-se com ele, erguendo um palácio de deixar um boi embasbacado onde viverem juntos (quais T3 nas Olaias qual carapuça!), os 40 Ladrões lembraram de se esconder em barricas de vinho durante a festa da boda de forma a saltarem cá para fora de surpresa e darem o tratamento que Ali bem merecia por ser pilha-galinhas. Mais um bufo (nestas histórias das arábias há sempre bufos) tratou de se chegar à frente e avisar Ali Babá do que se planeava. E este, com a desculpa que o vinho das pipas estaria estragado, pôs os criados a empurrá-las por um desfiladeiro abaixo levando no bojo os desgraçados dos ladrões.
Sentado frente a frente com o meu chá de hibisco dou voltas à moleirinha para perceber o fascínio que esta gente das Mil e Uma Noites tinha por ladrões. Há que considerar que tais aventuras serviam para traçar um risco entre o bem e o mal, algo que as crianças precisavam de aprender de uma maneira lúdica. Enquanto negoceio o preço de uma viagem de 400 quilómetros entre Bagadad e a antiga Nínive, A Maior de Todas as Cidades, segundo as escrituras, fico a contar com o momento em que qualquer dos meus interlocutores decidirá ir-me aos bolsos. Não parecem para aí virados. É gente simpática. E também não levavam grande coisa. Viajo sempre com o menos dinheiro possível. Os ladrões se quiserem que trabalhem. A vida deles não é assim tão dura.