Por Luís Menezes Leitão
Há um princípio básico do Direito Público que é o princípio da competência. Ao contrário dos cidadãos privados, que têm liberdade de fazer tudo aquilo que não lhes seja proibido por lei, os poderes públicos só podem praticar os actos para os quais a lei lhes atribua competência. Se algum órgão do Estado pratica actos que extravasam das suas competências, está a actuar à margem da lei. Se esse órgão for o Serviço de Informações de Segurança (SIS), a situação assume especial gravidade. A Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa refere expressamente no seu art. 2º que as finalidades desses serviços «realizam-se exclusivamente mediante as atribuições e competências dos serviços previstos na presente lei».
É, por isso, absolutamente inconcebível que o SIS possa ser utilizado para contactar um adjunto acabado de demitir por um ministro do seu gabinete, exigindo-lhe um funcionário a entrega de um computador na via pública. Na verdade, o art. 3º da Lei-Quadro refere expressamente que «não podem ser desenvolvidas actividades de pesquisa, processamento e difusão de informações que envolvam ameaça ou ofensa aos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição e na lei». E o seu art. 4º acrescenta que «os funcionários ou agentes, civis ou militares, dos serviços de informações previstos na presente lei não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais». Ora, se foi participada à Polícia Judiciária a subtracção pelo adjunto de um computador do Ministério, é manifesto que o SIS não se pode antecipar à Polícia Judiciária e recolher ele próprio o computador, exigindo a sua entrega ao seu possuidor. Se isto não é uma medida de polícia, cabe perguntar o que será uma medida de polícia. Aliás, basta ver que a própria Polícia Judiciária solicitou depois o computador ao adjunto, tendo ele referido que já o tinha entregue ao SIS…
Mas o mais preocupante é o extraordinário comunicado que foi feito pelo Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informação. No entender deste Conselho «não existem indícios que sustentem ter sido adotada pelo SIS qualquer medida de polícia aquando da recuperação do computador em causa: tudo aponta no sentido de o computador ter sido entregue voluntariamente por quem o detinha, na via pública, portanto fora do contexto do seu domicílio, e sem recurso a qualquer meio coercivo ou legalmente vedado». E por isso esse Conselho refere que «os elementos recolhidos não permitem concluir ter havido uma atuação ilegal por parte do SIS, mormente qualquer violação de direitos, liberdades e garantias».
O Conselho de Fiscalização deveria explicar que elementos podem sustentar esta conclusão, quando o adjunto nem sequer foi ouvido. Para além disso, questiona-se como é que um contacto dos serviços de informação a um cidadão para lhe solicitar a entrega de um computador não constitui uma forma de pressão sobre o mesmo. Em terceiro lugar pergunta-se se, referindo o art. 21º da Lei-Quadro que «o Serviço de Informações de Segurança é o organismo incumbido da produção de informações que contribuam para a salvaguarda da segurança interna e a prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem e a prática de actos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de direito constitucionalmente estabelecido», onde é que a recuperação de computadores se insere neste âmbito. E finalmente, questiona-se se a actuação do funcionário do SIS não viola o art. 29º da Lei-Quadro que refere que «os funcionários e agentes, civis ou militares, dos serviços de informações não podem prevalecer-se da sua qualidade, do seu posto ou da sua função para qualquer acção de natureza diversa da estabelecida no âmbito do respectivo serviço». Nenhuma destas questões é esclarecida pelo Conselho de Fiscalização no comunicado que publicou.
O art. 8º, nº2 da Lei-Quadro exige que o perfil dos membros do Conselho de Fiscalização «dê garantias de respeitar, durante o exercício de funções e após a cessação destas, os deveres decorrentes do cargo, nomeadamente os de independência, imparcialidade e discrição», obrigando aliás o art. 8º-A a um registo de interesses. Parece, no entanto, que não há qualquer problema em eleger para o Conselho de Fiscalização antigos governantes, que estiveram enquanto tal subordinados ao actual primeiro-ministro, não constituindo essa situação qualquer incompatibilidade.
Como bem referiu o Presidente da República, estão em causa neste caso «os serviços mais sensíveis da segurança nacional, que, aliás, por definição, estão ao serviço do Estado e não de governos». A actuação dos serviços de informação fora das suas competências constitui um grave risco para os direitos fundamentais das pessoas. E o mais preocupante é não estar a existir uma fiscalização eficaz do seu funcionamento.