Goste-se ou não do estilo de Cavaco Silva, haverá que reconhecer que fez história a sua intervenção a fechar o Encontro Nacional dos Autarcas Social Democratas.
Cavaco foi cirúrgico, tanto no timing escolhido para se pronunciar sobre a degradação do Governo, como na forma e na substância da mensagem.
Falou, naturalmente, para o interior do PSD e para o universo dos seus autarcas. Porém, interessou-lhe, sobretudo, interpelar os portugueses sobre uma paisagem política desoladora, protagonizada por um primeiro ministro sem autoridade, por um governo desacreditado e falho de ética e por uma administração pública obesa e ineficaz.
Numa intervenção de fundo, meticulosa e bem estruturada, Cavaco escalpelizou e tocou, uma a uma, as teclas mais desgastadas da governação socialista, sem esquecer o dossiê TAP e a arrepiante baderna no Ministério das Infraestruturas.
Não há memória de ouvir Cavaco criticar António Costa, de uma forma tão acutilante, pela sua incapacidade de coordenar o Governo, responsabilizando-o pelo continuado empobrecimento do país.
Demolidor, Cavaco não se inibiu de acusar o Executivo de que «passa os dias a mentir» e que nunca pensou que fosse possível «descer tão baixo em matéria de ética».
Mas a ‘estocada florentina’ surgiria quando o ex-Presidente lembrou, cáustico, que, às vezes, devido a «um rebate de consciência, os primeiros-ministros decidem apresentar o seu pedido demissão», perante o desnorte, o populismo e as trapalhadas reinantes.
O recado estava dado, com a plateia de autarcas rendidos a Cavaco. E Luís Montenegro, elogiado pela sobriedade e acerto na estratégia seguida, arrecadou uma alavancagem preciosa para a sua liderança.
Os ecos do discurso de Cavaco, duro e irrefutável, vão decerto perdurar e o nervosismo do governo e do PS não poderia ser mais notório.
A reação descosida e ‘mal-amanhada’ do líder parlamentar socialista, Eurico Brilhante Dias, foi bem elucidativa. Para desgraça da bancada parlamentar que chefia, trata-se de um deputado que só é ‘brilhante’ de apelido. Um vazio.
Note-se que Cavaco não esqueceu, também, Pedro Passos Coelho, tão maltratado pelo PS, que lhe endossou um país em bancarrota, sujeito ainda ao memorando negociado in extremis por Sócrates. E fez questão de homenageá-lo pela forma corajosa como atuou, recordando os «ataques vergonhosos e miseráveis» com que foi vilipendiado pelos socialistas.
Por sinal, um desses ataques, foi a carta aberta encabeçada por Mário Soares, em 2012, e subscrita por um grupo de ‘personalidades’, onde figuravam Pedro Nuno Santos, João Galamba, Duarte Cordeiro ou Ferro Rodrigues.
Nessa altura ninguém achou no PS ‘antidemocrática’ a iniciativa do fundador e ex-Presidente, na qual se sugeria que Passos Coelho se demitisse. Maior hipocrisia é difícil.
Sem meias-tintas, Cavaco não hesitou em apontar o PSD como «a única opção credível» para quem queira «libertar o país do PS e de uma oligarquia que se julga dona do Estado». E passou uma ‘certidão de óbito’ político ao primeiro-ministro e ao Governo.
Calculista, António Costa soube furtar-se à polémica com Cavaco, e comparecer no debate parlamentar com à partes e, amiúde, com uma leveza como se estivesse no recreio da escola a falar para crianças.
Ao defender a alternativa social democrata, Cavaco soube escolher a ‘janela de oportunidade’, e disse o óbvio a seguir à penosa audição do ministro João Galamba na CPI da TAP. E foi isso que causou engulhos nas hostes do PS.
A balbúrdia no Ministério das Infraestruturas, com cenas típicas dos westerns da série B, ilustrou bem o estado deplorável em que mergulhou o Governo, que o Presidente amparou durante tempo demais, ficando agora com a ‘batata quente’ nas mãos.
Quase meio século volvido sobre o 25 de Abril, o país assiste, atónito, a uma crise política profunda – e nada artificial, ao contrário do que pretende Costa – que ameaça as instituições e põe em causa a democracia, já flagelada por populismos, à esquerda e à direita, que são o sintoma do descontentamento latente.
Agravaram-se as assimetrias sociais e as desigualdades, a política entrou no domínio da bandalheira, antecâmara do ‘salve-se quem puder’ quando as coisas ‘dão para o torto’.
Costa não senta à mesa do Conselho de Ministros um governo, mas um séquito de amigos e prosélitos que, com raras exceções, estão ali para satisfazer as suas ambições e não as necessidades do país.
O crescimento anémico de Portugal, que ocupa os últimos lugares do ranking europeu do PIB per capita, traduz bem o atraso em relação ao ‘pelotão da frente’ dos 27, apesar dos milhares de milhões irrepetíveis, oriundos de Bruxelas.
Os escândalos somam-se a novos escândalos. O pântano de que fugiu Guterres existe… e não se recomenda.
Nota em rodapé – Esta coluna vai de férias, reaparecendo no dia 16 de junho.