Se há pessoa polivalente é a Soraia. Canta, representa, toca, dança, faz dobragens, em pequena desenhava, construía peças de barro… Como pode alguém ser tanta coisa ao mesmo tempo? (risos) É verdade! Eu acho que, cada vez mais, tenho tentado afunilar a ideia de que sou artista, em vez de estar a pensar que sou cantora, ou atriz, que só tenho uma realidade. É nessas duas profissões que me revejo. Mas quando era atriz sentia sempre que era vista como uma cantora, e depois, como cantora, achava que era vista como atriz. Na realidade, acho que era eu, insegura, a não me posicionar como sendo somente uma artista. Não quero que me ponham em caixinhas ou que me façam escolher entre as coisas que eu gosto de fazer. E depois comecei também a mostrar que, artisticamente, ainda sou mais polivalente. Ainda gosto de fazer mais coisas e é por isso que agradeço. Acho que tudo o que tenha relação com a arte em si interessa-me.
E existe uma grande diferença entre a Soraia artista e a Soraia pessoa?
Acho que é muito difícil existir uma diferença assim tão grande, porque que para ser artista é preciso haver uma grande entrega interior, a entrega do ‘eu’. Até porque aquilo que eu faço enquanto profissão acabam por ser também os meus hobbies. Mas, se calhar, diria que a nível de personalidade, a forma como me posiciono publicamente pode ser um pouco diferente daquilo que sou no meu eu privado. Ainda assim, aquilo que eu sou publicamente é uma parte de mim e, por isso, não consigo separar muito bem as águas. Acho que a Soraia artista é só uma extensão daquilo que eu sou.
Porque no nosso país tendem sempre a rotular muito os artistas? Sente que, juntamente com outros colegas, está a conseguir mudar um bocadinho essa mentalidade?
Diria que sim. Sempre em conjunto, porque também não conseguimos fazer nada sozinhos. Acho que a internet e as redes sociais ajudam muito. Fazem-nos, de repente, ver coisas que acontecem lá fora e que dão certo. Fazem-nos, por isso, também dar passos nesse sentido. E acho que há cada vez mais artistas atores a cantarem, cada vez mais cantores a interpretarem, artistas plásticos a enveredar por outras vertentes… Somos cada vez menos rotulados. Parece que não há tantas fronteiras e nós vemos tanta coisa, temos tanta informação que acabamos também por conseguir levar mais longe a nossa arte. Acho que os artistas são cada vez mais polivalentes.
Até porque quanto mais completo for, mais um artista tem algo que o distingue dos outros…
Sim! Acho que quantas mais coisas fizeres, quantos mais skills tiveres, melhor será para a tua profissão. Isso acontece em qualquer área. Ao mesmo tempo, às vezes, acredito que isso nos dispersa. Às vezes é bom ficarmos e focarmo-nos numa coisa só. Fazer várias coisas ao mesmo tempo, pode impedir-nos de levar mais longe uma delas. Costumo dizer que a minha vida de atriz atrapalha a minha vida de cantora e vice-versa. Se calhar, enquanto cantora, não me dediquei mais depois de lançar o meu primeiro single, porque comecei a trabalhar como atriz em projetos que eu queria muito fazer. É por isso que quero ver-me cada vez mais como artista e não dividir os caminhos. No fim, acabo por perceber que estou a trabalhar e a viver para aquilo que eu gosto, a arte.
Em pequena sempre foi criativa, mas nunca lhe passou pela cabeça ser artista. Foram os testes psicotécnicos que lhe deram essa luz…
Sempre estive ligada às artes, de todas as formas. A minha mãe sempre me incentivou muito a dançar, sempre gostei muito de desenhar, sempre cantei… Só que, que como tirava boas notas a tudo, tinha na ideia que tinha de fazer alguma coisa relacionada com gestão ou jornalismo. Não sei mesmo de onde vinha este pensamento… Isso era o que eu pensava até ao dia em que os testes psicotécnicos disseram: ‘Não, tu tens que ser artista! Tu levas todos os teus trabalhos para a vertente artística’. Vi-me de fora pela primeira vez. De repente, quando falo da Escola de Teatro de Cascais à minha mãe e ela própria diz que esse é o meu caminho, fiquei surpreendida, mas fui. Percebi imediatamente o porquê.
Acha que esse pensamento podia vir de ter a noção do quão precário consegue ser esse universo?
Não, não tinha essa noção. Aliás, para mim, todas as pessoas que eu via na televisão eram ricas. Era mesmo o que eu achava: que os artistas eram todos ricos. Tenho uma história engraçada com os meus vizinhos pequenininhos. Agora já são crescidos, mas a primeira vez que eu comecei a surgir na televisão, vieram a correr atrás do meu carro e a primeira coisa que eles me perguntaram foi: ‘Soraia, tu agora és rica?’. Quando era pequena tinha também aquela perceção. Acho que até a minha mãe também tinha essa perceção (risos).
Isto tudo significa que de alguma maneira foi a profissão que a escolheu …
Durante muito tempo dizia isso. Aliás, não que a profissão me escolheu, mas que os projetos me escolhiam. Quando as pessoas perguntavam como é que eu fazia a gestão das minhas polivalências, na realidade não fazia a gestão. Era os projetos que apareciam, também não estava numa fase de ‘nãos’. Nessa altura ainda não tinha tantas oportunidades, ia agarrando dentro daquilo que gosto de fazer. Umas vezes com mais dobragens, outras com mais espetáculos, televisão, gravar uma canção para outro artista… Isto da música e dos meus originais, veio bastante tarde. Durante muito tempo neguei que queria ser uma cantora de originais. Vim cá parar. Foi sempre a vida que foi escolhendo para mim e eu fui aceitando.
E a sua ideia sobre aquilo que é a arte tem-se transformado ao longo do tempo?
Sim, tem-se transformado muito. Até porque a escola de teatro que eu conheci era muito fechada. Aquilo é na Amoreira, fica ali no meio do nada e então parece que a arte é só aquilo. E depois, quando nós acabamos a escola, é que começamos a perceber profissionalmente como é que as coisas funcionam. Quando nós estamos a fazer aquela escola, a sensação que dá é que só queremos ser bons atores, queremos ler Shakespeare. Ao sair, começamos a conhecer outros estilos teatrais, outras pessoas que chegam de outras escolas. Só entrando na área é que se começa a ter a perceção daquilo que é este mundo.
Começou no teatro, só depois passou para a televisão. Como é que se dá esse salto? Porque são dois mundos completamente diferentes…
Eu não sei bem como é que se dá esse salto… Talvez tenha sido com o The Voice, enquanto concorrente… Participei num programa de entretenimento porque queria ter resultados enquanto atriz de teatro. Achava que se conseguisse ter mais visibilidade conseguiria ter os papéis de mais visibilidade também nos espetáculos. E acho que foi natural… Andava numa agência, depois surgiram outros castings.
E sente-se muito diferente a pisar as tábuas de madeira e a ser filmada para televisão ou cinema?
Muito! É muito diferente. Acho que tenho muito mais experiência no que toca ao teatro do que a trabalho de câmara, apesar de ultimamente ter feito mais isso. Mas é muito diferente o nível de energia. Eu gosto de pensar que no teatro temos um plano aberto e, por isso, temos que dar mais e temos que ser mais energéticos. Depois chega a televisão, parece que o plano vai afunilando um bocadinho e aí temos que conter um bocadinho a energia, porque a câmara capta tudo. E chegamos ao cinema onde temos cenas onde tem de haver mesmo muita sensibilidade naquilo que queremos ou não passar para a câmara. Aí é preciso haver um relaxamento total. Enquanto no teatro acho que, às vezes ,a tensão pode levar-nos a sítios bastante interessantes.
Sente que, nesta altura, está a começar a viver um bocado do sonho que cantou no The Voice? A música que escolheu foi o ‘I Dreamed a Dream’, do filme Os Miseráveis.
Sim, em comparação com o que era, cheguei a um pouco mais alto. O caminho foi feito de ‘subir degraus’ e estou a ficar muito contente nesse sentido. Vou conquistando aos poucos, não quero ultrapassar fases. Estou a a viver o sonho da menina o The Voice.
Não venceu esse programa, mas em 2019 venceu A Tua Cara Não Me é Estranha. Essa foi a melhor montra para se mostrar ao país?
Acho que no programa consegui fazer todas as coisas de que eu gosto artisticamente. Mas fazer aquele programa foi muito, muito exigente. Era um trabalho muito solitário e acho que foi por isso que eu gostei mais de fazer o Dança Com as Estrelas. Tinha um colega, o bailarino. Sentia-me mais acompanhada e sentia o gosto do trabalho de equipa. Adoro o processo… Às vezes gosto mais do processo até do que depois do resultado final dos espetáculos, por exemplo. Ali senti que era tudo muito ‘eu’. Mas pronto, acabei por ganhar!
E relativamente às questões raciais… Sente que ainda há pouca representatividade na televisão portuguesa?
Sim, sinto. Às vezes sinto que, para a televisão, o movimento Black Lives Matter não existiu. Sinto que devíamos estar mais representados e é dos assuntos mais importantes neste momento. O meu caminho também contribui para isso. Muitas pessoas se sentem representadas através daquilo que eu faço. Isso dá-me muita responsabilidade, mas é importante. Durante muito tempo não me apercebi disso. De repente olho para trás e sempre tive gente da comunidade africana a olhar para mim como um exemplo. Isso deixa-me nervosa, mas muito orgulhosa.
E dentro dessa máquina, esses assuntos não são falados?
São, são falados. O artista, em geral, é sensível e tem capacidade de ouvir e de falar sobre algumas questões. Mas não são eles que estão à frente das coisas.
Existe uma resistência?
Talvez. Mas mais do que ‘estou a pôr-te de parte’, acho que as pessoas não veem. Quando uma coisa corre bem, temos tendência a querer fazer exatamente da mesma forma. Acho que é isso que acontece na televisão. Depois, tornamo-nos repetitivos. Os mesmos produtos, com as mesmas pessoas. Entra-se num loop.
Também no cinema existe essa falta de representatividade e a Soraia vai dar voz à Pequena Sereia, no novo filme da Disney, que estreou na quinta-feira. Como tem visto toda esta polémica em torno da protagonista ser negra?
Primeiro, acho que há um lado em mim que consegue perceber o porquê de fazer confusão a algumas pessoas que de repente aquela personagem seja de outra cor. Isto tem a ver com o nosso imaginário e nós crescemos a ver determinada personagem de determinada maneira e não gostamos quando a alteram. Isso pode mexer connosco. Portanto, eu consigo entender que haja alguma resistência nesse sentido. Agora, o que eu não consigo entender é como é que há um ataque gigante a uma atriz que é negra e à volta de um produto que, na realidade, vai-nos contar exatamente a mesma história, vai-nos fazer sentir as mesmas coisas com o acrescento de que muitas crianças se vão sentir representadas. Estamos a pegar numa das personagens mais icónicas da Disney e a dizer que esta personagem pode ser negra, chinesa, pode ser aquilo que nós quisermos, porque realmente não é a cor da pele que conta esta história. Acho que a cor da pele conta muitas histórias e, neste momento, a cor da pele da Ariel conta a história de muitas meninas que se querem sentir representadas. E para mim, ver aqueles vídeos de meninas negras a olharem para o trailer e a primeira coisa que dizem é ‘ela é como eu’, faz-me sentir que gostaria de ter vivido isso em pequena. De ter olhado para a televisão e sentido que eu podia estar ali… É por isso que, às vezes, me vejo como uma heroína por não o ter visto e por mesmo assim ter tentado.
Quando era mais nova queria ser diferente?
Queria. Achava que era uma desvantagem para mim ser negra. Não via quase ninguém no meio. A Sara Tavares era uma grande referência para mim, a Patrícia Bull, a Cláudia Semedo… Mas nunca imaginei que conseguiria chegar lá. Acho que também está muito relacionado com essa falta de visibilidade: por não ver, não acreditava. Se calhar era também uma forma de me proteger.
Como lida com as personagens, com as transformações que tem que sofrer com elas?
Acho que lido bastante bem, porque penso um bocadinho no resultado final. Para mim até é mais fácil mudar fisicamente ou estudar para qualquer coisa, se eu souber que tenho uma personagem. Digo muitas vezes que gostava de rapar o cabelo, mas para uma personagem. O meu desejo é poder ver-me na tela totalmente diferente daquilo que eu sou na vida.
Porque às vezes se levam os fantasmas das personagens para casa?
Sim. Os personagens às vezes tiram-nos coisas. Já me tiraram, já tiraram bastante. Acho que nos momentos em que temos de fazer assim personagens mais depressivos, é mais complicado. Já tive um personagem num espetáculo que falava de violação, encenado pela Graça Correia. Nessa fase andava realmente mais cabisbaixa, muito mais cansada, também estava a fazer uma série ao mesmo tempo. Emocionalmente acho que o espetáculo me deixava mais exausta, por ser mais intenso.
Como falávamos no princípio, também é apaixonada pela música. Qual é a relação que tem com cada uma das suas canções? Diz que sempre que lança um single, já está a pensar no próximo…
Eu disse isso, não disse? (risos) Sei lá… Quando nós fazemos uma canção, é um processo até a lançar… Às vezes dura meses… Eu sou um bocadinho ansiosa e quando escrevo a canção, dá-me a sensação de: ‘Ok! Está feito! Next!’. Quando a vou lançar, já não a posso mais ouvir. O mesmo não está a acontecer com a ‘Dona Joana’. Gosto mesmo de a ouvir aos altos berros no carro! Com o álbum A Culpa é da Lua, que saiu no dia 19, está a ser diferente. Estou muito contente com o processo todo e não estou preocupada. Claro que fico nervosa, mas estou tranquila. É o meu primeiro, e digam o que disserem, é mesmo muito especial para mim.
E o que lhe apetece dizer sobre este ‘filho’?
Vou explicar um bocadinho a estrutura do álbum, porque acho que é a melhor maneira de o dar a conhecer. Começa mais com Neo Soul e R&B e quando chega à faixa do meio, à música ‘A Beleza vai Mudar o Mundo’, começa a ser mais Afro. Há pouco tempo, num trabalho, consegui revisitar de outra forma as minhas raízes e escrevi muita coisa em crioulo. Acho que foi um aceitar que a minha voz em crioulo tem outra alma. Eu não me julgo tanto quando escrevo nessa língua, enquanto em português eu julgo imenso as palavras. Em crioulo as coisas saem mais naturalmente e, por isso, é um álbum que é feito das coisas que eu ouvia em miúda, das coisas que eu ouço neste momento e do português porque é a minha língua materna.
E como é funcionam os seus processos criativos?
Às vezes escrevo um poema e depois acabo por musicar. Por exemplo, a ‘Dona Joana’ foi assim. Escrevi o poema primeiro e depois comecei a musicá-lo na minha cabeça. ‘As Cinco Coisas que Nunca te Disse’ também foi assim. Mas tenho outras canções em que trabalhei com produtores que gosto muito. Eles enviam-me uma coisa porque sentem que é para mim. Aí, escrevo por cima de um instrumental. Agora, o processo que eu mais gosto é quando escrevo primeiro. Torna-se mais pessoal. Sou mais eu.
Enquanto compositora, é mais fácil cantar as dores do que as alegrias?
Os temas serem sempre sobre dores, não é? Acho que sim. A dor leva-nos para outros sítios. Acho que é na dor que fazemos as obras que mais nos tocam.
E quais são os seus projetos futuros? O que gostaria de fazer agora?
Agora vou estar uns meses no Teatro da Trindade com o espetáculo Um Sonho Numa Noite de Verão, um musical encenado pelo Diogo Infante. Vou aproveitar o meu álbum, tenho dois concertos marcados e quero ter mais… Tenho é de perceber como gerir tudo isso. O que eu anseio enquanto cantora é que as pessoas ouçam o meu álbum. Mais do que me ouvir ao vivo, gostava mesmo que as pessoas o ouvissem. Quero que tenham essa vontade. Mas claro que gostava que o meu 2024 fosse carregadinho de concertos, sem deixar de ser de atriz! (risos) Quero continuar a conseguir gerir tudo.
E acredita mesmo que a beleza vai mudar o mundo?
Acredito. Eu acredito que a beleza está a mudar o mundo. É a bondade que vai mudar o mundo e para mim, quando falo de beleza, é à bondade que me refiro. Claro que é sempre algo interior!