Vamos lá, continuemos a viagem pelas utilidades, pelas promessas – umas verdadeiras, outras de que duvido muito, como já se viu aqui há duas semanas – e pelos perigos e armadilhas da inteligência artificial (a nova menina de muitos olhos) no campo da justiça. Por exemplo, há quem aponte muitas virtudes, no campo preditivo, a um algoritmo (ou parecido) para penas, porque isso geraria previsibilidade e também porque haveria juízes com critérios muito díspares e, até, maus juízes, coisa que assim, com o algoritmo, se mandaria para bem longe. Ora bem: primeiro, tenho dúvidas de que um eventual ganho de previsibilidade justifique correr o risco da perda de humanidade, com a troca entre um perfeito algoritmo e um imperfeito ser humano; e, em segundo lugar, critérios díspares e maus juízes resolvem-se, não tanto com inteligência artificial, mas mais com inteligência sensata e com mão firme, o mesmo é dizer, com boa jurisprudência, com escrutínio e com disciplina. Aliás, estas coisas de colocar a inovação a resolver problemas comportamentais dá-me sempre uma sensação entre o desgosto e o riso, desgosto porque revela tibieza de quem é responsável e porque beneficia o infrator, e riso porque representa uma crença um pouco atoleimada nas virtudes do ‘progresso’ para não enfrentar realmente os problemas. Para já não falar na gravidez ululante de ‘inovação’ e ‘progresso’ que nos incha nos tempos que correm, sobretudo se for ‘digital’ e ‘artificial’ – uma espécie de nova e salvífica caução de bem viver.
Adiante. (E mantendo a ressalva de que eu sou um ignorante, bem entendido.) Parece que a inteligência artificial acabaria com muitos enviesamentos, preconceitos, pré-conceitos e afins no campo da justiça. O célebre bias, em língua franca e numa palavra de síntese. Ou seja, a máquina não se deixaria toldar por racismos, sexismos, classismos e outros ismos. Pode ser, estou aberto à demonstração, mas não estou menos aberto à dúvida. Explico: a máquina é feita e, sobretudo, programada por humanos. Ora, assim sendo, não só devemos contar com a possibilidade patológica de haver uma atuação intencional no sentido da manipulação de acordo com finalidades ideológicas, por exemplo, como também, e sobretudo, devemos contar com a possibilidade de, ainda que sem intenção, a máquina ser preparada e programada por humanos sob influência dos enviesamentos destes (como diria bem a teoria do ‘espelho cibernético’), pois esses enviesamentos são – infelizmente, dir-se-á – quase tão naturais quanto respirar. Para já não falar na possibilidade de a máquina aprender ela mesma, tanto mais quanto for capaz de mimetizar o humano, pois aprenderá não só as suas capacidades e as suas virtudes, mas também os seus defeitos; e, caso não aprenda, então não deixará de ser uma máquina muito limitada, e, portanto, só com alguns préstimos de auxílio em certas tarefas.
E, para ficarmos por aqui, apenas duas notas mais, entre muitas outras possíveis. Uma, para dizer que eu não desprezo a nova divindade, nem sofro de teimoso ateísmo, longe disso, apenas procuro cultivar a dúvida e o espírito crítico. E acho, usando uma metáfora alimentícia, que em matéria de justiça a inteligência artificial pode ser um útil (conquanto na dose q.b.) hidrato de carbono, mas não é proteína. Outra nota, esta a respeito das importantes tarefas de pesquisa, tratamento de dados, et cetera, referidas no texto de há duas semanas: esperemos que essas tarefas não acabem por desvirtuar ainda mais uma das mais nobres vertentes e uma das mais importantes garantias do processo, que é a fundamentação. Como? Contribuindo para que, em vez de fundamentação verdadeira e própria, ao osso do problema, tenhamos lençóis de informação, citação e narrativa, tanto maior e inútil quanto mais virtuoso se for no manejo do copy and paste (ah, ora aí está, outra excelsa conquista do ‘progresso’, como se vai vendo).