Ó Eça, vem cá ver isto!

Os que têm o poder, perdem o poder e reconquistam o poder. São sempre os mesmos. Que pilhéria. E nós, continuamos a jogar à bisca e a dar palmadas na pança. Há tanto tempo que nos separámos da inteligência.

Por Luís Castro, Jornalista

Aproxima-te um pouco de nós e vê», vê que o país continua a perder inteligência e a consciência está em debandada.

Que o tédio permanece nas almas, que emerge a imbecilidade, desprezam-se as ideias e a ignorância é fatalidade. Tal como no teu tempo, a vida segue por conveniência, o povo está na miséria, os serviços públicos dormentes, agiotas à solta com ordenados a mirrar e a ruína económica que cresce, cresce, cresce. O Estado sempre olhado como ladrão e tratado como inimigo, a classe média afunda-se, ninguém crê na honestidade dos homens públicos e não há princípio que não seja desmentido. No entanto, a intriga política alastra-se e o país refastela-se numa sonolência enfastiada – os portugueses já não vivem uma existência, arrastam-se numa dolorosa expiação.

Às Farpas; às Farpas, que os russos vêm aí! Mas o Exército já não bate, só em retirada; e a Marinha chega, mas já não sai. Eça veio ver isto e garante que os vladimires vão chegar em bicos de pés e de lenço no nariz. Os navios já só se impõem pelo respeito da idade, o cordame está podre e a mastreação carunchosa – há, até, a ideia de os alugar para hotéis. Menos um, que se afundou no Tejo enquanto ele apertava os cordões dos sapatos. E o outro, que é um esquife – a hélice – e pôs o país a rir por um mês.

A marinhagem já não quer subir às vergas, afligem-se com as tonturas e não nasceram para aquilo. E o Exército, já nem dá para uma revolta. Está como depois de uma derrota – ao fim de cinquenta anos de paz, já só pode servir como auxiliar. Eça passou por lá e diz que não viu ninguém. Mais: que depois de meia hora de fogo, as armas passam para o inimigo. Terão de correr, mas faltam-lhes as botas. E que aos estados-maiores resta-lhes a bravura da juventude – quando tinham o pulso e o ímpeto, mas veio-lhes a idade.

Eça quis ir às escolas. Ouviu minhocas e sapos cegos e enganou-se na casa de banho. Quiseram bater-lhe e garantiram-lhe que seria um dos vencidos da vida. Viu um indigente sentado no chão – um humilde desgraçado e cruelmente desatendido. Era professor. E chorava. Sentou-se ao lado dele e chorou também. Mas ansiou-se e foi ao médico. Afinal, não estava lá. Antes que também o fechassem numa murada desgraçada, o senhor doutor pegou nos filhos e foi crescê-los para longe. Sobraram umas compressas que levou para pôr no nariz. Entrou no Parlamento e pediu-lhes que pensassem um pouco na Pátria – porque, enfim, temos uma Pátria –, mas eles só discutiam uma coisa estranha e parecida com uma máquina de escrever. Cá fora, os putos pintavam na parede: «Portugal, continuas a ter em ti o abutre – e o pato!».

Passaram cento e cinquenta anos e ‘as farpas’ de Eça não nos largam. Tão atuais porque «a história é como uma velhota que se repete» – e repete, repete, repete. Tal como ‘as cartas’ que ele enviou de Inglaterra, onde o Daily Telegraph discutia se é possível «sondar a estupidez lusitana»; e o Times que anunciava um Portugal «tão casmurro, tão fóssil» que se tornou «um país bom para se lhe passar muito ao largo e atirar-lhe pedras». As Cartas de Inglaterra e As Farpas do país da choldra deviam voltar a corar os homens do bairro alto, aqueles que se dizem de bons costumes, mas que mais não são do que cúmplices na indiferença.

Os que têm o poder, perdem o poder e reconquistam o poder. São sempre os mesmos. Que pilhéria. E nós, continuamos a jogar à bisca e a dar palmadas na pança. Há tanto tempo que nos separámos da inteligência.

*Texto inspirado em As Farpas, de Eça de Queiroz