Silvio Berlusconi, o maestro das massas

O homem que dominou a vida pública italiana nas últimas décadas e que foi o grande mentor do modelo publicitário que se impôs na política varrendo de vez os resíduos ideológicos e as reservas éticas desse plano, morreu esta segunda-feira, aos 86 anos, no hospital San Raffaele, em Milão, dois meses depois de lhe ter…

Desapareceu o principal arquiteto do fenómeno hoje global da “política pop”, essa diluição das lutas ideológicas que, no passado, caracterizaram os grandes enfrentamentos e rivalidades da vida política para que esta arena fosse reabilitada como um imenso palco onde decorre incessantemente o crescente chavascal do regime espetacular em que hoje vivemos imersos. Depois de Mussolini não houve outra figura que tenha tido uma influência e um impacto tão decisivo na vida pública italiana, sendo, na verdade, bastante fácil demonstrar como Silvio Berlusconi foi até uma figura bem mais preponderante não só no seu país como a nível internacional, estando na origem de uma autêntica refundação dos pressupostos da construção da imagem de um líder, tendo aplicado da forma mais desavergonhada e grosseira a estratégia publicitária na política, operando uma transformação da figura messiânica, que ressurgia agora à base de fanfarronadas confusas e atabalhoadas, seguindo a lógica do homem que alcançou a pulso um imenso sucesso nos negócios e que pretendia reverter essa mesma lógica para a condução dos destinos de todo o país, confundindo-se de tal modo com o poder que todos os escândalos só serviam para alimentar ainda mais a insaciável ânsia de uma vida política à qual se pudesse assistir como a uma telenovela infindável. No fundo, o trumpismo e o êxito de toda essa caterva de líderes populistas que se impõem hoje por todo o mapa da política mundial tem a sua génese neste tremendo maestro das massas. Se Itália é desde há muito vista como o principal laboratório no Velho Continente no que respeita a experiências políticas e sociais, ao longo de todo o século XX e das primeiras duas décadas deste, esta sociedade que nunca foi um modelo a nível dos valores democráticos, viu-se sobressaltada por uma concatenação de eventos e golpes que superam qualquer enredo que uma estupenda mente cheia de vigor conspirativo pudesse conceber, sendo uma tarefa que levará décadas senão mesmo séculos para que os historiadores possam desenredar todos os nós do novelo. As suas corrupções e lutas de poder souberam capturar o aparelho de Estado e os serviços secretos manobrando a opinião pública, servindo interesses de certos grupos e oferecendo à máfia argumentos para relativizar as suas campanhas de terror, sendo esta tantas vezes bastante útil, com os seus cabecilhas a servirem como meros capatazes dessa mais vasta intriga. Mas o que é indubitável é que o último quarto de século deve com toda a propriedade ser fixado nos manuais de História como a era Berlusconi, aquela em que se assistiu ao triunfo de uma classe média que, em troca de condições de vida mais folgadas, “tanto no plano intelectual como moral perdeu o sentido da decência e do respeito”, como assinalou Claudio Magris.

Este impetuoso e descarado magnata dos media que para dominar o seu país, fez dele um motivo de paródia alarve, a ponto de tantos dos seus biógrafos reconhecerem que apenas mudou Itália estupidificando-a, o que conseguiu foi convidar as pessoas a deixarem de sentir qualquer embaraço. A revolução que o Crocodilo (como Berlusconi era conhecido) levou a cabo na televisão italiana, autorizou toda essa classe da pequena burguesa a entregar-se à euforia de uma nova inocência, e se continuava a vestir a roupa da moral cristã, retirou todo o peso a esse confronto consigo mesmo e que gera a vergonha, que é “o mais íntimo sentimento do Eu”, e desembaraçando-se dessa tensão, nunca mais teria de justificar os seus atos e escolhas, fosse no que toca aos programas televisivos a que gostava de assistir fosse aos líderes e forças políticas que elegesse. Construindo um império mediático, Berlusconi criou à sua volta todo um culto profano e uma incessante máquina de propaganda que lhe permitiu cumprir três mandatos como primeiro-ministro, tornando-se o homem que ocupou o Palazzo Chigi durante mais tempo, num total de 3.291 dias, muito à frente de Giulio Andreotti, a outra figura-chave da Itália moderna.

E se Il Cavalieri foi de longe a figura mais polarizadora e mais acossada por problemas com a justiça, tendo chegado a admitir que foi precisamente isso o que o conduziu à política, mostrou ser capaz de reinventar-se vezes sem conta, e virar a seu favor qualquer tempestade. Mas quem agora procure descrevê-lo com ira ou com uma medida de complacência apenas virá engrandecê-lo, embelezar o seu indecoroso mito, transmitindo à página uma carga espiritual que atenuará, no leitor, a perceção dessa confrangedora urdidura que fez dele o idealizador dessa Itália que acabou refém dos humores e apetites das massas. Por outro lado, esta é uma época em que figuras como Berlusconi convocam uma grotesca solidariedade automática por parte de todos aqueles que de algum modo se deixaram seduzir e mobilizar por este regime de cumplicidades em que tudo pode ser distorcido desde que responda por fim à lógica do entretenimento. Neste quadro global em que tudo apenas nutre um teatro de aparências, de algum modo os homens encontram uma espécie de conforto no seu alheamento, nessa diluição que permite que atravessem os dias esquecidos da vida, isentos de qualquer obrigação e de qualquer atitude crítica ou sequer de se guiar por padrões éticos, entregando-se a esse faustoso território anárquico das seduções passionais que logo se esgotam, dessas ilusões sempre tão absorventes e flexíveis, que permitem que a construção do carácter e das suas próprias convicções se molde a favor das circunstâncias. Quando a realidade é anulada pela torrente de vulgaridades, pensá-la torna-se um ato de fé, para citar com um pequeno desvio uma frase do mais arguto intelectual que Itália produziu nas últimas décadas, Claudio Magris. “Talvez o Homem esteja a mudar radical e velozmente, a alterar a sua própria natureza, o próprio ser, talvez amanhã se torne num feixe de volúveis e intermutáveis pulsões, incapaz de fidelidade, de duração, de continuidade”, notou ele. Magris percebeu também como, no ambiente político-cultural dominante nas últimas décadas, aquelas que coincidem com a ascensão e a centralidade da figura de Berlusconi, houve uma tendência para uma agressiva negação dos valores democráticos e do respeito pelo Estado de direito, numa corrosão permanente que admitia sempre que qualquer figura pública produzisse à medida das suas pretensões uma insinuante e berrante lenda, falsificando os elementos vergonhosos da sua própria história.

Para que hoje nos víssemos avassalados pelos efeitos de uma cultura onde nenhum horizonte parece já afigurar-se como uma linha de orientação comum, para que se tenha chegado a declarar que entrámos na era da pós-verdade, é preciso retomar essa tão simples receita que Berlusconi aprimorou ao usar o seu dinheiro para definir o desenho dos holofotes e os virar para si, usando por fim a sua celebridade para conquistar o imaginário popular com os velhos truques de qualquer ilusionista e farsante, mas munido desse poder hipnótico dos meios de comunicação de massa de forma a construir um espetáculo sem intervalo e que substitui a própria vida. Unindo política, desporto e publicidade viciou os italianos num regime de entretenimento em que comédia e tragédia se revezavam e até combinavam para causar mais impacto, o qual se impunha a todos os aspetos da vida pública, e em cujo centro estava essa narrativa do mago ou guru que sabe atrair aquela que é a derradeira força agregadora – o dinheiro – numa época em que tudo o mais está sujeito à pulverização. Assim, investindo na imagem do tipo que veio do nada e fez uma imensa fortuna, mesmo quando os factos vieram contrariar essa narrativa, mesmo quando esteve sempre na mira da justiça, e mesmo se chegou a ser condenado a sete anos de prisão pelos crimes de abuso de poder, incitamento à prostituição e sexo com uma menor, vindo a ser ilibado já em recurso, por essa altura já tudo lhe era perdoado. Tinha um talento para divertir. E um eleitorado constituído por pessoas que não se guiam intimamente por valores da ordem do espírito, até elevam as risadas de modo a desmoralizar qualquer figura que atice neles a menor sombra de embaraço. Berlusconi tornou-se intocável uma vez que, no limite, a lei não passa de outra ficção, e se a maioria assim entender, todos os crimes que possam ser imputados a um homem, contando que ele dê as massas o que estas querem, gozará de cem anos de perdão. Por isso lhe foi permitido distorcer a Constituição e alterar as leias segundo a sua conveniência, e depois que viessem os legalistas e os historiadores montar essa relação enfadonha de elementos que permitam garantir que havia todas as razões para que ele tivesse sido condenado por fraude fiscal e lavagem de dinheiro, corrupção e abuso de poder, e perjúrio, e extorsão, e também de favorecer a máfia. Berlusconi é a prova de que as massas apenas aturam um pouco a contragosto os seus heróis e essas figuras impolutas em períodos em que a sujeira se torna sufocante, mas logo depois ficam a aguardar que um vilão sedutor as livre desse sufoco ainda não menos desgastante de ter de prestar contas perante comités de moralistas. No fim, os tantos indícios de que, afinal, a sua fortuna teria resultado dos seus vínculos com a Cosa Nostra eram apenas um detalhe que não alterava nada de substancial, pois o que Berlusconi fez pelos italianos foi dar-lhes a sentir o gozo de virarem costas a todo esse modelo de virtudes, e entregarem-se desassombradamente à sua verdadeira paixão: o consumo. Assim, num balanço da sua vida, Berlusconi foi o empresário total, o homem que soube mostrar como as regras sociais e todas as convenções estão aí apenas para manter na linha aqueles que não estão em condições de viver um regime de vida excecional.

Nascido a 29 de setembro de 1936, filho de uma família de classe média de Milão, depois de enveredar pelo estudo das leis viria a licenciar-se na matéria que mais lhe interessava, Direito Comercial, com uma tese sobre publicidade. Antes de se lhe revelar um regime de compadrio que lhe permitisse singrar, valeu-se do princípio de que “quem tem boca vai a Roma”, e não demorou a dar provas do seu carisma e da sua lábia, tendo chegado a fazer nome como animador e cantor de cruzeiros nos anos 50 ao lado do seu amigo Fedele Confalonieri (atual presidente da Mediaset) e mais tarde como um hábil vendedor desses que tocam à campainha e depois impingem de tudo, no seu caso até vassouras elétricas. De algum modo, o seu talento para conquistar a atenção do interlocutor e dar a banhada a quem quer que fosse foi-se afinando nessa sua capacidade de se introduzir no domicílio dos potenciais clientes, estudando os pontos de pressão e as suas aspirações, e, no início da década de 60, não demorou a dar cartas no ramo imobiliário, construindo o seu império no betão dos grandes complexos urbanos na cintura à volta de Milão. Mas se aprendeu as regras do dinheiro, não demorou a tornar-se um estudioso desse grande jogo planetário, e foi elaborando uma trama de empresas que levaria à fundação da Fininvest, em 1978, a qual lhe permitiu lançar-se em novos terrenos, criando aos poucos uma assombrosa rede de meios de comunicação (desde o sector editorial, com a prestigiada Mondadori, aos títulos mais vendidos nas bancas de jornais, tendo chegado a deter o Corriere della Sera). Assim, o que ele percebeu melhor do que ninguém é que para se manter o poder é preciso ter o domínio desses órgãos que difundem as narrativas e promovem a lógica de uma hegemonia cultural que determina o horizonte de possibilidades a cada época. Depois de ter franqueado a imprensa escrita, com a liberação do mercado televisivo, adquiriu o seu primeiro canal privado (Telemilano), e a partir daí foi compondo “um laborioso puzzle através da aquisição de pequenas emissoras que, graças à permissão estatal, viria a resultar no Canale 5: a sua ponta de lança de uma expansão no campo político e cultural”, como referia o El Pais no obituário que lhe dedica.

Berlusconi vendeu a Itália um outro reflexo de si mesma, mais leve, sem o peso castigador de uma moral reprovadora, mais aceitante dos seus vícios, seduziu o país recorrendo à mesma astúcia que levou a serpente a enredar Eva e Adão muito lá atrás. No caso, a maçã proposta liga-se a conceitos como Striscia la Notizia, que inicialmente surgiu como uma sátira aos noticiários, introduzindo as mulheres seminuas, conhecidas como “veline”, que alcançaram um tal sucesso que passado um tempo já nenhum canal as podia dispensar. Assim, o que começou como uma indulgência gracejante, acabou por impor essa regra, que levou tantas jovens a encararem a profissão da “veline” como uma aspiração tão ou mais legítima como frisava numa entrevista ao Público em 2013, Laura Boldrini, ex-porta-voz do ACNUR: “Hoje, em Itália, todos os produtos se vendem através do corpo da mulher, na televisão e na publicidade. Aqui, os noticiários apresentam um homem de fato e gravata e uma mulher seminua. As multinacionais têm uma publicidade para o resto do mundo e outra para Itália…”

No fundo, Berlusconi sabia que era fácil vender aos italianos o seu estilo de vida com todas as oportunidades de satisfazer todas as inclinações da carne e, no fim, do espetáculo levantar o espírito como um casaco do bengaleiro, gerido por alguma dessas agências do beatério que aceitam redenções pagas em cheque e dirigidas ao Vaticano. Tudo o que Is Cavalieri teve de fazer foi vender aos italianos o seu espelho ilusório, e em troca recebeu carta-branca para dirigir o país desde que fosse também prosseguindo essa sessão de hipnotismo em que o importante era não deixar que as distrações e o Circo convocassem todos os italianos para essa nobre distância que vai do sofá ao televisor. De resto, a prova do estupendo talento de Berlusconi como grande hipnotizador foi o ter percebido que a melhor estratégia para aumentar o seu poder e influência sobre a psique dos italianos seria através da “religião laica de Itália, o futebol. Assim, em 1986, comprou o AC Milan, depois de ter visto frustrada a sua tentativa de comprar o clube rival, o Inter. Pegou naquele clube que passava então por um dos momentos mais difíceis e, nas três décadas que se seguiram e em que esteve à frente deste (1986-2017), levou-o a conquistar cinco vezes o título de campeão europeu e oito vezes o da liga italiana. Foi então que Il Cavalieri provou o seu talento diabólico para levar à certa os italianos, quando, inspirando-se nas claques do seu próprio clube e nas da Seleção, se serviu do grito que se ouvia nas arquibancadas dos estádios de futebol para lançar, no final de 1993, o Forza Italia. Era um partido político pensado de raiz como uma empresa, tendo ido buscar aos quadros da Fininvest aqueles tipos que haviam dado provas de ser capazes de fazer essa operação de vendas em larga escala, não já de imóveis nem de outros bens ou serviços, mas de uma ideia de futuro, de um paraíso em que em vez de nuvens e anjinhos (protegidos na sua indefinição sexual) teríamos as tais apresentadoras seminuas e toda uma hierarquia celestial reformulada à imagem de um gigantesco cabaret. Assim, como já havia acontecido com as convenções televisas, como refere o El Pais, Berlusconi “dinamitou a velha forma de fazer política e semeou a estrondosa semente de todos os fenómenos que germinariam nos anos seguintes”: desde Matteo Renzi ao Movimento 5 Estrelas, passando por Matteo Salvini até chegar a Giorgia Meloni, a primeira mulher a chefiar um executivo italiano, sendo este o mais à direita desde a Segunda Guerra, e que integrou em tempos um dos governos encabeçados por Berlusconi. Se é certo que a História será impiedosa com o legado que este grotesco príncipe que deixaria Maquiavel extasiado, também é certo que depois dele e até que uma catástrofe imponha um travão na forma como os órgãos de comunicação de massa são usados para exitar e manipular os eleitorados, nunca mais a política será sobre ideias em vez de ser um mero regime publicitário.