“O meu primeiro sonho foi ser presidente da FPF”

A mais recente tarefa do português mais estimado em Itália foi cumprida com a melhor classificação de sempre da Salernitana. Ponto emotivo na carreira de alguém que esteve sempre predisposto a valorizar-se e a respeitar a sua própria personalidade mesmo que isso lhe tenha criado muitos anticorpos, sobretudo na imprensa.

SALERNO – À medida que o barco se afasta da costa e atravessa a baía, Salerno vai ficando ao longe como uma pequena Nápoles sem Vesúvio. Os barcos cruzam-se, viajamos num de borracha cheio com o grupo de amigos que decidiu um jantar em Amalfi: Beniamino, Massimo,Alessandro, Antonio, Francesco, todos eles com um sentido de humor maravilhoso e um apetite digno de Pantagruel e Gargântua juntos. Na véspera tinha havido festa até tarde. Primeiro no relvado, com o público a saudar, feliz, a primeira vez que a Salernitana conseguiu manter-se na Série A por dois anos de afilada, depois num pranzo perto da praia, na zona de Agropoli, para sul, no restaurante da mulher de Michelangelo Rampulla, o antigo guarda-redes que ainda partilhou os “spogliatoi” com Paulo Sousa na Juventus dos anos 90. Do lado esquerdo a paisagem mantém-se constante em mar aberto, do lado direito as cidadezinhas coloridas recortam-se na rocha escura rodeadas de ciprestes e de limoeiros, Francesco faz questão de apontar-me cada grupo de casas e aplicar-lhes os nomes: Vietri Sul Mare, Cetara, Cerniola e a sua torre, a Spiaggia Cavallo Morto (que me faz recordar um final de dia na Fonte da Telha em que caminhei um quilómetro ou dois ao longo da areia com a curiosidade provocada por um vulto branco que as ondas teimavam em empurrar para a praia – precisamente um cavalo morto), o porto de Minori, a praia de Maggiori e, finalmente, o porto de Amalfi onde desembarcamos ao som da malograda Tina Turner aos gritos que devem vir dos confins da terra e saem pelos altifalantes da nossa embarcação: «You’re simply the best/Better than all the rest/Better than anyone/Anyone I ever met». A letra calha como uma luva de pelica a um bem disposto Paulo Sousa que é sacrificado minuto a minuto com pedidos de autógrafos, selfies, gravações de mensagens para parentes de fãs e o diabo a quatro. Por isso passeamos devagarinho pelas ruelas de Amalfi, esta encantadora pequena cidade apertada que conta com cerca de seis mil habitantes num espaço de 6 quilómetros quadrados. O Paulo gosta de Itália, sempre gostou, desde que saiu doSporting para jogar na Juventus, em 1994, sendo logo na primeira época considerado o melhor jogador do campeonato. Diria que Itália será, para sempre, o seu lugar preferido para treinar e para viver. Digo sem correr grandes riscos de me enganar. Basta olhar para a forma como se sente em casa.

Obrigado meu irmão!

Acho que a primeira vez que vi jogar o Paulo jogar foi em 1988, ainda nos juniores, claro, ainda antes até de ter feito parte do grupo de jogadores com que Carlos Queiroz fez de Portugal campeão do mundo, na Arábia Saudita. Parecia muitas vezes perdido em campo: tanto jogava pela direita (nos sub-20 era aí o seu posto), na frente da defesa ou no espaço do 10. Conheci-o também por essa altura. Gostei dele à primeira. Era ensimesmado, pouco falador, ao contrário de muitos dos seus colegas não fazia questão de aparecer na imprensa, era o cabo dos trabalhos para arrancar um sorriso daquele rapazinho magrinho que viera de Viseu para Lisboa e doRepesenses para o Benfica com apenas 16 anos. A sua atitude parecia querer anunciar, à distância: «Estou aqui para fazer o meu trabalho, deixa-me em paz». Muitos foram os que não o entenderam. Confundiram timidez com arrogância e morderam-lhe os calcanhares como lobos famintos de sangue, afastando-o cada vez mais de um círculo de certa moda restrito e de malha apertada. Ele pouco se importou. De personalidade forte, construiu em seu redor uma parede sem brechas e apenas com uma porta pela qual, de vez em quando, deixava entrar alguém com quem repartia coisas próprias da sua estrutura como ser humano. Tive a sorte de ser um daqueles em quem ele confiou desde o princípio. Tenho a sorte de repartir com ele uma infinidade de memórias porque, apesar das distâncias, nos fomos mantendo sempre em contacto.
Nessa altura não havia conferências de imprensa. Os jornalistas iam aos treinos, viam tudo até ao fim – não eram mandados embora após 15 minutos –, e falavam livremente com os jogadores e com os treinadores, ou nos caminhos que conduziam do campo de treinos aos balneários ou quando eles saíam, já de banho tomado, de carro para a sua vida de gente para lá da bola. Foi o seu primeiro pecado. Atraiu sobre si a embirração da maioria. Como temos feitios parecidos, solitários por natureza, conversávamos bastante. Em seguida ficámos amigos. Depois passou a ser para mim como um irmão mais novo que reencontrei em tantos lugares do mundo e com quem vivi momentos maravilhosos e únicos da sua carreira. O ano passado, enquanto vivi os momentos mais difíceis da minha vida, ele ia ter comigo a Águeda e dizia: «Meu menino, não podes estar sozinho». Logo eu que amo a solidão. Mas olhei para o lado e ele lá estava. E esteve. Não me esqueço meu querido! Obrigado Paulo!

 No passado fim de semana assisti a mais um momento feliz da sua carreira de treinador. Claro que podem exclamar com desprezo: «Na Salernitana?! Que diabo vem a ser isso?!». É, de facto, um nome que não dirá muito aos portugueses mas a verdade é que o clube tem um apoio popular invulgar numa cidade tão pequena. E os seus adeptos são fanático à boa maneira italiana – «Una tifoseria empazzita ed strepitosa». Quando Paulo Sousa aqui chegou, em Fevereiro, a «squadra granata» (com o seu cavalo-marinho rompante) parecia destinada à descida. O costume, enfim. Das duas vezes anteriores que conseguira chegar à Série A desceu no final da época. O Paulo assumiu a responsabilidade que a direção do clube queria ouvir – fazer da equipa uma equipa de primeira, firmemente de primeira, sem descidas. É um trabalho á distância? É? Ficará ele em Salerno para o continuar e desenvolver? Veremos o que o mercado tem para dizer. Mas eu vi como está preocupado com todos os pormenores e como se prepara para aquilo que aí vem. Pela primeira vez, o clube de Salerno não desceu da Série A para a B. Juntem-lhe a felicidade espontânea dos tifosi e imaginem quanta cerveja e quanto vinho e quanto prosecco escorreu pelas trattorias de Salerno.

O traço da geometria

Em Abril de 1998 eu estava em Itália por causa de PauloSousa. Estive muitas vezes em Itália por causa de Paulo Sousa, em Turim, em Milão, em Parma, mas essa era uma altura especial para ele e para o seu futuro, tanto tinha, entretanto, sofrido por causa de lesões e da maldita pubalgia. Em La Pinetina, Appiano Gentile, centro de treinos do Inter, os jornalistas italianos queriam saber se o Paulo conseguiria fazer o mesmo que fizera na Juventus, carregando com a equipa às costas até à vitória na Taça dosCampeões. «Paolo, il regista!» O meu amigo Enzo Palladini escreveu sobre ele após um jogo em San Siro frente à Atalanta, no qual também estive presente e o vi no seu habitual papel de geómetra traçando a regra e esquadra as directivas do jogo do Inter: «Paulo Sousa é, de facto, um homem de grandes momento. Quando Moratti resolveu fazer o forte investimento na sua contratação estava absolutamente convencido de que, com o português em campo, haveria uma mudança radical no caráter da equipa. Durante uma partida passam seguramente pelos seus pés 60/70 bolas, um número altíssimo para o futebol italiano, como também altíssima é a percentagem de passes que Paulo Sousa dirige de maneira correta até porque, seguindo o lema semplicità è velocitá, procura sempre a solução menos complicada».

Os anos passam depressa;os dias é que passam devagar. Gostei de o ver feliz num lugar onde é querido por todos, sobretudo pelos bambini. 

– Paolo! Aspetta! Lasciame fare una foto con tè!

E o Paulo abre o sorriso, deixa que lhe tirem a fotografia, conversa com os garotos, pergunta-lhes pela escola, porque equipa tifano, tem sempre um gesto de carinho para com os mais novos, como com aquele rapaz gorducho que, envergonhado, ali fico, minutos a fio, olhando para ele como se fosse alguém inacessível.

Fiz tantas entrevistas com o Paulo ao longo da carreira dele e da minha que, desta vez, quis que algo fosse diferente. Não a maçadoria da pergunta resposta sentados à mesa. Antes uma reportagem à moda antiga, que aprendi com os grandes mestres de A Bola, perceber o ambiente em que vive, perceber a forma como se evolveu com o clube e com os adeptos, fazendo aqui e ali as minhas perguntas, claro está!, mas sempre preferindo deixá-lo falar e que fosse ele a dirigir como um daqueles grandes diretores da Cinecittá, o filme do seu dia a dia. Assim foi. Aquilo que quis perguntar-lhe fi-lo, como sempre, cara a cara, mas o jantar de fim de tarde em Amalfi, com um grupo de amigos que se pelavam por um piada, valeu vinte entrevistas embora, como é da praxe, haja frase que não me permito publicar. A liberdade da palavra é como a liberdade do silêncio. Temos de saber usá-las com destreza e tacto.

Regresso no tempo…

Nos seus momentos iniciais de Benfica, com aquele estilo gadelhudo, calças a caírem-lhe de tal forma que ganhou a alcunha de Nuno Ferrari, esse meu querido companheiro tão esquecido que não conseguia nunca apertar de jeito o cinto em volta a sua barriga proeminente, apreciava a forma como organizava à conta de palavras, de gestos e de movimentos, todo um meio campo. Certa noite, em Parma, depois do seu clube da altura ter levado uma sova violenta da Fiorentina de RuiCosta, perguntei-lhe ao jantar:

– Quando deixares de jogar vais ser treinador, não vais? Já és treinador dentro do campo.
E ele, surpreso:
– Não!
E eu, também surpreso:
– Assim, taxativamente, não? De certeza?
Explicou-se:
– Tenho fases da minha vida pensadas. Quando comecei a ser jogador disse que queria acabar a carreira o mais cedo possível para poder dedicar-me a outras coisas. Depois, a paixão passou a ser tão grande que mudei de ideias. Quero perceber o futebol na sua essência, entender os enredos táticos, tentar estar por dentro do relacionamento humano entre treinador e jogadores nos vários países, descobrir as diferenças. Às vezes também penso que, com tudo o que aprendi até hoje, poderia ser treinador. Seria uma espécie de desafio. Não vou dizer taxativamente que nunca serei treinador, mas não está nos meus planos sê-lo. Quero ter tempo para dedicar à minha família, tenho dado alguns passos para que, quando acabar a carreira, me possa agarrar a qualquer coisa, investi algum dinheiro, vou investir mais ainda, isso vai permitir-me descansar fisicamente porque o esforço físico tem sido enorme. Além do mais, quero ter a possibilidade de gozar o dinheiro que fui ganhando. Sei o que custou aos meus pais verem-me sair de casa aos catorze anos, ficarem sem contacto próximo durante tanto tempo, quero dar-lhes também a hipótese de terem a minha companhia.

Nesse tempo de 1998 – como escorreu o tempo igual a areia por entre os dedos, Paulo Sousa tinha, como tem sempre, os seus projetos traçados. Mas agora, aqui em Salerno, frente a frente com “uma birra a la spina”, ponho-o perante a resposta que me deu há 25 anos, vejam bem como o tempo voa.

– Acredita que era mesmo assim que pensava então. Era, em primeiro lugar, um tempo importante da minha vida porque comecei a encarar o facto de que mais cedo ou mais tarde iria parar de jogar. Mas não via a minha vida passar pelo cargo de selecionador. Tinha uma visão diferente e pretendia continuar no futebol de uma forma que pudesse contribuir par a sua organização e desenvolvimento, em Portugal, claro!, é o meu país. Confesso que o primeiro sonho, ou a primeira ambição que tive quando acabei de jogar era a de vir a ser presidente da Federação Portuguesa de Futebol! Era nesse cargo que me via. Era nesse cargo que pretendia utilizar todo o conhecimento que tinha agregado depois da minha passagem por diversos países como jogador.

– Qual foi a primeira porta que se abriu quando deixaste de ser jogador?
– Precisamente a da Federação Portuguesa de Futebol. Fui treinador nas seleções jovens, procurei potenciar jogadores ainda com muito para aprenderem.

Pobres daqueles que não tiveram a possibilidade de ver jogar Paulo Sousa. A partir do momento que se fixou no lugar em frente da defesa a mecânica intricada do seu cérebro preparou-o para ser dos jogadores mais inteligentes que alguma vez vi pisar um relvado. Ele não precisa que lhe diga isto. Também foi das pessoas mais inteligentes que conheci no futebol em geral. E era essa simplicidade de processos de que falava Palladini que me encantava de cada vez que punha os pés num dos estádios em que foi jogando. A vaga geometria de que falava oChico Buarque, o arquitecto dos espaços vazios, a fonte de alimentação daqueles que conseguiam acompanhar o seu aguçado raciocínio e uma visão dos acontecimentos que estavam ainda por suceder. Ah! Como era era diferente. E a facilidade com que recuperava a bola e a entregava de imediato, sempre na vertical, sempre para a frente, não ao “retropassagio”, a solução ia-se desenvolvendo daí para a frente, as trivelas ainda não estavam na moda e ele já usava com frequência o exterior do pé para afinar o passe e dar-lhe conta, peso e medida.

Um distante Portugal

O barco saltita sobre as ondas provocadas por outros barcos. Há sempre gente a ir e a voltar cumprindo a rota da Costa Amalfitana. Um palácio parece querer desprender-se da rocha e mergulhar pela colina até encontrar um sossego de mar e a fuga ao vento que agora sopra do norte.

– Pões a hipótese de voltar a Portugal?
– É evidente! Sou um profissional.Tenho de conservar todas as oportunidades em aberto.
– Bem, há sempre alguém que no teu lugar diria – só se fosse para treinar o Benfica, oSporting ou o FCPorto…
– Já trabalhei como treinador em nove países. E aceitei sempre o que me era proposto porque me pareceram projetos estruturados nos quais poderia encaixar a minha forma de ver o futebol, sempre com a ideia de ir desenvolvendo diversas áreas, não apenas importantes para mim mas sobretudo para os clubes que me contrataram. Quis deixar a minha marca, as minhas ideias, algo que valesse verdadeiramente a pena.
– Até em Israel ou na China?
– Sim. No entanto tenho de dizer sem problemas que a China não fez parte de um projeto. Nem eles estavam interessados nisso. O Tianjin era um clube onde o dinheiro abundava mas no qual ninguém pensava no futuro. Para mim foi muito importante, mas não pessoalmente. Ganhávamos muito dinheiro e eu pensei na minha equipa técnica, em todos os que têm trabalhado comigo, e percebi que para muitos deles um ano na China poderia significar um desafogo financeiro para os anos que aí virão. Felizmente foi isso que aconteceu. E como prova do que acabo de dizer em relação à inexistência de um projeto, a prova está aí. O clube acabou.

O DJ da embarcação resolve mudar o estilo da música que vamos ouvindo enquanto contornando uma ou outra rochosa que esconderá sob as águas armadilhas desagradáveis. «Se bastasse una bella canzone a far piovere amore/Si potrebbe cantarla un milione, un milione di volte/Bastasse già, bastasse già/Non ci vorrebbe poi tanto a imparare ad amare di più»: recordo-me do Eros Ramazzotti em Lisboa, para um jogo da equipa da Fundação Luís Figo, eu como press-officer a tentar levar toda a gente a falar aos jornalistas e ele desaparecido por completo, saído do hotel às cinco da manhã para fazer jogging. O Francesco também solta as goelas para acompanhar o tom: «Se bastasse una grande canzone per parlare di pace/Si potrebbe chiamarla per nome aggiungendo una voce». Não precisamos de uma bela canção para falarmos de paz. Nem de paz nem de qualquer outro assunto. Há sempre alguém que atira para a mesa um assunto como se fosse uma bisca, sendo que o futebol está sempre presente, todos querem a opinião do Paulo Sousa para isto ou para aquilo, todos querem saber o que ele pensa do punta X, do portiere Y, do allenatore Z. E ele responde a tudo, fala pelos cotovelos, está no seu elemento natural, quem diria?, o Paulo Sousa tímido, metido para dentro, que enfiava um boné a tapar-lhe os olhos para evitar o contacto com quem quer que fosse, já lá vão quantos anos?, trinta e sete?, parece impossível, mas continuamos a manter-nos juntos. Continuaremos a manter-nos juntos, veremos em que lugar vamos reencontrar-nos para a próxima, talvez no nosso amigo Manuel Almeida, no Clube de Vela, na Costa Nova, onde ainda há tempos nos batemos com um peixe maravilhoso, o Paulo é um apreciador de peixe.
– Todos embirravam contigo. Sobretudo os jornalistas, não era?
– Era. Mas é uma questão de feitio. Não era arrogante. Era tímido. Sabes disso. Não tinha nada contra ninguém. Metia-me para dentro. Com o tempo aprendi a libertar-me, a ser mais dado aos convívios como este de agora, que estamos a viver, e aprendi também que passava a ser uma pessoa mais feliz, mais contente comigo mesmo. Hoje reparto muitas conversas, muitos almoços com os meus amigos, a minha mulher também me ajudou nesta espécie de libertação. E o mais importante de tudo é que me sinto bem assim. Olha em volta e vê este grupo divertido. É bom fazer parte dele

Hino à alegria

Volto a recordar-me de Parma. Talvez por causa do contraste, não pode ser por outro motivo.
Aqui vivemos na terra da alegria libertada
Parma é, na sua essência, uma cidade triste. Vigorosa, por certo, também cordial, muitas vezes, mas de uma melancolia intrínseca que se espalha pelas ruas de casas de cores baças e pelo movimento esparso das pessoas nos seus trajes de invariáveis tons escuros. O futebol do Parma de era, igualmente, um futebol bisonho e sem entusiasmo. Certa tarde caminhei para o Ennio Tardini para ver a Fiorentina de Rui Costa defrontar o Parma de Paulo Sousa. Que diferença! De um lado, um Rui alegre com a liberdade que lhe davam; do outro um Paulo amarrado com correntes a um sistema tático pré-histórico. Dir-se-ia que a equipa que era treinada por Malesani sofria de um profunda depressão da qual não conseguia sair por mais que se esforce e que lhe tolhia os movimentos, lhe emperrava os raciocínios e lhe embaciava irremediavelmente os laivos de imaginação. Impotência seria, muito provavelmente, a palavra certa. E era nesse Parma que proibido de errar que Paulo Sousa recomeçou a sua carreira italiana depois de mais de um ano de atividade inconstante, primeiro, e quase inatividade, em seguida, no Inter de Milão. Sabe-se como o futebol de Paulo Sousa foi sempre o da seriedade e do raciocínio, como um rapazinho que foi cedo obrigado a ser adulto e não tivesse tido tempo para as brincadeiras próprias dos que são da sua idade. Veio lá de Viseu, sozinho, para a cidade grande de Lisboa, fabricou a sua personalidade numa redoma protetora que o mantinha longe da nostalgia. Quando chegou a Parma sabia que não o esperavam dias ligeiros nem tranquilos, ouvimo-lo reconhecê-lo, conhecemos a sua forma de encarar os desafios com a vontade férrea de quem está disposto a contorná-los custe o que custar. Nesse tal jogo frente à Fiorentina(recordo-o praticamente de cor) percebemos a tremenda dimensão da sua tarefa. O treinador, Malesani, confiava nele para dar método a um conjunto disperso, aqui e ali caótico. Acreditava na sua métrica, na sua geometria, na sua pensada ocupação dos espaços para aglutinar em seu redor um grupo esfrangalhado de gente que parece não acreditar nos companheiros nem sequer em si própria. Mas era exigir-lhe o impossível! Um homem sozinho, por mais valente que seja, não é uma equipa. 

Falando do futuro

Se há lugar que nada tem que ver com Parma é Positano. Fica ali, um bocadinho mais ao longe, com a sua praia de seixos de areia preta, e todos dizem que é o diamante com o brilho mais puro da Costa Amalfitana. Não fomos lá. Ficámo-nos por Amalfi. OCastelo Lauritano espreita ali de um ponto um pouco mais alto, as casas escorrem pela colina abaixo, damos uma volta a pé pelas ruelas estreitas, espreitámos o Palazzo Casanova e a catedral, ouvimos repetidamente a mesma frase:
– Paolo! Fammi un autografo. Prego. Per me i per miei amici.
Um rapazito atrevido põe-lhe na frente um caderno:
– Per tutta la mia classe…
Quantos são? Oito, nove, dez… oPaulo vai passando as folhas perante o sorriso feliz do miúdo. Depois chega um pai com um bebé ao colo. Quer uma foto com o pequenino. A pouco e pouco perdem a timidez. Três adolescentes coradas até às raízes dos cabelos. Um casal de turistas ingleses. E o Paulo com a infinita paciência, sobretudo com os garotos, acrescenta uma frase simpática, pergunta-lhes pelos estudos, por qual equipa tifono, tem o sorriso rasgado de quem está em casa e sabe que que todos eles o veem como mais um deles. Receiam que alguma squadra mais poderosa o leve entretanto.
– Ascolta, resterai con noi, vero?

Tem mais um ano de contrato mas uma clausula que permite ambas as partes de o rescindirem. A sua primeira época como treinador da Fiorentina (2015) foi de categoria e só o desinvestimento económico que a direção resolveu levar a cabo no final da primeira metade do campeonato o impediu de obter uma das mais brilhantes classificações do clube na Série A. Ou seja, já tem a sua conta de promessas por cumprir. A direção dos Cavalluci Marini, os cavalos-marinhos que servem de emblema deste clube com tanto de marítimo, insiste que cegou a hora de fazer da Salernitana uma equipa de Série A, mantendo-a num lugar confortável da classificação nas próximas épocas e, pelo discurso que ouvimos ao presidente, em pleno Stadio Arechi, perante mais de 25 mil pessoas, logo no final da vitória strepitosa face à Udinese (de 0-2 passaram para 3-2) ficou claro que para quem governa a instituição Paulo Sousa foi o maior responsável por este facto inédito de a Salernitana se ter mantido entre os grandes.

– Para já a minha ideia é ficar. Já estou a trabalhar para a próxima época, já apresentei ao director-desportivo o tipo de jogadores que necessitamos para reforçar a equipa, não vejo neste momento razões para alterar o plano que estamos a construir. Sabes que para mim o mais importante é apresentarem-me um projeto dentro do qual eu possa não apenas evoluir como treinador mas colaborar igualmente para a valorização dos jogadores e para o crescimento das infraestruturas. Há essa ideia na Salernitana até porque o presidente está disposto a adquirir terrenos junto ao nosso campo de treinos de maneira a erguermos uma verdadeira cidade desportiva com tudo aquilo que os jogadores necessitam. Dou muito valor a esse esforço e estou certo de que com esse avanço é possível fazer da Salernitana um clube seguro e capaz de se manter na Séria A durante vários anos.

Se há alguém com opiniões muito concretas sobre sobre a forma de gerir a sua carreira, esse alguém é Paulo Sousa. Mesmo que se sinta de alguma forma desiludido com a forma como o trataram aqui e ali, no Flamengo, por exemplo, onde nunca se sentiu liberto do fantasma de Jorge Jesus. Passamos frente aoNovotel, onde a equipa estagia na véspera dos jogos em casa, o Paulo aponta uns edifícios negros em fase de acabamento – «Era um bom local para me instalar na próxima época, fica a vinte minutos do campo de treinos e a cinco minutos do estádio». Corre uma brisa refrescante pelo meio do calor. Não tarda apanharei o comboio para Nápoles e, depois, o avião para Lisboa. Temos tempo para falar ainda um pouco mais à mesa de Il Timone, um restaurante que usa e abusa de tudo o que é peixe.O Paulo tem aquela voz que os jornalistas italianos gostam de chamar «voce baritonale», às vezes tão grave que mal se ouve, como se fosse subsónica ou qualquer coisa assim. Parece ter sempre um jeito para ocupar ao máximo todas as horas do dia, vale-nos o facto de já nos irmos habituando, acompanhamo-lo e falamos ao mesmo tempo, aqui e ali mais sossegadamente como não poderia deixar de ser, ele tem uma forma de ser tranquila que lhe fica bem, uma calma intrínseca que parece influenciar quem o rodeia interrompida de quando em vez por uma gargalhada franca que desmente o seu aspeto distante e sisudo. Há quem o considere antipático, rude e até mal educado. Ele reconhece-o: «É bem possível que, num primeiro contacto, as pessoas pensem que sou antipático. Eu acho que sou simplesmente distante para com quem não conheço. É, talvez, a minha forma de me proteger. Mas também não me preocupo muito com aquilo que de mim pensam. E mudei muito ao longo dos últimos anos. Mas continuo sempre a não valorizar as críticas que me são feitas sem substância».
– O campeonato italiano sempre foi, para ti, um fascínio…
– Porque sempre me atraíram as coisas difíceis. As dificuldades fazem-te mais forte! As facilidades acomodam-te. Claro que as minhas decisões não têm só que ver comigo, mas sinto necessidade de criar novos objetivos e, para mim, cumpri-los torna-se muito importante. O futebol italiano é o mais difícil do Mundo. Porque nos exige que estejamos fisicamente acima dos 100%. Não será tão bonito de ver, tão estético, há pouco tempo para adornar os lances, há pouco espaço. E nunca há pausas. Nem nos treinos. Tudo isto é fascinante para mim, obriga-nos a estar atentos, faz-nos crescer. Esta pressão fascina-me! 
Dele sempre se esperou que fosse incansável como um dínamo. Muitas vezes de pouco lhe serviu ordenar, ser o chefe, se não teve quem soubesse cumprir? Mas, no geral, a sua serenidade multiplica-se? Pediram-lhe que não tivesse sistema nervoso. Que continuasse insensível à desorientação dos companheiros de forma a que eles procurem nele os pontos cardeais das suas movimentações. Ele venceu esses desafios pela obstinação e pela teimosia. 
– Qual o treinador que mais te surpreendeu? 
– Eh! Curioso. Nunca pensei nisso. Agora fazes-me a pergunta e não sou capaz de responder de repente. Felizmente tive vários treinadores de muita qualidade mas se queres mesmo uma resposta concreta talvez seja surpreendente:Ottmal Hitzfeld. Era pouco falador, não tinha grande proximidade com os jogadores, mas sabia qual o momento certo para dizer as palavras que precisávamos de ouvir. Não foi por acaso que fiz no Borussia de Dortmund uma das melhores épocas da minha carreira que acabou com a vitória na Taça dos Campeões frente a uma Juventus fortíssima.

Quando a noite caiu sobre Amalfi, o grupo de amigos que nos trouxe até aqui deixou-se ficar à mesa saboreando os seus amarones e os seus lemoncellos . O vento que sopra é quente nesta terra mágica em que os limões crescem quase como melões e são doces de se comerem à mão como laranjas. O comandante está pronto para largar amarras, mas há quem resista a voltar já para Salerno. Pelos montes acendem-se luzes num cenário próprio de presépio e a escuridão dos rochedos serve de palco. Uma senhora elegante caminha pela beira do mar: «Ciao, ciao, bambina, un bacio ancora/E poi per sempre ti perderò/Come una fiaba, l’amore passa:/C’era una volta poi non c’è più».

A turma risonha prepara-se para os pingos de água que salpicam a viagem de regresso. As gargalhadas tornam-se mais agudas para que sejam ouvidas acima do roncar do motor. Um dia feliz! Um dia de reencontros. Amalfi vai ficando longe, agora o espectáculo decorre do lado esquerdo da embarcação. É o momento de Ornella Vanoni tomar conta da aparelhagem do barco: «Ecco, la musica è finita/Gli amici se ne vanno/Che inutile serata…» Poupa-nos Ornella. Inutile serata? Só se for para ti. Nós soubemos aproveitá-la até ao sabugo. Guarda a tristeza para ti. Mas só para ti. Nenhum de nós precisa dela esta noite. Não nos faz falta. «Non buttare via cosìLa speranza di una vita d’amore…».l