Um destes dias, dei por mim embaraçado numa mesa-redonda por causa de uma definição. As definições são como os muros, dificultosas, e como as cascas de banana, escorregadias. Discutiam-se, então, virtudes (poucas) e defeitos (muitos) dos chamados megaprocessos, quando demos todos nós – os mesa-redondantes e o auditório – pela necessidade de definir ‘megaprocesso’, pois antes de porfiar na avaliação há que dizer o que se avalia, a não ser que a definição seja o definido, como naquele exercício de parentalidade impaciente que consiste em explicar aos filhos que sim porque sim e não porque não, ou seja, e no caso, que um megaprocesso é um processo que é mega. Estávamos nós muito entretidos em busca do conceito, tentando meter espartilho de Direito num corpo de fartas carnes que se esquivam ao jurídico (e que dele até troçam por vezes, quando não o atropelam mesmo), quando me saiu um dito que achei de espírito, e que aqui reproduzo vaidosamente, embora o mesmo não resolva o problema, desconfiando eu que o problema (a definição) não tem solução exata, porque as definições são coisa de ciência e o megaprocesso de ciência tem pouco.
Disse eu, então, armado em espirituoso: o megaprocesso é como o amor, pois não o sabemos definir, mas sabemos bem reconhecê-lo quando o encontramos. Aliás, o processo que é mega, et pour cause, normalmente apresenta-se ruidoso e cénico, é difícil não dar por ele. E assim passei adiante, atirando-me então às boas e às más ações do megaprocesso, ainda não bem definido, mas andando por aí em amorosos e primaveris eflúvios. Porém, nessa noite, chegado a casa, e olhando para as lombadas, entristeci, porque me deveria, na mesa-redonda, ter lembrado de coisa bem mais importante do que a gracinha sobre o amor. Deveria ter-me lembrado do bode, a verdadeira solução para os megaprocessos, assim pudesse cada um destes ter um daqueles; ou seja, a cada megaprocesso o seu bode.
Bode? Sim, eu explico, mas não sem antes dizer que esta solução que me deveria ter ocorrido agradaria, certamente, a muitos, embora não a todos, pois sempre deixaria em perda e pranto, pelo menos, uns adeptos de circo, algumas carpideiras, meia dúzia de enfatuados e vários vampiros. Mas não se pode agradar a todos, como não agradava o autor da lombada que me fez entristecer por não ter recordado o bode a tempo, a saber, Mário-Henrique Leiria, o inesquecível autor dos deliciosamente delirantes, porém aceradamente acertados, Contos do Gin-Tonic, onde podemos encontrar um texto que leva o nome de ‘O Bode Imarcescível’. Ora, e abreviando, o protagonista, que gosta de animais e possui vários, tem um bode, que tem qualidades e se porta bem, até que um dia, num acesso de fome, lhe come uma edição de Os Lusíadas. O protagonista, de seu nome Julião, passa a levar o bode consigo para a repartição, para o ter debaixo de olho, e tudo corre muito bem. Até que um dia… – como em todas as histórias. Mas demos a palavra ao autor, colocando as devidas aspas, e deixando depois ao leitor a tarefa de meter na atrevida boca do bode o macio megaprocesso. Reza assim o conto, a partir de certa altura:
«O diabo foi que um dia o bode teve um apetite feroz, como na altura de Os Lusíadas. Foi à secretária do chefe e comeu todos os processos em andamento que faziam a cabeça em água aos funcionários. Não deixou senão os agrafos e as molas das pastas de arquivo…
O chefe aveio-se com o bode. Parece que se entenderam.
O Julião não foi incomodado e o bode passou a andar de um lado para o outro, pelas salas e gabinetes.
O bode comia os processos, os processos ficavam arrumados. Os funcionários estavam encantados, escolhiam os melhores, os mais grossos e chamavam o bode».