A notícia de que Boaventura Sousa Santos é, afinal, um prepotente, abusador de pessoas em situação de fragilidade, surpreendeu o país. Curiosamente, não terá surpreendido os que consigo partilharam percurso académico ou político: não faltam relatos sobre como ‘ele é muito bom, mas tem destas coisas’ – leia-se aproveitar-se da sua posição profissional para assediar mulheres.
Há alguns dias, o Diário de Notícias tinha como manchete que os juízes portugueses têm dificuldade em condenar o assédio, sexual ou moral, e que as mulheres juiz sentem na pele esse mesmo assédio.
Este retrato de uma sociedade que tolera a prepotência e o abuso – mesmo nas magistraturas – é, lamentavelmente o espelho de algo que todos vamos conhecendo e que, bem ou mal, muitos continuam a tolerar.
Dizem, alguns, que se alguém se sujeita a essa prepotência é porque esse alguém é fraco. Outros dirão que é o reflexo de sermos uma sociedade patriarcal, na qual o homem mantém-se como o mais poderoso. Boaventura Sousa Santos explicou, num artigo recente, que alguns dos seus comportamentos têm origem no facto de ter nascido numa geração diferente, contrariando os veementes e arrogantes desmentidos iniciais.
Em breves notas vimos três explicações distintas para o assédio: a vítima, o género e a geração. Todos eles facilmente rebatíveis.
Condenar a vítima pela sua fragilidade, perante a prepotência de quem está em posição de força é absurdo. Numa sociedade livre a vítima deve, sempre, ser capaz de se defender e de exercer os seus direitos. Não obstante, o que acontece quando esta não se sente em posição de o fazer? Ou, em tese, quando esta não se sente protegida pela ‘ultima ratio’ de recurso numa organização? Como deve agir? Por outro lado, condenar todo género masculino pela prepotência é injusto: nem todos os homens são prepotentes ou abusadores, e não faltam exemplos de mulheres prepotentes, tanto ou mais que os homens, quando se sentem em posição de poder. Os homens, porque a sociedade é cada vez menos por eles dominada, também são objeto de assédio, a situação não é exclusiva de um género. Quanto ao argumento geracional, será que no passado todos os homens eram abusadores do seu poder? Não falamos de dois ou três séculos atrás, apenas de duas ou três gerações.
O assédio, moral ou sexual, tem sobretudo a ver com poder, com a prepotência com que esse poder é exercido, e com a forma como essa prepotência é tolerada. Apesar dos excessos (como olhar para qualquer comentário como assédio), a verdade é que numa sociedade democrática, de cidadãos e não de servos, a ação do prepotente fica limitada – e, cedo ou tarde, exposta. É decorrente da exposição da situação e pela consciencialização individual da cidadania que o tema está no debate público.
Há algo real e objetivo nesta questão: os tempos mudaram e, ainda que não seja uma questão geracional, como definido por Boaventura Sousa Santos, o facto é que a prepotência deixou de ser algo tolerável. O exercício prepotente do poder passou a ser algo epidermicamente inaceitável.
Quantas pessoas não se perderam pessoal e profissionalmente em função dos abusos dos prepotentes? Ninguém sabe efetivamente, mas a resposta é sempre muitas, demasiadas. Os prepotentes são verdadeiros ladrões de destinos. Pela forma como se comportam, como esmagam e afastam quem se sente em posição de fragilidade de atingir o seu melhor.
É dever de quem lidera saber isto. Sob pena de ser cúmplice da prepotência e corresponsável das suas consequências.